A CABANA
William P. Young
com a
colaboração de
Wayne Jacobsen e
Brad Cummings
Créditos: lewrydiboys
Reedição: SusanaCap
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Semeadores da Palavra e-books
evangélicos
Editora Sextante, 2008
FICÇÃO
Título original: The Shack
Tradução: Ivanir Alves Calado
Copyright © 2007 por William
P. Young
Copyright da tradução © 2008
por Editora Sextante Ltda.
Música usada no Capítulo 1:
"One Way", de Larry Norman
Música usada no Capítulo 10:
"New World", de David Wilcox
Capa: Marisa Ghiglieri, Dave
Aldrich e Bobby Downes
Adaptação da capa: Miriam
Lerner
ISBN 978 85-99296-36-3
1. Mudança de vida - Ficção.
2. Crianças desaparecidas - Ficção. 3. Ficção americana. I. Alves-Calado,
Ivanir, 1953-. II. Título.
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no Brasil, por
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Esta história foi escrita
para meus filhos
Chad - o Profundo Gentil,
Nicholas - o Explorador
Sensível,
Andrew - o Afeto Generoso,
Amy - a Alegre
Conhecedora,
Alexandra (Lexi) - o Poder
Luminoso,
Matthew - o Belo Prodígio,
É dedicada em Primeiro Lugar a
Kim, minha amada — obrigado
por salvar minha vida
E em segundo a
"...todos nós,
falhos, que acreditamos que o Amor governa. Levantemo-nos e deixemos que ele
brilhe".
Índice
Prefácio
Quem não duvidaria ao ouvir
um homem afirmar que passou um fim de semana inteiro com Deus e, ainda mais, em
uma cabana? Principalmente naquela cabana.
Conheço Mack há pouco mais de
20 anos, desde o dia em que nós dois fomos à casa de um vizinho para ajudá-lo a
embalar feno para suas poucas vacas. A partir de então a gente se encontra compartilhando
um café — ou, para mim, um chá tailandês superquente, com soja. Nossas
conversas nos dão um prazer profundo e são sempre salpicadas de muito riso e de
vez em quando de uma ou duas lágrimas. Francamente, quanto mais velhos ficamos,
mais a gente se dá bem, se é que você me entende.
O nome completo dele é
Mackenzie Allen Phillips, mas a maioria das pessoas o chama de Allen.
É uma tradição de família:
todos os homens têm o primeiro nome igual, mas são conhecidos pelo nome do
meio, provavelmente para evitar a ostentação do I, II e III ou Júnior e Sênior.
Assim, ele, o avô, o pai e agora o filho mais velho têm o nome de Mackenzie,
mas só Nan, a mulher dele, e os amigos íntimos o chamam de Mack.
Ele nasceu em uma fazenda do
Meio-Oeste, numa família irlandesa-americana de mãos calejadas e regras
rigorosas. Ainda que aparentemente religioso e exageradamente rígido, seu pai
bebia muito, sobretudo quando a chuva não vinha ou quando vinha cedo demais, e
quase sempre entre uma coisa e outra. Mack nunca fala muito sobre o pai, mas
quando O menciona a emoção abandona seu rosto, como se fosse uma maré vazante,
deixando seus olhos sombrios e sem vida.
Pelo pouco que Mack me
contou, sei que seu pai não era o tipo de alcoólatra que cai num sono rápido e
feliz, e sim um bêbado perverso que batia na mulher e depois pedia perdão a
Deus.
A coisa (chegou a tal ponto
que, aos 13 anos e com certa relutância, Mack abriu o coração para um líder da
igreja durante um encontro de jovens. Dominado pelo clima do momento, Mack confessou
chorando que nunca fizera nada para ajudar a mãe nas várias vezes em que
testemunhara o pai bêbado lhe dar uma surra até deixá-la inconsciente. O que
Mack não pensou foi que seu confessor freqüentava a mesma igreja que seu pai.
Quando chegou em casa, o pai o esperava na varanda e a mãe e as irmãs não
estavam. Mais tarde, Mack ficou sabendo que elas tinham sido mandadas à casa da
tia May para que o pai pudesse ter liberdade para dar ao filho rebelde uma lição
inesquecível. Durante quase dois dias, amarrado ao grande carvalho nos fundos
da casa, ele foi castigado com um cinto e com versículos da Bíblia todas as
vezes que o pai acordava de sua bebedeira e largava a garrafa.
Duas semanas depois, quando
enfim conseguiu ficar em pé, Mack simplesmente se levantou e foi embora de
casa. Mas antes de partir colocou veneno de rato em cada garrafa de bebida que conseguiu
encontrar na fazenda. Depois desenterrou de perto da latrina externa a pequena
lata onde guardava todos os seus tesouros: uma foto da família em que o pai
estava meio afastado, uma figurinha de beisebol do Luke Easter de 1950, uma
garrafinha com mais ou menos 30ml de Ma Griffe (o único perfume que sua mãe
havia usado), um carretel de linha e duas agulhas, um pequeno jato F-86 da
Força Aérea americana em metal fundido e todas as economias de sua vida: 15
dólares e 13 centavos. Esgueirou-se pela sala e enfiou um bilhete debaixo do
travesseiro da mãe, enquanto o pai roncava, curtindo mais um porre. O bilhete
dizia simplesmente: "Um dia espero que você possa me perdoar." Jurou
que nunca mais olharia para trás e não olhou — durante um longo tempo.
Treze anos é muito pouco,
porém Mack não tinha muitas opções e se adaptou rapidamente. Ele não fala muito
sobre os anos seguintes. A maior parte foi passada fora do país, trabalhando
pelo mundo, mandando dinheiro para os avós, que o repassavam à mãe. Acho que
num desses países distantes chegou a pegar em armas e participar de algum
conflito terrível; desde que o conheço, ele odeia a guerra com um fervor sinistro.
Seja lá o que for que tenha acontecido, aos 20 e poucos anos foi parar num
seminário na Austrália. Quando Mack se fartou de teologia e filosofia, retornou
aos Estados Unidos, fez as pazes com a mãe e as irmãs e se mudou para o Oregon,
onde conheceu Nannete A. Samuelson e se casou com ela.
Neste mundo de faladores,
Mack é pensador e fazedor. Não diz muita coisa, a não ser que alguém pergunte,
o que pouca gente faz. Quando fala, dá a impressão de ser uma espécie de
alienígena que vê a paisagem das idéias e experiências humanas de modo
diferente de todas as outras pessoas.
O que acontece é que as
coisas que ele diz causam um certo desconforto em um mundo onde a maioria das
pessoas prefere escutar o que está acostumada a ouvir, o que freqüentemente não
é grande coisa. Os que o conhecem geralmente gostam muito de Mack, desde que
ele mantenha guardados seus pensamentos. Porque as coisas que Mack diz nem
sempre deixam as pessoas muito satisfeitas com elas mesmas.
Uma vez Mack me contou que
quando era jovem costumava se abrir com mais liberdade, mas admitiu que a maior
parte dessas conversas era um mecanismo de sobrevivência para encobrir suas feridas.
Freqüentemente acabava derramando a dor sobre quem estivesse por perto. Disse
que tinha prazer em apontar as falhas das pessoas e humilhá-las para manter seu
sentimento de falso poder e controle. Nada muito elogiável.
Enquanto escrevo estas
palavras, reflito sobre o Mack que sempre conheci: um sujeito bastante comum e
certamente sem nada de especial, a não ser para os que o conhecem de verdade.
Vai fazer 56 anos e não chama a atenção, está ligeiramente acima do peso, é
meio careca, baixo e branco — uma descrição que serve para muitos homens dessas
redondezas. Você provavelmente não o notaria numa multidão nem se sentiria
incomodado sentado ao seu lado enquanto ele cochila no trem que o leva à cidade
para a reunião semanal de vendas. Faz a maior parte de seu trabalho num pequeno
escritório em sua casa na Wildcat Road, Vende alguma engenhoca de alta tecnologia
que eu não pretendo entender: trecos eletrônicos que de algum modo fazem tudo andar
mais depressa, como se a vida já não fosse rápida demais.
Você só percebe como Mack é
inteligente quando, por acaso, escuta diálogo dele com um especialista. Já vivi
algumas situações dessas quando a língua falada mal parecia com a nossa e eu me
via lutando para captar os conceitos que jorravam como um rio de jóias despencando
de uma cachoeira. Ele consegue falar com inteligência sob re quase tudo e, apesar
da força de suas convicções, Mack tem um modo gentil e respeitoso que deixa
você manter as suas.
Seus assuntos prediletos são
Deus, a Criação e por que as pessoas acreditam em determinadas coisas. Seus
olhos se iluminam e seu sorriso repuxa os cantos dos lábios para cima. De repente,
como se fosse um garotinho, o cansaço se dissolve e ele rejuvenesce,
praticamente incapaz de se conter. Mas, ao mesmo tempo, Mack não é muito religioso.
Parece ter uma relação de amor e ódio com a religião e talvez até com Deus, que
ele imagina como um ser mal-humorado, distante e altivo. Pequenas gotas de
sarcasmo escorrem às vezes pelas rachaduras de seu reservatório, como dardos
cortantes cheios de veneno. Embora algumas vezes nós dois vamos juntos à mesma
igreja, dá para ver que ele não se sente muito à vontade lá.
Mack está casado com Nan há
pouco mais de 33 anos — na maior parte do tempo, eles são felizes. Diz que ela
salvou sua vida e pagou um preço alto por isso. Por algum motivo que não dá
para compreender, Nan parece amá-lo agora mais do que nunca, apesar de eu ter a
sensação de que ele a magoou de algum modo terrível nos primeiros anos. Acho
que, assim como a maior parte das nossas feridas tem origem em nossos
relacionamentos, o mesmo acontece com as curas, e sei que quem olha de fora não
percebe essa bênção.
De qualquer modo, Mack se
casou. Nan é a argamassa que mantém juntos os ladrilhos de sua família.
Enquanto Mack lutou num mundo com muitos tons de cinza, o dela é principalmente
preto e branco.
O bom senso é tão natural
para Nan que ela nem consegue perceber o dom que isso representa. Ter uma
família a impediu de realizar seu sonho de ser médica, mas ela se destacou como
enfermeira e obteve um reconhecimento considerável em seu trabalho com pacientes
terminais com câncer. Enquanto o relacionamento de Mack com Deus é amplo, o de
Nan é profundo.
Esse casal contraditório teve
cinco filhos de beleza incomum. Mack gosta de dizer que todos pegaram a beleza
dele, "... porque Nan ainda conserva a dela". Dois dos três meninos já
saíram de casa: Jon, casado há pouco, trabalha como vendedor de uma empresa
local, e Tyler, recém-formado na faculdade, está fazendo mestrado. Josh e uma
das duas garotas, Katherine (Kate), cursaram a escola comunitária local. E a
que chegou por último é Melissa — ou Missy, como gostávamos de chamá-la. Ela...
bem, você vai conhecer melhor alguns dos filhos de Mack ao longo deste livro.
Os últimos anos foram... como
é que posso dizer... notavelmente peculiares. Mack mudou: agora está ainda mais
diferente e especial. Durante todos os nossos anos de convívio ele sempre foi
bastante gentil e amável, mas desde a estada no hospital há três anos ficou...
bem, melhor ainda. Tornou-se uma daquelas raras pessoas que estão totalmente à
vontade dentro da própria pele. E eu também me sinto mais à vontade perto dele do
que de qualquer outra pessoa. Cada vez que nos separamos, tenho a sensação de
ter tido a melhor conversa da minha vida, mesmo que eu tenha falado mais. E, a
respeito de Deus, Mack não é mais simplesmente amplo. Ficou muito profundo. Mas
o mergulho custou caro.
Os dias de hoje são muito
diferentes de há sete ou oito anos, quando a Grande Tristeza entrou em sua vida
e ele quase parou de falar. Mais ou menos nessa época, e por quase dois anos,
nossos encontros foram interrompidos, como se por um acordo mútuo não verbalizado.
Eu só via Mack de vez em quando na mercearia ou, mais raramente ainda, na igreja.
E, embora em geral trocássemos um abraço educado, não falávamos de muita coisa importante.
Para ele era até difícil me encarar. Talvez não quisesse entrar numa conversa capaz
de arrancar a casca de seu coração ferido.
Porém tudo isso mudou depois
de um acidente feio com... Mas lá vou eu outra vez botando o carro na frente
dos bois. Vamos chegar lá no devido tempo. Basta dizer que estes últimos anos
parecem ter devolvido a vida de Mack e tirado o fardo da Grande Tristeza. O que
aconteceu há três anos mudou totalmente a melodia de sua vida e é uma canção
que mal posso esperar para tocar.
Apesar de se comunicar
bastante bem verbalmente, Mack não se sente seguro sobre sua capacidade de
escrever — algo que ele sabe que me apaixona. Por isso, perguntou se eu escreveria
esta história, a história dele "para as crianças e para a Nan". Queria
uma narrativa que o ajudasse a expressar para eles a profundidade de seu amor e
que os ajudasse a entender o que havia se passado em seu mundo interior. Você
conhece o lugar: é onde você está sozinho — e talvez com Deus, se acredita
Nele. É claro que Deus pode estar lá, mesmo que você não acredite. Isso seria
bem o jeito de Deus. Não é à toa que ele é chamado de O Grande Intrometido.
A história que você vai ler é
resultado de uma luta minha e do Mack para, durante muitos meses, colocar em
palavras o que ele viveu. Tem um lado um pouco... digamos, muito fantástico.
Não vou julgar se algumas partes são verdadeiras ou não. Prefiro dizer que,
mesmo que algumas coisas não possam ser cientificamente provadas, talvez sejam
verdadeiras. Mas preciso afirmar honestamente que fazer parte desta história me
afetou de modo profundo, desvendando detalhes meus que eu desconhecia. Confesso
que desejo desesperadamente que tudo o que Mack me contou seja verdade. Na
maioria das vezes eu me sinto próximo dele, mas em outras — quando o mundo
visível de concreto e computadores parece ser o real — perco o contato e tenho
dúvidas.
Algumas observações finais.
Mack gostaria que eu lhe transmitisse o seguinte recado: "Se você odiar
esta história, desculpe, ela não foi escrita para você." Mas eu quero
acrescentar: afinal, talvez tenha sido. O que você vai ler é o máximo que Mack
consegue recordar daquilo que aconteceu. Esta é a história dele, não a minha.
Por isso, nas poucas vezes em que apareço, vou me referir a mim mesmo na
terceira pessoa — e do ponto de vista de Mack.
Às vezes a memória pode ser
uma companheira enganosa, em especial com relação ao acidente, e eu não ficarei
surpreso se, apesar de nosso esforço conjunto para contar a história com
exatidão, alguns fatos e lembranças aparecerem distorcidos nestas páginas. Não
é intencional. Garanto que as conversas e eventos foram registrados do modo
mais fiel possível, de acordo com as lembranças de Mack. Portanto, por favor,
tente não se aborrecer com ele. Como você verá, essas coisas não são fáceis de
contar.
- Willie
1. Uma confluência de caminhos
Duas estradas se
bifurcaram no meio da minha vida,
Ouvi um sábio dizer.
Peguei a estrada menos
usada.
E isso fez toda a
diferença cada noite e cada dia.
— Larry Norman (pedindo
desculpas a Robert Frost)
Março desatou uma torrente de
chuvas depois de um inverno de secura anormal. Uma frente fria desceu do Canadá
e foi contida por rajadas de vento que rugiam pelo desfiladeiro, vindas do
Leste do Oregon. Ainda que a primavera certamente estivesse logo ali, depois da
esquina, o deus do inverno não iria abandonar sem luta seu domínio conquistado
com dificuldade. Havia um cobertor de neve recente nas Cascades, e agora a
chuva congelava ao bater no chão do lado de fora da casa. Motivo suficiente para
Mack se enroscar com um livro e uma sidra quente, aconchegando-se no calor do
fogo que estalava na lareira.
Mas, em vez disso, ele passou
a maior parte da manhã no computador. Sentado confortavelmente no escritório de
casa, usando calças de pijama e uma camiseta, ele deu telefonemas de vendas.
Parava com freqüência, ouvindo o som da chuva cristalina tilintar na janela e
vendo o acúmulo vagaroso mas constante do gelo lá fora. Estava se tornando
inexoravelmente prisioneiro do gelo em sua própria casa — e com muito prazer.
Há algo agradável nas
tempestades que interrompem a rotina. A neve ou a chuva gélida nos liberam
subitamente das expectativas, das exigências de resultados e da tirania dos compromissos
e dos horários. Ao contrário da doença, esta é uma experiência mais coletiva do
que individual. Quase podemos ouvir um suspiro de alívio erguer-se em uníssono
na cidade próxima e no campo, onde a natureza interveio para dar uma folga aos
exaustos seres humanos. Todos os afetados pela tempestade são unidos por uma desculpa
mútua. De súbito e inesperadamente o coração fica um pouco mais leve. Não serão
necessárias desculpas por não comparecer a algum compromisso. Todos entendem e
compartilham a mesma justificativa, e a retirada súbita de qualquer pressão
alegra a alma.
É claro que as tempestades
também interrompem negócios, e, embora umas poucas empresas tenham um ganho
extra, outras perdem dinheiro — o que significa que existem os que não sentem
júbilo quando tudo fecha temporariamente. Mas é impossível culpar alguém pela
perda de produção ou por não conseguir chegar ao escritório. Mesmo que a situação
só dure um ou dois dias, de algum modo cada pessoa se sente dona do seu mundo
simplesmente porque aquelas gotinhas de água congelam ao bater no chão.
Até as atividades comuns se
tornam extraordinárias. Ações rotineiras se transformam em aventuras e
freqüentemente são vivenciadas com maior clareza. No fim da tarde, Mack se
encheu de agasalhos e saiu para lutar com os quase 100 metros da comprida entrada
de veículos que vai até a caixa de correio. O gelo havia convertido magicamente
essa tarefa simples do dia-a-dia numa batalha contra os elementos: levantou o
punho em contestação à força bruta da natureza e, num ato de desafio, riu na
cara dela. O fato de que ninguém notaria nem se incomodaria com seu gesto pouco
importava para ele — só o pensamento o fez rir por dentro.
As pelotas de chuva gelada
ardiam no rosto e nas mãos enquanto ele subia e descia com cuidado as pequenas
ondulações do caminho. Mack se divertia pensando que parecia um marinheiro
bêbado indo com cuidado para o próximo boteco. Quando você enfrenta a força de
uma tempestade de gelo, não caminha exatamente com ousadia, demonstrando uma
confiança incontida. Mack teve de se levantar duas vezes antes de finalmente
conseguir abraçar a caixa de correio como se fosse um amigo desaparecido há
muito.
Parou para apreciar a beleza
de um mundo engolfado em
cristal. Tudo refletia luz e colaborava para o brilho
crescente do fim de tarde. As árvores no campo do vizinho tinham-se coberto com
mantos translúcidos, e agora cada uma parecia única ao seu olhar. Era um mundo
radiante e, por um momento, seu esplendor luzidio quase retirou, ainda que por
apenas alguns segundos, a Grande Tristeza dos ombros de Mack.
Demorou quase um minuto para
arrancar o gelo que havia lacrado a tampa da caixa de correio. A recompensa por
seus esforços foi um único envelope onde havia apenas seu primeiro nome escrito
à máquina do lado de fora; sem selo, sem carimbo e sem remetente. Curioso, ele
rasgou a borda do envelope, tarefa que não foi fácil, pois os dedos começavam a
se enrijecer de frio. Dando as costas para o vento que lhe tirava o fôlego,
finalmente conseguiu arrancar do ninho um pequeno retângulo de papel sem dobra.
A mensagem datilografada dizia simplesmente:
Mackenzie
Já faz um tempo.
Senti sua falta.
Estarei na cabana no
fim de semana que vem, se você quiser me encontrar.
Papai
Mack se enrijeceu enquanto
uma onda de náusea percorria seu corpo e, com igual rapidez, se transmutava em ira. Esforçava-se
para pensar o mínimo possível na cabana e, mesmo quando ela lhe vinha à mente,
seus pensamentos não eram agradáveis nem bons. Se aquilo era uma piada de mau
gosto, a pessoa realmente havia se superado. E assinar “Papai” só tornava a coisa
ainda mais horrenda.
— Idiota — resmungou,
pensando em Tony, o carteiro: um italiano exageradamente amigável, com grande
coração mas pouco tato. Por que ele entregaria um envelope tão ridículo? Nem
estava selado. Mack enfiou com raiva o envelope e o bilhete no bolso do casaco
e virou-se para começar a deslizar na direção de casa. Os sopros fortes do
vento, que a princípio haviam diminuído de intensidade, agora o empurravam,
encurtando o tempo necessário para atravessar a minigeleira que engrossava sob seus
pés.
Estava se saindo bem,
obrigado, até chegar à entrada de veículos, que se inclinava um pouco para
baixo e à esquerda. Sem qualquer esforço ou intenção, começou a aumentar a
velocidade, deslizando com sapatos que tinham praticamente tanta firmeza quanto
um pato pousando num lago gelado. Com os braços balançando loucamente na
esperança de, não sabia como, manter o equilíbrio, Mack se viu adernando de
encontro à única árvore de tamanho substancial que ladeava a entrada de
veículos — a única cujos galhos mais baixos ele havia cortado uns poucos meses
antes. Agora ela se erguia ansiosa para abraçá-lo, seminua e aparentemente
desejosa de uma pequena retribuição. Numa fração de segundo, ele escolheu o
caminho da covardia e tentou despencar no chão, permitindo que os pés
escorregassem — o que eles de qualquer modo fariam. Melhor ter a bunda dolorida
do que arrancar lascas do rosto.
Mas a descarga de adrenalina
o fez compensar exageradamente, e em câmara lenta Mack viu os pés se erguerem à
sua frente, como se puxados para cima por alguma armadilha da selva. Bateu com
força, primeiro com a nuca, e escorregou até um monte na base da árvore
brilhosa, que pareceu se erguer acima dele com uma expressão de presunção e
nojo, além de uma certa decepção.
O mundo pareceu ficar escuro
por um instante. Ele permaneceu ali deitado, tonto e olhando o céu, franzindo
os olhos enquanto a precipitação gelada esfriava rapidamente seu rosto
vermelho. Durante uma pausa ligeira, tudo pareceu estranhamente quente e pacífico,
com sua cólera momentaneamente nocauteada pelo impacto.
— Agora, quem é o idiota? — murmurou
consigo mesmo, esperando que ninguém estivesse olhando.
O frio se entranhava
rapidamente pelo casaco e pelo suéter, e Mack soube que a chuva gelada que
estava ao mesmo tempo se derretendo e se congelando embaixo dele iria logo se
tornar um enorme desconforto. Gemendo e sentindo-se muito velho, rolou
apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Foi então que viu a marca de um vermelho
forte traçando sua jornada desde o ponto de impacto até o destino final. Como
se gerado pela súbita percepção do ferimento, um martelar surdo começou a subir
pela nuca. Instintivamente ele procurou a fonte das batidas de tambor e trouxe
de volta a mão ensangüentada.
Com o gelo áspero e o
cascalho afiado cortando as mãos e os joelhos, Mack meio engatinhou, meio
escorregou, até conseguir chegar a uma parte plana da entrada de veículos.
Com um esforço considerável,
finalmente pôde ficar de pé e avançar cautelosamente, centímetro a centímetro,
em direção à casa, humilhado pelos poderes do gelo e da gravidade.
Assim que entrou, Mack se
livrou metodicamente e do melhor modo que pôde das camadas de roupa de frio,
cornos dedos meio congelados reagindo com quase tanta destreza quanto se fossem
porretes enormes na ponta dos braços. Decidiu largar aquela bagunça molhada e
manchada de sangue ali mesmo na entrada, onde a deixara cair, e avançou
dolorosamente até o banheiro para examinar os ferimentos. Não existia dúvida de
que o caminho gelado havia vencido. Do talho na nuca escorria sangue ao redor
de algumas pedrinhas ainda encravadas no couro cabeludo. Como havia temido, um
galo significativo tinha se formado, emergindo como uma baleia-corcunda
rompendo as ondas de seu cabelo ralo.
Enquanto tentava ver a nuca
com um pequeno espelho de mão que refletia uma imagem invertida do espelho do
banheiro, Mack achou difícil fazer um curativo. Depois de uma curta frustração,
desistiu, incapaz de obrigar as mãos a irem na direção certa e sem saber qual
dos dois espelhos mentia para ele. Tateando com cuidado ao redor do talho
encharcado, conseguiu tirar os pedaços maiores de cascalho, até que a dor ficou
forte demais para continuar. Pegou um pouco de pomada de primeiros socorros e
tapou o ferimento do melhor modo que pôde. Em seguida amarrou uma toalha de
rosto na nuca usando um pouco de gaze que encontrou numa gaveta do banheiro.
Olhando-se no espelho, pensou que se parecia um pouco com um marinheiro rude
saído do romance Moby Dick. Isso o fez rir, depois se encolher.
Teria de esperar até que Nan
chegasse em casa para receber qualquer atendimento médico verdadeiro, uma das
muitas vantagens de ser casado com uma enfermeira. De qualquer modo, sabia que
quanto pior fosse a aparência, mais solidariedade iria receber.
Se prestarmos bastante
atenção, sempre conseguiremos descobrir alguma compensação no sofrimento.
Engoliu dois analgésicos para diminuir a dor e mancou até a porta da frente.
Nem por um instante Mack se
esqueceu do bilhete. Remexendo na pilha de roupas molhadas e ensangüentadas,
finalmente o encontrou no bolso do casaco. Olhou, voltou para o escritório,
achou o número da agência de correio e ligou. Como esperava, Annie, a matronal
chefe do correio e guardiã dos segredos d a população local, atendeu.
— Oi, por acaso o Tony está aí?
— Oi, Mack, é você? Reconheci
sua voz.
— Claro que reconheceu.
— Desculpe, mas o Tony ainda
não voltou. Na verdade, acabo de falar com ele pelo rádio. Está na metade da
Wildcat, nem chegou à sua casa ainda. O que você quer que eu diga a ele, se
conseguir voltar vivo?
— Na verdade você já
respondeu à minha pergunta.
Houve uma pausa do outro
lado.
— O que há de errado, Mack?
Ainda está fumando muito bagulho, ou só faz isso nas manhãs de domingo para
conseguir suportar o culto na igreja? — Ela começou a rir, encantada com o
brilho de seu próprio senso de humor.
— Bom, Annie, você sabe que
eu não fumo bagulho. Nunca fumei e nem quero.
Claro que Annie sabia disso,
mas Mack não podia se arriscar. Não seria a primeira vez em que o senso de
humor de Annie se transformaria numa boa história que logo se tornaria um
"fato". Ele podia ver seu nome sendo acrescentado à corrente de
orações da igreja.
— Tudo bem, eu falo com o
Tony outra hora, não é importante.
— Então está certo, e fique
dentro de casa, que é mais seguro. Você sabe, um cara velho como você pode
perder o senso de equilíbrio com o passar dos anos.
Do jeito que as coisas andam,
talvez Tony não consiga chegar à sua casa.
— Obrigado, Annie. Tentarei
lembrar do seu conselho. Falo com você mais tarde. Tchau.
Sua cabeça latejava cada vez
mais, pequenos martelos de forja batendo no ritmo do coração.
"Estranho", pensou, "quem ousaria colocar algo assim na nossa
caixa de correio?" Os analgésicos ainda não haviam surtido o efeito
desejado, mas eram suficientes para embotar o início de preocupação que ele
estava sentindo, e de repente Mack ficou muito cansado. Pousou a cabeça na mesa
e pensou que havia acabado de cair no sono quando o telefone o acordou com um
susto.
— Ah... alô?
— Oi, amor. Parece que você
estava dormindo.
Ele sentiu na voz de Nan uma animação
incomum, mesmo percebendo a tristeza encoberta que espreitava logo abaixo da
superfície de cada conversa. Mack ligou a luminária da mesa e olhou o relógio,
surpreso ao constatar que dormira por cerca de duas horas.
— Ah, desculpe. Acho que
cochilei um pouco.
— É, você parece meio grogue.
Tudo bem?
— Tudo. — Mesmo estando quase
escuro lá fora, Mack podia ver que a tempestade não havia amainado. Tinha até
depositado mais uns 5
centímetros de gelo. Os galhos das árvores pendiam
baixos e ele sabia que alguns acabariam se partindo com o peso, principalmente
se o vento aumentasse. — Tive um pequeno entrevero na entrada de veículos
quando fui pegar a correspondência. Mas, fora isso, tudo bem. E você?
— Ainda estou na casa da
Arlene e acho que eu e as crianças vamos passar a noite aqui. É sempre bom para
a Kate estar com a família... parece que isso restaura um pouco o seu equilíbrio.
— Arlene era a irmã de Nan, que morava do outro lado do rio, em Washington.
— De qualquer modo, está
escorregadio demais para sair. Espero que melhore de manhã. Queria ter chegado
em casa antes de o tempo ficar tão ruim, mas o que se há de fazer? — Houve uma
pausa. — Como está tudo por aí?
— Bem, está absolutamente,
espantosamente lindo e muitíssimo mais seguro de olhar do que de andar,
acredite. Eu certamente não quero que você tente chegar aqui nessa situação. Nada
se mexe. Acho que nem o Tony conseguiu trazer a correspondência.
— Achei que você já tinha
pegado a correspondência.
— Não, achei que o Tony tinha
passado e fui pegar. E — Mack hesitou, olhando o bilhete sobre a mesa — não
havia nenhuma correspondência. Liguei para Annie e ela disse que o Tony
provavelmente não ia conseguir subir a ladeira. De qualquer modo — ele mudou rapidamente
de assunto para evitar mais perguntas —, como está a Kate?
Houve uma pausa e depois um
longo suspiro. Quando Nan falou, sua voz saiu num sussurro, e Mack percebeu que
ela estava tapando o bocal do outro lado.
— Mack, eu gostaria de saber.
Por mais que eu tente, não consigo. É como se eu falasse com uma pedra. Quando
tem gente da família por perto, ela parece sair um pouco da casca, mas depois
some de novo. Simplesmente não sei o que fazer. Rezei e rezei para que Papai
nos auxiliasse a encontrar um modo de ajudá-la, mas... — Nan parou de novo — parece
que ele não está ouvindo.
Era assim. Papai era o nome
com que Nan se referia a Deus e expressava o deleite que lhe provocava sua
amizade íntima com ele.
— Querida, tenho certeza de
que Deus sabe o que está fazendo. Tudo vai dar certo. — Essas palavras não lhe
trouxeram conforto, mas ele esperava que pudessem aliviar a preocupação que
sentia na voz dela.
— Eu sei — Nan suspirou. — Só
gostaria que ele andasse mais depressa.
— Eu também — foi tudo o que
Mack conseguiu dizer. — Bom, você e as crianças fiquem aí, onde é seguro. Dê
lembranças à Arlene e ao Jimmy e agradeça a eles por mim. Espero ver você
amanhã.
— Eu também. Se cuide e me
ligue se precisar de alguma coisa. Tchau.
Mack sentou-se e olhou o
bilhete. Era confuso e doloroso tentar evitar a cacofonia de emoções
perturbadoras e de imagens sombrias que nublava sua mente — um milhão de pensamentos
viajando a um milhão de quilômetros por hora. Por fim desistiu, dobrou o bilhete,
enfiou-o numa pequena lata que ficava sobre a mesa e apagou a luz.
Conseguiu encontrar algo para
aquecer no microondas, depois pegou alguns cobertores e travesseiros e foi para
a sala de estar. Ao olhar rapidamente para o relógio, viu que o programa de
Bill Moyer tinha acabado de começar; era seu programa predileto, que ele tentava
não perder nunca. Moyer era uma das pouquíssimas pessoas que Mack adoraria conhecer:
um homem brilhante e franco, capaz de exprimir com clareza incomum uma compaixão
intensa pelas pessoas e pela verdade.
Quase sem pensar e sem
afastar os olhos da televisão, Mack estendeu a mão para a mesinha de canto,
pegou um porta-retrato com a imagem de uma menininha e o apertou contra o
peito. Com a outra mão puxou os cobertores até o queixo e se aninhou mais fundo
no sofá.
Logo o som de roncos suaves
encheu o ar, enquanto o aparelho exibia um estudante no Zimbábue, que fora
espancado por falar contra o governo. Mas Mack já havia saído da sala para
lutar com seus sonhos. Talvez essa noite não houvesse pesadelos, só visões, quem
sabe, de gelo, árvores e gravidade.
2. A escuridão se aproxima
Nada nos deixa tão
solitários quanto nossos segredos.
— Paul Tournier
Durante a noite um vento
sudoeste soprou pelo vale de Villamette, libertando a paisagem do aperto gélido
da tempestade. Em menos de 24 horas instalou-se um calor de início de verão.
Mack dormiu até tarde, um
daqueles sonos sem sonhos que parecem durar apenas um instante.
Quando finalmente se arrastou
do sofá, surpreendeu-se ao descobrir que as loucuras do gelo haviam se dissolvido
tão depressa, mas deliciou-se ao ver Nan e as crianças aparecerem menos de uma
hora depois. Primeiro veio a bronca previsível por ele não ter posto as roupas
sujas de sangue na lavanderia. Em seguida, uma quantidade adequada de
exclamações que acompanharam o exame que ela fez no ferimento da cabeça. O
cuidado agradou imensamente a Mack e logo Nan o havia limpado, remendado e
alimentado. Mas não houve menção ao bilhete sempre presente em sua mente. Ele
ainda não sabia o que pensar a respeito e não queria envolver Nan em algum tipo
de piada cruel.
As pequenas distrações, como
a tempestade de gelo, eram uma trégua bem-vinda que afastava por instantes a
presença terrível de sua companheira constante: a Grande Tristeza, como ele a chamava.
Pouco depois do verão em que
Missy desaparecera, a Grande Tristeza havia pousado nos
ombros de Mack como uma capa invisível, mas quase palpável. O peso daquela
presença embotava seus olhos e curvava seus ombros. Até os esforços para
afastá-la eram exaustivos, como se os braços estivessem costurados nas dobras
escuras do desespero que agora, de algum modo, tinha se tornado parte dele.
Comia, trabalhava, amava, sonhava e brincava sempre usando essa vestimenta,
como se fosse um roupão de chumbo.
Andava com dificuldade pela
melancolia tenebrosa que sugava a cor de tudo.
Às vezes ele podia sentir a
Grande Tristeza se apertando lentamente ao redor do peito e do coração, como os
anéis esmagadores de uma jibóia, espremendo líquido dos seus olhos até ele
achar que não existia mais nenhuma gota. Em outras ocasiões sonhava que seus
pés estavam presos em lama pegajosa, enquanto tinha rápidos vislumbres de Missy
correndo pelo caminho que descia pela floresta à frente dele, o vestido
vermelho de algodão leve enfeitado pelas flores silvestres que piscavam entre
as árvores. Ela não fazia qualquer idéia da sombra escura que a seguia. Ainda
que Mack tentasse freneticamente gritar, nenhum som saía e ele sempre chegava
tarde demais e impotente demais para salvá-la. Sentava-se empertigado na cama, o
suor pingando do corpo torturado, enquanto ondas de náusea, culpa e
arrependimento rolavam sobre ele como um maremoto surreal.
A história do desaparecimento
de Missy infelizmente não é como outras que a gente costuma ouvir. Tudo
aconteceu no fim de semana do Dia do Trabalho, o último brado de alegria do
verão antes de outro ano de escola e rotinas de outono. Mack decidiu corajosamente
levar as três crianças menores para um último acampamento no lago Walowa, no
Nordeste do Oregon. Nan já estava inscrita num curso de reciclagem em Seattle,
um dos dois garotos mais velhos havia retornado à faculdade e o outro estava trabalhando
como monitor num acampamento de verão. Mas Mack confiava na própria capacidade
de combinar corretamente conhecimentos de sobrevivência ao ar livre e habilidades
maternas. Afinal, Nan era uma boa professora e ele, um aluno aplicado.
O sentimento de aventura e a
euforia do acampamento tomaram conta de todos, e a casa virou um redemoinho de
atividades. Num determinado ponto da confusão, Mack decidiu que precisava de
uma trégua e se acomodou na cadeira do papai depois de expulsar Judas, o gato
da família. Já ia ligar a TV quando Missy entrou correndo, segurando sua
caixinha de plástico transparente.
— Posso levar minha coleção
de insetos para acampar com a gente? — perguntou.
— Quer levar seus bichos? — grunhiu
Mack, sem prestar muita atenção.
— Pai, eles não são bichos.
São insetos. Olha, tenho um monte aqui.
Relutante, Mack deu atenção à
filha, que, vendo-o concentrado, começou a explicar o conteúdo do seu
"baú" do tesouro.
— Olha, tem dois gafanhotos.
E olha aquela folha, é a minha lagarta, e em algum lugar por aí... Ali! Está
vendo minha joaninha? E tenho uma mosca em algum lugar e umas formigas.
Enquanto ela fazia o
inventário da coleção, Mack se esforçou ao máximo para demonstrar que estava
atento, balançando a cabeça.
— Então — terminou Missy. — Você
deixa eu levar?
— Claro que sim, querida.
Talvez a gente possa soltá-los na floresta quando estivermos lá.
— Não pode, não! — veio uma
voz da cozinha. — Missy, você tem de deixar a coleção em casa, querida.
Acredite, eles estão mais seguros aqui. — Nan esticou a cabeça pela quina da
parede e franziu a testa amorosamente para Mack, enquanto ele encolhia os ombros.
— Eu tentei, querida — sussurrou
ele para Missy.
— Grrr — rosnou Missy. E,
sabendo que a batalha estava perdida, pegou a caixa e saiu.
Na noite de quinta-feira a
van estava lotada e a carreta-barraca de reboque presa, com luzes e freios
testados. Na sexta de manhã, depois de um último sermão de Nan para os filhos
sobre segurança, obediência, escovar os dentes de manhã, não pegar gatos com listras
brancas nas costas e todo tipo de outras coisas, todos saíram: Nan para o norte
e Mack e os três mosqueteiros para o leste. O plano era voltar na noite de
terça-feira, véspera do primeiro dia de aula.
Mack e os filhos pararam na
cachoeira Multnomah para comprar um livro de colorir e lápis de cor para Missy
e duas máquinas fotográficas descartáveis e à prova d'água para Kate e Josh.
Depois decidiram subir a curta distância da trilha até a ponte diante da cachoeira.
Antigamente havia um caminho rodeando o poço principal e entrando numa caverna
rasa atrás da queda-d'água, mas infelizmente ele tinha sido bloqueado pelas autoridades
do parque por causa da erosão. Missy adorava o lugar e implorou ao pai para
contar a lenda da bela jovem índia, filha de um chefe da tribo Multnomah. Foi preciso
um pouco de insistência, mas por fim Mack cedeu e recontou a história enquanto olhavam
para a névoa que envolvia a cachoeira.
A história falava de uma
princesa, a única filha que restava ao pai idoso. O chefe adorava a filha e
escolheu com cuidado um marido para ela: um jovem chefe guerreiro da tribo
Clatsop que a amava. As duas tribos se juntaram para as comemorações do casamento.
Mas, antes do começo da festa, uma doença terrível começou a matar muitos
homens.
Os anciãos e os chefes se
reuniram para discutir o que poderiam fazer contra a doença devastadora que
dizimava rapidamente seus guerreiros. O curandeiro mais velho contou que seu
pai, perto de morrer, já bem idoso, havia previsto uma doença terrível que mataria
seus homens, uma doença que só poderia ser vencida se a filha de um chefe, pura
e inocente, oferecesse de boa vontade a vida pelo seu povo. Para realizar a
profecia, ela deveria subir voluntariamente num penhasco acima do Grande Rio e
pular para a morte nas rochas abaixo.
Uma dúzia de jovens, todas
filhas dos vários chefes, foram trazidas diante do Conselho. Depois de
demorados debates, os anciãos decidiram que não poderiam pedir um sacrifício
tão precioso, sobretudo porque não sabiam se a lenda era verdadeira.
Mas a doença continuou se
espalhando implacável entre os homens, e finalmente o jovem chefe guerreiro, o
futuro esposo, caiu doente. A princesa, que o amava muito, soube no fundo do
coração que algo precisava ser feito e, depois de lhe dar um leve beijo na
testa, afastou-se.
Demorou toda a noite e todo o
dia seguinte para chegar ao local indicado na lenda, um penhasco altíssimo
acima do Grande Rio e das terras mais além. Depois de rezar e se entregar ao
Grande Espírito, ela cumpriu a profecia sem hesitar, pulando para a morte nas rochas
abaixo.
Nas aldeias, na manhã
seguinte, os doentes se levantaram saudáveis e fortes. Houve grande júbilo e
comemoração, até que o jovem guerreiro descobriu que sua adorada noiva havia
sumido. À medida que a percepção do que acontecera se espalhava rapidamente
entre o povo, muitos empreenderam a jornada até o lugar onde sabiam que iriam
encontrá-la. Enquanto se reuniam em silêncio ao redor do corpo destroçado na
base do penhasco, seu pai, tomado pelo sofrimento, gritou para o Grande
Espírito, pedindo que o sacrifício dela fosse lembrado para sempre. Nesse
momento, do lugar de onde ela havia pulado começou a jorrar água,
transformando-se numa névoa fina que caía aos pés deles, lentamente formando um
lago maravilhoso.
Normalmente, Missy adorava a
história. A narrativa possuía todos os elementos de um verdadeiro conto de
redenção, não muito diferente da história de Jesus que ela conhecia tão bem.
Falava de um pai que amava a filha única e de um sacrifício anunciado por um profeta.
Por causa do amor, a jovem escolheu dar sua vida para salvar o noivo e as
tribos da morte certa.
Mas, dessa vez, Missy ficou
quieta quando a história terminou. Virou-se imediatamente e dirigiu-se para a
van, como se dissesse: "Tudo bem, não tenho mais nada para fazer aqui.
Vamos indo."
Deram uma parada rápida para
um lanche junto ao rio Hood, depois voltaram para a auto-estrada que iria
levá-los pelos últimos 115
quilômetros até a cidade de Joseph. O lago o local de
acampamento ficavam poucos quilômetros depois de Joseph. Quando chegaram,
arrumaram tudo — não exatamente como Nan teria preferido, mas do jeito que lhes
pareceu melhor.
Naquele fim de tarde, sentado
entre as três crianças que riam assistindo a um dos maiores espetáculos da
natureza, o coração de Mack foi subitamente inundado por uma alegria inesperada.
Um pôr-do-sol de cores e padrões brilhantes destacava as poucas nuvens que haviam
esperado nas coxias para se tornarem os atores centrais nessa apresentação
única.
Ele era um homem rico,
pensou, em todos os sentidos que mais importavam.
Quando acabaram de limpar os
restos do jantar, a noite havia caído. Os cervos tinham ido para o lugar onde
dormem. Seu turno foi substituído pelos encrenqueiros noturnos: guaxinins,
esquilos e tâmias, que perambulavam em bandos procurando qualquer recipiente
ligeiramente aberto. Os Phillips sabiam disso por experiência própria. A primeira
noite que tinham passado nesses locais de acampamento lhes custara quatro dúzias
de barras de cereal, uma caixa de chocolate e todos os biscoitos de creme de amendoim.
Antes que ficasse muito
tarde, os quatro deram uma pequena caminhada para longe das fogueiras e das
lanternas do acampamento, até um lugar escuro e quieto onde pudessem se deitar
e olhar maravilhados a Via-Láctea, espantosa e intensa sem a poluição das luzes
da cidade. Mack era capaz de ficar horas deitado olhando aquela vastidão.
Sentia-se incrivelmente pequeno, mas em paz. De todos os lugares em que a presença de
Deus se fazia sentir, era ali, rodeado pela natureza e sob as estrelas, um dos mais
tocantes. Quase podia ouvir o hino de adoração que os astros faziam ao Criador,
e em seu coração relutante ele participava do melhor modo possível.
Então voltaram ao acampamento
e, depois de várias viagens aos banheiros, Mack enfiou os três na segurança de
seus sacos de dormir. Rezou brevemente com Josh antes de ir até onde Kate e
Missy estavam esperando. Quando chegou a vez de Missy rezar, ela quis conversar
com o pai.
— Papai, por que ela teve de
morrer?
Mack demorou um momento para
descobrir do que Missy estava falando. Percebeu subitamente que a princesa
índia devia estar na cabeça da menina desde cedo, quando ele contara a
história.
— Querida, ela não teve de
morrer. Ela escolheu morrer para salvar seu povo. Eles estavam doentes e ela
queria que se curassem.
Houve um silêncio e Mack
soube que outra pergunta estava se formando no escuro.
— Isso aconteceu mesmo? — A
pergunta agora vinha de Kate, obvia mente interessada na conversa.
Mack pensou antes de falar.
— Não sei, Kate. É uma lenda,
e às vezes as lendas são histórias que ensinam uma lição.
— Então não aconteceu de
verdade? — perguntou Missy.
— Pode ter acontecido, querida.
Às vezes as lendas nascem de histórias verdadeiras, coisas que aconteceram de
fato.
De novo silêncio, e depois:
— Então a morte de Jesus é
uma lenda?
Mack podia ouvir as
engrenagens girando na mente de Kate.
— Não, querida, a história de
Jesus é verdadeira. E sabe de uma coisa? Acho que a história da princesa índia
provavelmente também é.
Mack esperou enquanto suas
filhas processavam os pensamentos. Missy foi a próxima a perguntar:
— O Grande Espírito é outro
nome para Deus? Você sabe, o pai de Jesus?
Mack sorriu no escuro.
Obviamente as orações noturnas de Nan estavam surtindo efeito.
— Acho que sim. É um bom nome
para Deus, porque ele é um espírito e é grande.
— Então por que ele é tão
mau?
Ah, ali estava a pergunta que
viera crescendo na cabecinha da filha.
— Como assim, Missy?
— Bom, o Grande Espírito fez
a princesa pular do penhasco e fez Jesus morrer numa
cruz. Isso parece muito mau.
Mack ficou travado. Não sabia
como responder. Com seis anos e meio, Missy estava fazendo perguntas com as
quais pessoas sábias haviam lutado durante séculos.
— Querida, Jesus não achava
que o pai dele era mau. Achava que o pai era cheio de amor e que o amava muito.
O pai dele não o fez morrer. Jesus escolheu morrer porque ele e o pai amavam
muito você, eu e todas as pessoas. Ele nos salvou da doença, como a princesa.
Agora veio o silêncio mais
longo e Mack começou a imaginar que a menina teria caído no sono. Quando ia se
inclinar para lhes dar um beijo, uma vozinha com um tremor perceptível rompeu a
quietude.
— Papai?
— Sim, querida?
— Algum dia eu vou ter de
pular de um penhasco?
O coração de Mack doeu quando
ele entendeu a verdadeira questão. Abraçou a menininha e a apertou. Com a voz
um pouco mais rouca do que o usual, respondeu gentilmente:
— Não, querida. Nunca vou
pedir para você pular de um penhasco, nunca, nunca, jamais.
— Então Deus vai me pedir
para pular de um penhasco?
— Não, Missy. Ele nunca
pediria que você fizesse uma coisa dessas.
Ela se aninhou mais fundo em
seus braços.
— Está bem! Me dá um abraço
apertado. Boa noite, papai. Eu te amo.
— E apagou, caindo num sono
profundo embalado por sonhos bons e doces.
Depois de alguns minutos,
Mack a colocou suavemente no saco de dormir.
— Você está bem, Kate? — sussurrou
enquanto lhe dava um beijo.
— Estou — veio a resposta
murmurada. — Pai?
— O que é, querida?
— A Missy faz perguntas boas,
não é?
— Com certeza. É uma
menininha especial. Você também é, só que não é mais tão pequenininha. Agora
durma, temos um grande dia pela frente. Lindos sonhos, querida.
— Você também, pai. Te amo
demais!
— Te amo também, de todo o
coração. Boa noite.
Mack fechou o zíper do
reboque ao sair, assoou o nariz e enxugou as lágrimas que desciam pelo rosto.
Fez uma oração silenciosa de agradecimento a Deus e foi coar um pouco de café.
3. O mergulho
A alma é curada ao estar
com crianças.
— Fedor Dostoievski
O Parque Estadual do Lago
Wallowa, no Oregon, e a área ao redor têm sido chamados, com propriedade, de
Pequena Suíça da América. Montanhas escarpadas e agrestes erguem-se até quase 3
mil metros e, no meio delas, há inúmeros vales escondidos cheios de riachos,
trilhas de caminhada e altas campinas cobertas de flores silvestres. O lago
Wallowa é a passagem para a Área de Recreação Nacional de Hells Canyon, onde
está o maior desfiladeiro da América do Norte. Esculpido no decorrer de séculos
pelo rio Snake, em alguns lugares tem mais de 3 quilômetros do topo
à base, e às vezes 16
quilômetros de uma borda à outra.
Na Área de Recreação há mais
de 1.400 quilômetros
de trilhas de caminhada. Os vestígios da presença da tribo Nez Perce, que antes
dominava a região, estão espalhados por essa vastidão, junto com os dos colonos
brancos que passavam a caminho do Oeste. A cidade de Joseph, ali perto, é assim
chamada por causa de um poderoso chefe tribal cujo nome indígena significava Trovão
Rolando Montanha Abaixo. A área oferece abundante flora e vida selvagem,
incluindo alces, ursos, cervos e cabritos monteses.
O lago Wallowa mede 8 quilômetros de
comprimento e um e meio de largura e foi formado, segundo alguns, por geleiras
que ali se encontravam há 9 milhões de anos. Fica a cerca de um quilômetro e
meio da cidade de Joseph, a uma altitude de 1.340 metros. A
temperatura da água é de tirar o fôlego durante a maior parte do ano, mas fica
agradável no fim do verão para um nado rápido perto da margem.
Mack e as crianças
preencheram os três dias seguintes com diversão e lazer. Missy, aparentemente
satisfeita com as respostas do pai, não voltou ao assunto da princesa, mesmo
quando uma caminhada diurna os levou perto de penhascos altíssimos.
Passaram algumas horas
andando de pedalinho junto à margem do lago, esforçaram-se ao máximo para
ganhar um prêmio no minigolfe, cavalgaram nas trilhas e visitaram as lojinhas
da cidade de Joseph.
Ao longo do fim de semana, duas
outras famílias juntaram-se magicamente ao mundo dos Phillips. Como acontece freqüentemente,
as crianças deram início à amizade. Josh gostou especialmente de conhecer os
Ducette, pois a filha mais velha, Amber, era uma linda mocinha mais ou menos da
sua idade. Kate adorou implicar com o irmão mais velho por causa disso, e ele
reagiu indo irritado para a carreta-barraca, vociferando e resmungando. Amber
tinha uma irmã, Emmy, apenas um ano mais nova do que Kate, e as duas passaram a
brincar juntas. Vicky e Emil Ducette tinham viajado de sua casa no Colorado,
onde Emil trabalhava como agente policial do Serviço de Pesca e Vida Selvagem e
Vicky cuidava do lar e do filho caçula, J. J., que agora tinha quase um ano.
Os Ducette apresentaram Mack
e os filhos a um casal canadense que haviam conhecido antes, Jesse e Sarah
Madison. Pareciam tranqüilos, despretensiosos, e Mack gostou deles à primeira
vista. Os dois trabalhavam como consultores independentes, Jesse na área de recursos
humanos e Sarah na de administração. Missy ligou-se logo a Sarah e as duas costumavam
ir ao acampamento dos Ducette para ajudar Vicky com J. J.
O domingo nasceu radioso e
todo o grupo se empolgou com a idéia de pegar o teleférico do lago Wallowa até
o topo do monte Howard — 2.484
metros acima do nível do mar. Jesse e Sarah convidaram
todos para almoçar em um restaurante no topo da montanha. Depois passariam o
resto do dia caminhando até os cinco pontos de observação e os mirantes.
Armados de máquinas
fotográficas, óculos escuros, garrafas d'água e protetor solar, partiram no
meio da manhã. Como já imaginavam, fizeram uma verdadeira festa com hambúrgueres,
batatas fritas e milk-shakes no restaurante. A altitude estimulou o apetite — até
Missy seguiu devorar um hambúrguer inteiro e a maior parte das outras
guloseimas.
Depois do almoço, caminharam
pelas trilhas até os mirantes próximos. Dali se divisava um panorama
deslumbrante que ia até o horizonte, semeado de pequenas cidades. No fim da
tarde estavam todos cansados e felizes. Missy, que Jesse havia carregado nos
ombros até os dois últimos mirantes, dormia no colo do pai enquanto chacoalhavam
no teleférico de descida.
"Este é um daqueles
momentos raros e preciosos", pensou Mack, "que pegam a gente de
surpresa e quase tiram o fôlego. Se Nan estivesse aqui, seria realmente
perfeito."
Ajeitou o peso de Missy numa
posição mais confortável para ela e tirou o cabelo do rosto da menina para
olhá-la. A sujeira e o suor do dia só faziam, estranhamente, aumentar seu ar de
inocência e sua beleza. "Por que eles têm de crescer?" pensou ao dar um
beijo na testa da filha.
Naquela noite, as três
famílias se reuniram para um último jantar juntos. Mais tarde, os adultos
sentaram-se bebericando café ao redor de uma fogueira, enquanto Emil contava
suas aventuras em operações contra quadrilhas de contrabando de animais em extinção. Era um
narrador hábil e sua profissão oferecia um enorme elenco de histórias hilariantes.
Tudo era fascínio e Mack voltou a ser inundado por um intenso bem-estar.
Como acontece freqüentemente
quando uma fogueira de acampamento arde por muito tempo, a conversa passou do
humorístico para o mais pessoal. Sarah parecia ansiosa para conhecer melhor o
resto da família de Mack, especialmente Nan.
— Como ela é, Mackenzie?
Mack adorava exaltar as maravilhas
de sua Nan.
— Modéstia à parte, Nan é
linda por dentro e por fora. — Sorriu encabulado e viu os dois olhando
afetuosamente para ele. Estava realmente com saudade de sua mulher. — O nome
completo dela é Nannette, mas quase todo mundo só a chama de Nan. Tem uma
tremenda reputação na comunidade médica, pelo menos no Noroeste. É enfermeira e
trabalha com pacientes terminais de câncer. É um trabalho duro, mas ela adora.
Bom, Nan escreveu alguns textos e tem feito palestras em congressos.
— Verdade? — perguntou Sarah.
— Sobre o que ela fala?
— Ela ajuda as pessoas que
estão diante da morte a pensarem no relacionamento com
Deus.
— Eu adoraria ouvir mais
sobre isso — encorajou Jesse enquanto atiçava o fogo com um graveto, fazendo-o
avivar-se com vigor renovado.
Mack hesitou. Por mais que se
sentisse à vontade com aqueles dois, não os conhecia de fato e a forma como a
conversa se aprofundara o deixava meio inquieto. Procurou responder de maneira
sucinta.
— Nan é muito melhor nisso do
que eu. Acho que ela pensa em Deus de modo diferente da maioria das pessoas.
Ela até o chama de Papai, porque se sente muito íntima dele, se é que isso faz
sentido para vocês.
— Claro que faz — exclamou
Sarah, enquanto Jesse confirmava com a cabeça. — Toda a sua família chama Deus
de Papai?
— Não — respondeu Mack rindo.
— As crianças às vezes chamam, mas eu não me sinto confortável com isso. Parece
um pouco familiar demais para mim. De qualquer modo, Nan tem um pai maravilhoso
e, por isso, acho que é mais fácil para ela.
A coisa havia escapado e Mack
estremeceu por dentro esperando que ninguém tivesse percebido; mas Jesse o
olhava com interesse.
— Seu pai não era
maravilhoso? — perguntou com gentileza.
— É. — Mack fez uma pausa. — Acho
que se pode dizer que ele não era maravilhoso. Morreu quando eu era criança, de
causas naturais. — Riu, mas o som foi oco. Olhou para os dois. — Bebeu até
morrer.
— Lamentamos muito — disse
Sarah afetuosamente.
— Bom — ele observou,
forçando outro riso —, às vezes a vida é dura, mas eu tenho muita coisa para
agradecer.
Seguiu-se um silêncio
incômodo e Mack se perguntou por que estava falando sobre essas coisas com
aqueles dois. Segundos depois foi resgatado por um jorro de crianças que se
derramaram do trailer para o meio deles. Para alegria de Kate, ela e Emmy haviam
surpreendido Josh e Amber de mãos dadas no escuro e queriam que todos
soubessem.
Josh estava tão fascinado que
nem chegou a protestar.
Quando os Madison se
despediram de Mack e de seus filhos, Sarah bateu carinhosamente no ombro
do novo amigo. Depois foram andando pela escuridão até o acampamento dos
Ducette. Mack ficou olhando-os até não conseguir mais escutar
seus sussurros e a luz oscilante da lanterna deles desaparecer. Sorriu e
virou-se para arrebanhar sua turma na direção dos sacos de dormir.
As orações foram feitas,
seguidas por beijos de boa noite e risinhos de Kate conversando baixo com
o irmão mais velho.
E, finalmente, silêncio.
Mack arrumou o que pôde
usando a luz das lanternas e decidiu deixar o resto para o dia seguinte.
De qualquer modo, só planejavam partir no início da tarde. Encheu seu
último copo de café e sentou-se, bebendo-o diante da fogueira que havia se
consumido até só restar uma massa faiscante de carvões incandescentes.
Estava sozinho, mas não solitário.
Esse não era o verso de uma
música conhecida? Não tinha certeza, mas, se conseguisse lembrar,
procuraria o CD quando chegasse em casa.
Hipnotizado pelo fogo e
envolvido por seu calor, rezou, principalmente orações de agradecimento.
Tinha consciência dos privilégios que recebera. Bênçãos provavelmente era
a palavra certa. Estava contente, descansado e em paz. Mack não sabia, mas
em menos de 24 horas suas orações mudariam. Drasticamente.
* * *
A manhã seguinte, apesar de
ensolarada e quente, não começou tão bem. Mack acordou cedo para
surpreender as crianças com um café da manhã especial, mas queimou
dois dedos quando tentava soltar as panquecas que haviam grudado na
frigideira. Reagindo à dor lancinante, derrubou o fogão, a frigideira e a
tigela de massa no chão arenoso. As crianças, acordadas pelo barulho e
pelos palavrões ditos em voz baixa, vieram ver o que estava acontecendo.
Começaram a rir quando descobriram o que era, mas bastou um "Ei, isso
não é engraçado!" de Mack para voltarem para dentro da barraca, rindo escondidas enquanto
olhavam pelas janelas de tela.
Assim, em vez do planejado, o
café da manhã se resumiu a cereal frio com creme de leite diluído, já que
o resto do leite fora usado na massa de panqueca. Mack passou a hora
seguinte tentando arrumar o acampamento com dois dedos enfiados num copo
de água gelada. A notícia devia ter se espalhado, porque Sarah Madison
apareceu com material de primeiros socorros para queimaduras. Minutos
depois de ter seus dedos cobertos por um líquido esbranquiçado, Mack
sentiu a ardência diminuir.
Mais ou menos nessa hora,
tendo terminado suas tarefas, Josh e Kate vieram perguntar se poderiam dar
um último passeio na canoa dos Ducette, prometendo usar
coletes salva-vidas. Depois do inevitável "não" inicial e da
insistência dos filhos, Mack finalmente cedeu. Não estava muito
preocupado. O acampamento ficava pertinho do lago e eles prometeram não se
afastar da margem. Mack poderia vigiá-los enquanto continuava a guardar as
coisas.
Missy estava ocupada
colorindo o livro da cachoeira Multnomah.
Ela é linda demais, pensou
Mack, olhando embevecido a filha enquanto limpava a sujeira. A menina
vestia a única roupa limpa que lhe restara, um vestidinho vermelho
de verão, com flores-do-campo bordadas, comprado em Joseph quando foram à
cidade no primeiro dia.
Cerca de 15 minutos depois,
Mack levantou os olhos ao ouvir uma voz familiar chamando do lago:
— Papai!
Era Kate. Ela e o irmão
acenaram do bote. Ambos usavam os coletes salva-vidas e Mack acenou de
volta.
É estranho como um ato ou
acontecimento aparentemente insignificante pode mudar vidas inteiras.
Levantando o remo para acenar, Kate perdeu o equilíbrio e emborcou
a canoa. Surgiu uma expressão congelada de terror em seu rosto enquanto,
quase em silêncio e em câmara lenta, o barco virava. Josh se inclinou
freneticamente para tentar equilibrá-lo, mas era tarde demais e ele
desapareceu na água. Mack já corria para a beira do lago, não pretendendo
entrar, mas para estar perto quando eles saíssem. Kate emergiu
primeiro, tossindo e gritando, porém não havia sinal de Josh. E de repente
Mack viu uma erupção de água e pernas e soube naquele momento que algo
estava terrivelmente errado.
Para seu espanto, todos os
instintos que havia desenvolvido como salva-vidas na adolescência voltaram
instantaneamente. Em questão de segundos ele caiu na água, tirando os
sapatos e a camisa. Nem se deu conta do choque gelado ao disparar
na direção da canoa virada, ignorando os soluços aterrorizados da filha.
Ela estava em segurança. Seu foco principal era Josh.
Respirando fundo, mergulhou.
Apesar de toda a agitação, a água continuava razoavelmente límpida.
Encontrou Josh rapidamente e logo descobriu a razão de seu problema. Uma
das tiras do colete salva-vidas se prendera na amarra da canoa. Por mais
que tentasse, Mack não conseguiu soltá-la e por isso fez sinal para Josh
entrar mais fundo sob a canoa, onde havia um bolsão de ar. Mas o pobre
garoto estava em pânico, tentando livrar-se da tira que o prendia embaixo
d'água sob a borda d a canoa.
Mack veio à superfície, gritou
para Kate nadar até a margem, sugou todo o ar que pôde e mergulhou pela
segunda vez. No terceiro mergulho, sabendo que o tempo estava acabando,
percebeu que tinha duas alternativas: tentar livrar Josh do colete ou
virar a canoa. Escolheu a segunda opção. Se foram Deus e os anjos, ou Deus
e a adrenalina, ele jamais teve certeza, mas na segunda tentativa
conseguiu virar a canoa, libertando Josh da amarra.
O colete manteve o rosto do
garoto acima da água. Mack emergiu atrás de Josh, agora frouxo e inconsciente,
com sangue escorrendo de um talho na cabeça, que a canoa acertara quando
Mack a virara de volta. Começou imediatamente a fazer respiração boca a boca
no filho, do melhor modo que podia, enquanto outras pessoas o ajudavam a
puxá-lo em direção à parte rasa.
Sem perceber os gritos ao
redor, Mack se concentrou na tarefa, com o ? borbulhando no peito. Quando
os pés de Josh tocaram terreno firme, o garoto começou a tossir e
a vomitar água e o café da manhã. Aplausos empolgados irromperam ao redor,
porém Mack não deu a mínima. Dominado pelo alívio e pela descarga de
adrenalina resultante do esforço, começou a chorar e, de repente, Kate
estava soluçando com os braços em volta de seu pescoço, enquanto todos
riam, choravam e se abraçavam.
Dentre os que haviam sido
atraídos pelo barulho estavam Jesse Madison e Emil Ducette. Em meio à
confusão de gritos de alegria e de alívio, Mack escutou a voz de Emil
sussurrando:
— Desculpe... desculpe...
desculpe.
A canoa era dele, poderiam
ter sido seus filhos. Mack o abraçou e disse quase gritando em seu ouvido:
— Pare com isso! Não foi
culpa sua e estão todos bem.
Emil começou a soluçar, com
as emoções subitamente liberadas de uma represa de culpa e medo contidos.
Uma tragédia fora evitada.
Pelo menos era o que Mack pensava.
4. A grande tristeza
A tristeza é um muro
entre dois jardins.
— Khalil Gibran
Mack continuava parado junto
à margem, ainda tentando recuperar o fôlego. Demorou alguns minutos antes
de pensar em
Missy. Lembrando-se que ela ficara colorindo o livro,
subiu pela margem até onde podia ver seu acampamento, mas não havia sinal
da menina. Apressou o passo, correndo até a barraca, chamando seu nome com
o máximo de calma que conseguiu. Não houve resposta. Ela não estava ali.
Mesmo com o coração disparado, ele racionalizou, pensando que na confusão
alguém havia cuidado dela, provavelmente Sarah Madison ou Vicky Ducette.
Procurando controlar a ansiedade e o pânico, foi ao encontro dos novos
amigos e perguntou se podiam ajudá-lo a procurar Missy. Os dois
dirigiram-se rapidamente para seus acampamentos. Jesse retornou primeiro,
anunciando que Sarah não tinha visto Missy naquela manhã. Acompanhou Mack
ao acampamento dos Ducette, mas, antes de chegarem lá, Emil veio correndo
em sua direção com uma expressão claramente apreensiva no rosto.
— Ninguém viu Missy hoje e
também não encontramos Amber. Será que estão juntas? — Havia uma sugestão
de pânico na pergunta de Emil.
— Tenho certeza de que é isso
— disse Mack, tentando se tranqüilizar e acalmar Emil ao mesmo tempo. —
Aonde você acha que elas podem ter ido?
— Por que não verificamos os
banheiros e chuveiros? — sugeriu Jesse.
— Boa idéia — falou Mack. —
Vou olhar no que fica mais próximo da nossa área, o que meus filhos usam.
Por que você e Emil não verificam o que fica entre as duas áreas?
Eles concordaram e Mack foi
numa corrida lenta para os chuveiros mais próximos, notando pela primeira
vez que estava descalço e sem camisa.
"Que figura devo
estar", pensou, e provavelmente teria achado graça se sua mente
não estivesse tão concentrada em Missy.
Quando chegou aos banheiros,
perguntou a uma adolescente que saía da parte feminina se tinha visto uma
garotinha de vestido vermelho lá dentro, ou talvez duas garotas. Ela disse
que não havia notado, mas que olharia de novo. Em menos de um minuto
estava de volta balançando a cabeça.
— Obrigado mesmo assim —
disse Mack, e foi para a parte de trás da construção, onde ficavam os
chuveiros. Enquanto virava a esquina, começou a chamar Missy em voz alta. Mack
podia ouvir a água correndo, mas ninguém respondeu. Imaginando se Missy estaria
em um dos chuveiros, começou a bater na porta de cada um até obter resposta.
Seis cubículos de chuveiro e nada de Missy. Verificou os do banheiro
masculino, mas ela não se encontrava em lugar nenhum. Correu de volta
na direção do acampamento de Emil, incapaz de rezar qualquer coisa,
a não ser repetir "Ah, meu Deus, me ajude a achá-la... Ah, meu Deus,
por favor, me ajude a achá-la".
Quando o viu, Vicky correu ao
seu encontro. Estivera tentando conter o choro, mas não conseguiu quando
se abraçaram. De repente, Mack desejou desesperadamente que Nan estivesse
ali. Ela saberia o que fazer, pelo menos qual seria a coisa certa. Ele se
sentia totalmente perdido.
— Sarah levou Josh e Kate
para o seu acampamento, portanto não se preocupe com eles — disse Vicky em
meio aos soluços.
"Ah, meu Deus",
pensou Mack, percebendo que tinha esquecido completamente de seus outros
dois filhos. "Que tipo de pai eu sou?"
Mesmo sentindo-se aliviado
porque Sarah estava cuidando deles, desejou ainda mais intensamente que
Nan estivesse ali.
Nesse momento, Emil e Jesse
apareceram, Emil aparentando alívio e Jesse parecendo tenso como uma corda
esticada.
— Nós a encontramos —
exclamou Emil, o rosto se iluminando e depois ficando sombrio ao perceber
o que estava dizendo. — Quero dizer, encontramos Amber. Ela voltou do
banho que foi tomar em outro lugar, onde havia água quente. Disse que
tinha falado com a mãe, mas Vicky provavelmente não escutou... — Sua voz
parou no ar.
— Mas não encontramos Missy —
acrescentou Jesse rapidamente, respondendo à pergunta mais importante. —
Amber também não a viu hoje.
Emil, no auge da eficiência,
assumiu o controle.
— Mack, temos de contatar as
autoridades do camping imediatamente e botar todo mundo procurando Missy.
Talvez, no meio da agitação, ela telha se assustado e se confundido e
simplesmente saiu andando e se perdeu, ou talvez estivesse tentando
nos encontrar e caminhou na direção errada. Você tem uma foto dela? Talvez
haja uma copiadora no Escritório e poderíamos fazer algumas cópias para
economizar tempo.
— É, tenho uma foto na
carteira. — Mack enfiou a mão no bolso de trás e por um segundo entrou em
pânico ao não encontrar nada ali. Achou que poderia estar no fundo do lago
Wallowa, mas então lembrou que a deixara no carro depois da viagem
de teleférico no dia anterior.
Os três voltaram ao
acampamento de Mack. Jesse correu na frente para avisar Sarah que Amber
estava em segurança, mas que Missy não fora encontrada. Chegando
ao acampamento, Mack abraçou Josh e Kate, tentando parecer calmo. Tirando
a roupa molhada, vestiu uma camiseta e jeans, meias secas e um par de
tênis. Sarah prometeu que ela e Vicky ficariam com seus filhos mais velhos
e sussurrou que estava rezando por ele e Missy. Mack agradeceu dando-lhe um
abraço rápido e depois de beijar os filhos, juntou-se aos outros dois
homens que corriam para o escritório do camping.
A notícia do resgate na água
havia chegado à pequena sede e todos se mostravam animados. O clima mudou
rapidamente quando souberam do desaparecimento de Missy. No escritório
havia uma copiadora e Mack, depois de tirar várias cópias do retrato da
filha, as distribuiu.
O jovem subgerente, Jeremy
Bellamy, ofereceu-se para ajudar na busca. Então eles dividiram o camping
em quatro áreas e cada um saiu levando um mapa, a foto de Missy e um
walkie-talkie.
Era um trabalho lento e
metódico, lento demais para Mack, mas ele sabia que esse era o modo mais
lógico de encontrá-la se... se ainda estivesse no camping. Enquanto
andava entre barracas e trailers, rezava e fazia promessas. Tinha
consciência de que prometer coisas a Deus era idiota e irracional, mas não
conseguia evitar. Estava desesperado para ter Missy de volta e sem dúvida
Deus sabia onde ela se encontrava.
Muitos campistas estavam
acabando de arrumar suas bagagens para irem embora.
Ninguém tinha visto Missy ou
uma menina parecida com ela. A pequenos intervalos, cada grupo de busca
entrava em contato com o escritório para saber se havia alguma novidade.
Mas não houve qualquer notícia até quase duas da tarde.
Mack estava terminando de
vasculhar sua área quando veio o chamado pelo walkie-talkie.
Jeremy, que cobria a área
mais perto da entrada, achou que encontrara algum indício. Foram todos ao
seu encontro. Mack chegou por último e viu Emil e Jeremy ouvindo
atentamente um rapaz desconhecido.
Emil disse a Mack rapidamente
o que ouvira e o apresentou ao rapaz. Seu nome era Virgil Thomas e ele
estava acampado na área com alguns colegas desde o início do verão.
Os outros dormiam pesadamente
quando Virgil viu uma velha picape verde-oliva saindo do camping e
descendo na direção de Joseph.
— Mais ou menos a que horas?
— perguntou Mack.
— Foi antes do meio-dia, mas
não tenho certeza, porque estava de ressaca.
Mostrando a foto de Missy
para o rapaz, Mack perguntou de modo áspero:
— Você acha que viu essa
menina?
Quando o outro cara me
mostrou essa foto antes, ela não me pareceu familiar — respondeu Virgil,
olhando de novo. — Mas então, quando ele disse que ela estava usando um
vestido vermelho-vivo, lembrei que a menininha na picape verde estava com
um vestido dessa cor. Vi que ela estava rindo ou berrando, não dava para
saber. E então tive a impressão de que o motorista lhe deu um tapa ou a
empurrou para baixo, mas acho que ele também podia estar só brincando.
Mack ficou paralisado. Apesar
de assustadora, infelizmente essa informação era a única que até então
fazia sentido. Explicava por que não haviam encontrado nenhum traço de Missy.
Mas tudo dentro dele não queria que fosse verdade. Virou-se e começou a correr
para o escritório, mas foi contido pela voz de Emil.
— Mack, pára! Nós já falamos
com o escritório pelo rádio e avisamos o xerife de Joseph. Eles vão mandar
alguém para cá agora mesmo e estão emitindo um boletim de busca para a picape.
Nesse momento duas
radiopatrulhas entraram no camping. A primeira foi direto para
o escritório e a outra para a área onde os homens se encontravam. Mack
correu ao encontro do policial, um rapaz de cerca de 30 anos, que se
apresentou como Dalton e começou a ouvir as pessoas.
Nas horas seguintes houve um
movimento crescente de reação ao desaparecimento de Missy.
Expediram uma ordem de busca,
bloquearam a auto-estrada e os guardas florestais da área foram avisados
para ficarem atentos.
Isolaram o acampamento dos
Phillips com fitas, caracterizando-o como uma cena de crime, e todos nas
imediações foram interrogados. Virgil forneceu o máximo de detalhes que pôde
sobre a picape e os ocupantes e a descrição foi enviada a todos os órgãos
policiais mais importantes.
Os oficiais de campo do FBI
em Portland, Seattle e Denver foram alertados. Nan estava a caminho,
trazida de carro por sua melhor amiga, Maryanne. Trouxeram cães rastreadores,
mas as pistas de Missy terminavam no estacionamento próximo, aumentando a
probabilidade de que a história de Virgil fosse verdadeira.
Depois que os peritos
examinaram minuciosamente o acampamento o policial Dalton pediu que Mack
entrasse de novo na área e observasse tudo com cuidado, em busca de algo
diferente.
Mack sentia-se tão
desesperado para ajudar de alguma forma que, mesmo exausto, concentrou
a mente na tentativa de lembrar-se de qualquer detalhe. Com cautela, refez
seus passos. O que não daria em troca para ter a chance de recomeçar o dia
desde o início! Mesmo queimando os dedos e derrubando de novo a massa de
panqueca!
Voltou-se novamente para a
tarefa designada, mas nada parecia diferente do que recordava. Nada havia
mudado. Chegou à mesa onde Missy estivera ocupada colorindo. O livro
estava aberto na mesma página, com uma imagem inacabada da princesa índia
da tribo Multnomah. Os lápis de cera também se encontravam lá, se bem que
o vermelho, a cor predileta de Missy, estivesse faltando. Mack começou a
procurar no chão, onde ele poderia ter caído.
— Se está procurando o lápis
de cera vermelho, nós o encontramos ali, perto da árvore — disse Dalton,
apontando para o estacionamento. — Ela provavelmente o largou
enquanto estava lutando com... — Sua voz se perdeu no ar.
— Como você sabe que ela
estava lutando?
O policial hesitou, mas
depois falou, relutante:
— Encontramos um dos sapatos
dela nos arbustos, para onde provavelmente foi chutado. Você não estava aqui na
hora, por isso pedimos ao seu filho para identificá-lo.
A imagem de sua filha lutando
com algum monstro pervertido foi como um soco no estômago. Quase
sucumbindo ao negrume súbito que ameaçava esmagá-lo, Mack se apoiou na
mesa para não desmaiar ou vomitar. Foi então que notou um broche
de joaninha cravado no livro de colorir. Retornou à consciência como se
alguém tivesse aberto um vidro de sais sob seu nariz.
— De quem é isso? — perguntou
a Dalton, apontando para o broche.
— De quem é o quê?
— Esse broche de joaninha!
Quem pôs isso aí?
— Nós achamos que fosse de
Missy. O broche não estava aí de manhã?
— Tenho certeza — afirmou
Mack, enfático. — Ela não tem nada assim. Tenho absoluta certeza de que
não estava aí de manhã!
O policial se comunicou pelo
rádio e em minutos os peritos retornaram e levaram o broche. Dalton puxou
Mack para um canto e explicou:
— Se o que o senhor diz é
correto, temos de presumir que o agressor de Missy deixou isso aí de
propósito. — Fez uma pausa e acrescentou:
Sr. Phillips, isso pode ser
uma notícia boa ou má.
— Não entendo.
O policial hesitou, tentando
decidir se deveria contar a Mack o que estava pensando. Procurou as palavras
certas.
— A boa notícia é que podemos
conseguir alguma pista a partir do broche. É a única prova que temos até
agora de que havia alguém aqui.
— E a má notícia? — Mack
prendeu o fôlego.
— Bom, a má notícia, e não
estou dizendo que este seja o caso, é que quem deixa algo assim geralmente
tem um objetivo, e isso pode significar que já fez a mesma coisa antes.
— O quê? — reagiu Mack
bruscamente. — Isso significa que esse cara é uma espécie de maníaco? Esse
é algum tipo de sinal que ele deixa para se identificar, como se estivesse
marcando o território ou algo assim?
A raiva de Mack foi
crescendo, mas, antes que explodisse, o rádio de Dalton tocou,
conectando-o ao escritório de campo do FBI em Portland... ficou atento
e ouviu a voz de uma mulher que se identificava como agente especial.
Ela pediu que Dalton descrevesse o broche em detalhes. Mack acompanhou
o policial até o lugar onde a equipe de polícia havia estabelecido sua base
de operações. O broche estava dentro de um saco transparente, e de
pé, atrás do grupo, ele ficou observando Dalton descrevê-lo.
— É um alfinete com uma
joaninha que foi cravado atravessando algumas páginas de um livro de
colorir.
— Por favor, descreva as
cores e o número de pontos na joaninha — orientou a voz pelo rádio.
— Vejamos — disse Dalton, com
os olhos quase grudados no saco. — A joaninha tem uma cabeça preta. E o
corpo é vermelho, com bordas pretas. Há dois pontos pretos no lado esquerdo do
corpo. Faz sentido?
— Perfeitamente. Por favor,
continue — disse a voz com paciência.
— Do lado direito da
joaninha há três pontos, de modo que são cinco ao todo
Houve uma pausa.
— Tem certeza de que são
cinco pontos?
— Sim, senhora, são cinco
pontos.
— Certo. Agora, policial
Dalton, poderia virar o broche e dizer o que há na parte de baixo da
joaninha?
Dalton virou o saco plástico
e olhou com cuidado.
— Há algo gravado embaixo,
agente. Deixe-me ver. Parece uma espécie de número de modelo. Humm... C... K...
1-4-6, acho que é isso. É difícil ver através do saquinho.
Houve silêncio do outro lado.
Mack sussurrou para Dalton:
— Pergunte a ela o que isso
significa.
O policial hesitou e depois
obedeceu.
— Agente? Você está aí?
— Sim, estou. — De repente a
voz pareceu cansada e oca. — Ei, Dalton, há algum lugar isolado onde você
e eu possamos conversar?
Mack assentiu com ênfase e
Dalton captou a mensagem.
— Espere um segundo. — Pousou
o saco com o broche e saiu da área, permitindo que Mack o seguisse.
— Pronto, agora estou
sozinho. Pode me dizer o que é.
— Estamos tentando pegar esse
cara há quase quatro anos, perseguindo-o em mais de nove estados. Recebeu
o apelido de Matador de Meninas, mas nunca repassamos o detalhe
da joaninha para ninguém, portanto mantenha isso em segredo. Acreditamos
que ele seja responsável pelo seqüestro e morte de pelo menos quatro
crianças até agora, todas meninas, todas com menos de 10 anos. A cada vez
ele acrescenta um ponto à joaninha, de modo que esta seria a de número
cinco. Ele sempre deixa os broches em algum lugar da área do seqüestro,
todos têm o mesmo número de modelo, mas não conseguimos descobrir de onde
eles vieram originalmente nem encontrar o corpo de nenhuma das quatro
meninas, mas temos bons motivos para acreditar que nenhuma delas sobreviveu.
Todos os crimes aconteceram em campings ou próximo de campings, perto de
um parque estadual ou uma reserva. O criminoso parece se mover com
habilidade em florestas e montanhas. Não nos deixou, em todos os casos,
absolutamente nada além do broche.
— E o carro? Temos uma
descrição bastante boa da picape verde em que ele fugiu.
— Ah, vocês provavelmente vão
encontrá-la. Se for o nosso cara, ele deve tê-la roubado há um ou dois
dias, repintado, enchido de equipamento para caminhadas, e ela vai
estar totalmente limpa.
Enquanto ouvia a conversa de
Dalton com a agente especial, Mack sentiu o resto de esperança se esvair.
Sentou-se frouxo no chão e enterrou o rosto nas mãos. Pela primeira vez
desde o desaparecimento de Missy permitiu-se considerar o alcance
das possibilidades mais horrendas — assim que isso começou, não parou
mais: imagens de coisas boas e terríveis misturadas num desfile
apavorante. Algumas eram instantâneos abomináveis de tortura e dor, de
monstros e demônios da escuridão mais profunda, com dedos de arame farpado
e toques de navalha, de Missy gritando pelo pai e ninguém respondendo.
Misturados com esses horrores havia lampejos de outras lembranças:
a menina aprendendo a andar, com o rosto lambuzado de bolo de chocolate,
fazendo caretinhas engraçadas. Sobrepunha-se a todas a imagem tão recente
de Missy caindo no sono, aninhada no colo do pai. Imagens implacáveis. O
que ele diria a Nan? Como isso podia ter acontecido? Deus, como isso podia
ter acontecido?
Algumas horas depois, Mack e
seus dois filhos foram de carro para o hotel, em Joseph.
Os proprietários haviam lhe
oferecido um quarto e, enquanto ele arrumava sua bagagem, a exaustão e o
desespero começaram a dominá-lo. O policial Dalton levara seus filhos a
uma lanchonete. Agora, sentado na beira da cama, Mack dava vazão a todo o
seu sofrimento. Soluços e gemidos de rasgar a alma saíam do âmago de seu ser, e
foi assim que Nan o encontrou. Dois seres feridos que se abraçaram e
choraram desconsoladamente.
Naquela noite, Mack dormiu
aos sobressaltos, pois as imagens continuavam a golpeá-lo como ondas
implacáveis contra um litoral rochoso. Pouco antes do nascer do sol, por fim
desistiu. Vivera em um só dia anos de emoções e agora sentia-se entorpecido, à
deriva num mundo subitamente sem significado.
Depois de protestos
consideráveis de Nan, concordaram que seria melhor ela ir para casa com
Josh e Kate. Mack ficaria para ajudar como pudesse. Simplesmente
não conseguiria ir embora, pensando que Missy talvez estivesse por perto,
precisando dele. A notícia se espalhara rapidamente e amigos começaram a chegar
para ajudá-lo. Criou-se uma forte rede de solidariedade, todos os
conhecidos rezando para que Missy fosse encontrada. Jesse e Sarah, Emil e
Vicky permaneceram o tempo todo desdobrando-se em cuidados.
Repórteres com seus
fotógrafos começaram a aparecer durante a manhã. Mack não queria
enfrentá-los, mas acabou respondendo às perguntas na esperança de que
a divulgação pudesse ajudar na busca.
Quando ficou evidente que a
necessidade de ajuda estava diminuindo, os Madison desmontaram seu
acampamento e vieram despedir-se. Choraram muito, abraçaram-se longamente
e colocaram-se à disposição para o que fosse necessário. Vicky
Ducette também partiu, mas Emil permaneceu para dar apoio a Mack. Em meio
a toda a tristeza, Kate manteve-se firme, enviando e recebendo e-mails
para que se mantivessem em comunicação permanente.
Ao meio-dia todas as famílias
estavam na estrada. Maryanne levou Nan e as crianças para casa, onde os
parentes estariam esperando. Mack e Emil foram com o policial Dalton, que
passaram a chamar de Tommy, para Joseph, onde se dirigiram à delegacia.
Agora vinha a parte mais
difícil: a espera. Mack sentia que estava andando em câmara lenta dentro
do olho de um furacão O grupo do FBI chegou no meio da tarde e logo ficou
claro que a pessoa encarregada era a agente especial Wikowsky, uma
mulher pequena e magra cheia de energia, de quem Mack gostou no mesmo
instante. Ela permitiu que ele participasse de todas as providências e
informes.
Depois de estabelecer o
centro de comando no hotel, o FBI pediu a Mack uma entrevista formal. A
agente Wikowsky levantou-se de trás da mesa onde estava trabalhando e
estendeu a mão. Quando Mack ia apertá-la, a agente envolveu as mãos dele com as
suas e sorriu afetuosamente.
Senhor Phillips, peço
desculpas por não lhe ter dado até agora a atenção que merece. Estamos
vivendo uma turbulência, estabelecendo comunicações com todas as agências
policiais envolvidas na tentativa de resgatar Missy. Lamento muito que
tenhamos nos conhecido nessas circunstâncias.
Mack suspirou fundo.
— Por favor, me chame de
Mack.
— Bem, então me chame de Sam,
que é a forma abreviada de Samantha. Mack relaxou um pouco na cadeira,
vendo-a examinar rapidamente algumas pastas cheias de papéis.
— Mack, está disposto a
responder a algumas perguntas? — ela perguntou sem levantar a cabeça.
— Farei o máximo possível —
ele afirmou, aliviado pela oportunidade de fazer alguma coisa.
— Bom! Não vou obrigá-lo a
repassar todos os detalhes. Estou com os relatórios sobre tudo o que você
já contou, mas tenho umas coisas importantes para examinarmos juntos. —
Ela o olhou nos olhos.
— Qualquer coisa que eu possa
fazer para ajudar — concordou Mack. No momento estou me sentindo bastante
impotente.
— Mack, entendo como você se
sente, mas sua presença é importante. Acredite, todos aqui estão dispostos
a fazer o máximo possível para resgatar Missy.
Obrigado — foi tudo que Mack
conseguiu dizer, olhando para o chão. As emoções pareciam à flor da pele e
qualquer gesto de gentileza abria as comportas para as lágrimas saírem.
— Mack — ela continuou —, você
notou alguma coisa estranha ao redor de sua família nestes últimos dias?
Mack ficou surpreso e se
recostou na cadeira.
— Quer dizer que ele estava
nos rondando?
— Não, ele parece escolher as
vítimas ao acaso, mas todas eram mais menos da idade da sua filha, com cor
de cabelo semelhante. Achamos que ele as descobre um ou dois dias antes e
espera, vigiando de perto até encontrar o momento oportuno. Você viu
alguém estranho próximo do lago? Talvez junto aos banheiros?
Mack se encolheu ao pensar
que seus filhos estariam sendo vigiados. Esquadrinhou a mente, mas não
descobriu nada.
— Desculpe, não consigo
lembrar...
— Você parou em algum lugar
enquanto ia para o camping ou notou alguém estranho quando estava fazendo
caminhadas?
— Nós paramos na cachoeira
Multnomah, vindo para cá, e estivemos em toda a região nos últimos três
dias, mas não me lembro de ter visto ninguém que parecesse estranho. Quem
pensaria...
— Exatamente, Mack, tenha
paciência. Algo pode voltar à sua mente mais tarde. Mesmo que pareça pequeno ou
irrelevante, por favor, nos conte. — Ela olhou outro papel na mesa. — Que
tal uma picape verde-oliva? Você notou algo assim enquanto estava
por aqui?
Mack revirou a memória.
— Realmente não me lembro de
ter visto nada do tipo.
A agente especial Wikowsky
continuou a interrogar Mack durante os 15 minutos seguintes, mas não
conseguiu despertar a memória dele o suficiente para descobrir algo útil.
Por fim, fechou o caderno e se levantou estendendo a mão.
— Mack, mais uma vez, lamento
o que aconteceu com Missy. Se descobrirmos alguma coisa, eu o informarei
imediatamente.
Às cinco da tarde finalmente
chegou o primeiro informe promissor e a agente Wikowsky colocou Mack
imediatamente a par. Dois casais haviam passado por uma picape verde-oliva
que correspondia à descrição do veículo que estavam procurando.
Eles estavam em um trecho
estreito da estrada e tiveram que dar marcha a ré até um lugar mais largo
para permitir a passagem da picape. Notaram que na carroceria havia várias
latas de gasolina, além de uma boa quantidade de material de acampamento.
Estranharam que o motorista
tivesse se curvado na direção do carona, como se procurasse alguma coisa
no chão, e estivesse usando um casaco pesado num dia tão quente. Acharam graça
daquilo e seguiram em frente.
Quando essa notícia chegou, a
tensão aumentou na delegacia. Tudo haviam descoberto até agora se
encaixava no modo de agir do Matador de Meninas, e Mack foi informado.
Com a noite se aproximando
rapidamente, iniciou-se uma discussão sobre a melhor alternativa: fazer
uma perseguição imediata ou esperar até a manhã seguinte logo ao nascer do
dia. Todos pareciam profundamente afetados com a situação.
De pé nos fundos da sala,
Mack ouvia com impaciência a discussão, aflito para que se tomasse logo
uma providência. Seu desejo era chamar Tommy e ir pessoalmente atrás
do assassino. Era como se cada minuto contasse Depois de um tempo que
pareceu excessivamente longo para Mack, todos concordaram em dar início à
perseguição. Mack ligou rapidamente para falar com Nan e partiu com Tommy.
Agora só lhe restava rezar:
— Santo Deus, por favor, por
favor, por favor, cuide da minha Missy, proteja-a, não deixe que nada de
mal lhe aconteça. Lagrimas desciam por seu rosto e molhavam a camisa.
* * *
Por volta das 7 horas, o
comboio de radiopatrulhas, utilitários do picapes com cães e alguns
veículos da Guarda Florestal seguiu pela auto-estrada até entrar na Reserva.
Mack ficou satisfeito por
viajar com alguém que conhecia a área. As estradas, com freqüentes curvas
estreitas beirando precipícios, ficavam ainda mais traiçoeiras
na escuridão da noite. A velocidade foi diminuindo até parecer que estavam
se arrastando.
Por fim, passaram pelo ponto
onde a picape verde tinha sido vista pela última vez e um quilômetro e
meio depois chegaram a uma bifurcação. Ali, como fora planejado a caravana
se dividiu em duas, com um pequeno grupo indo para o norte com a agente
especial Wikowsky e os demais, inclusive Mack, Emil e Tommy, indo na
direção sudeste. Alguns quilômetros difíceis mais tarde esse grupo se
dividiu outra vez, e nesse ponto os esforços de busca ficaram ainda mais
lentos. Agora os rastreadores estavam a pé, apoiados por luzes fortes,
enquanto procuravam sinais de atividade recente nas estradas.
Quase duas horas mais tarde,
Tommy recebeu um chamado de Wikowsky. A cerca de 15 quilômetros da
bifurcação onde tinham se separado, uma estrada antiga e sem nome saía da
principal. Era praticamente impossível de se ver no escuro e cheia de buracos.
Eles a teriam ignorado se a
luz de um dos rastreadores não tivesse se refletido numa calota de
veículo. Debaixo do pó da estrada havia manchas de tinta verde. A
calota provavelmente fora perdida quando a picape passou por um dos muitos
buracos enormes do caminho.
O grupo de Tommy voltou
imediatamente. O coração de Mack batia aceleradamente com um começo de
esperança. Talvez, por algum milagre, Missy ainda estivesse viva.
Vinte minutos depois, outra
ligação de Wikowsky informava que haviam encontrado a picape debaixo de
uma engenhosa armação de galhos e arbustos.
A equipe de Mack levou quase
três horas para alcançar a primeira equipe e, nesse ponto, tudo estava
acabado. Os cães haviam descoberto uma trilha de caça que descia por cerca
de um quilômetro e meio até um pequeno vale oculto. Ali encontraram uma cabana
em ruínas à beira de um lago límpido alimentado por um riacho cascateante.
Cerca de um século antes
aquilo fora provavelmente a casa de um colono, mas desde então
provavelmente servia só como abrigo para algum caçador ocasional.
Quando Mack e seus amigos chegaram,
o céu estava começando a clarear. Um acampamento-base fora montado a certa
distância da pequena cabana para preservar a cena do crime. Todos se
reuniram e começaram a planejar a estratégia do dia.
A agente especial Samantha
Wikowsky estava sentada diante de uma mesa dobrável examinando mapas
quando Mack apareceu. Seus olhos expressavam tristeza e ternura, mas suas
palavras foram totalmente profissionais.
— Mack, nós encontramos uma
coisa, mas não é boa.
Ele procurou as palavras
certas.
— Encontraram Missy? — Ele
temia terrivelmente a resposta, mas estava desesperado para ouvi-la.
— Não, não encontramos. — Sam
parou e começou a se levantar. Mas preciso que você identifique uma coisa
que encontramos na cabana. Preciso saber se era... — ela se conteve,
mas já falara no passado. Quero dizer, se é dela.
Sentiu que sua represa
interna estava prestes a arrebentar.
Vamos ver isso agora —
murmurou baixinho. — Quero resolver logo.
Mack sentiu Emil e Tommy
segurando seus braços enquanto seguiam a agente especial pelo curto
caminho até a cabana. Três homens adultos de braços dados numa
solidariedade especial, andando juntos em direção ao seu pior pesadelo.
Um membro da equipe de
perícia abriu a porta da cabana para deixá-los entrar.
Refletores alimentados por um
gerador iluminavam cada parte da sala. Havia prateleiras nas paredes, uma
mesa velha, cadeiras e um sofá. Mack viu imediatamente o que
viera identificar. Virando-se, desmoronou nos braços dos dois amigos
e começou a chorar incontrolavelmente. No chão, perto da lareira, estava o
vestido de Missy, rasgado e encharcado de sangue.
* * *
Para Mack, os dias e semanas
seguintes se tornaram um borrão de vistas que entorpeciam as emoções. Por
fim, um funeral dedicado com um pequeno caixão vazio e um desfile interminável
de tristes, ninguém sabendo o que dizer. Em algum momento, nas que se
seguiram, Mack iniciou o lento e doloroso reencontro da vida cotidiana.
Aparentemente o Matador de
Meninas recebera o crédito pela quinta vítima, Melissa Anne Phillips.
Assim como nos outros quatro casos, as autoridades não encontraram o corpo
da vítima, embora grupos de busca tivessem revirado a floresta durante dias.
Como em todas as outras, o matador não deixara nenhuma pista que pudesse
ser seguida, só o broche. Era como se estivessem lidando com um fantasma.
Em algum ponto do processo,
Mack procurou emergir da dor e do sofrimento, pelo menos com sua família.
Eles haviam perdido uma irmã e uma filha e seria terrível também perderem
um pai e um marido. Ainda que todos tivessem sido profundamente golpeados
pela tragédia, Kate parecia a mais afetada, escondendo-se numa casca
como uma tartaruga para se proteger de algo potencialmente perigoso. Mack
e Nan preocupavam-se cada vez mais com ela, mas não conseguiam encontrar
as palavras adequadas para penetrar na fortaleza que a garota estava
construindo ao redor de si. As tentativas de conversa se transformavam em
monólogos, como se algo tivesse morrido dentro dela e agora a estivesse
corroendo lentamente por dentro, derramando-se às vezes em palavras
amargas ou num silêncio deprimido.
Josh se comunicava
freqüentemente com Amber, o que o ajudava a extravasar a dor. Além disso,
estava bastante ocupado preparando-se para a formatura no ensino médio.
A Grande Tristeza havia
baixado como uma nuvem e, em graus diferentes, cobria todos os que tinham
conhecido Missy. Mack e Nan enfrentavam juntos o tormento da perda, sentindo-se
mais próximos do que nunca. Nan repetia seguidamente que não culpava Mack
de modo algum pelo que acontecera. Mack, porém, levou muito mais tempo
para se livrar de todos os "se" que o levavam ao desespero. Se
ele tivesse decidido não levar as crianças naquela viagem; se tivesse
recusado quando elas pediram para usar a canoa; se tivesse ido embora na
véspera; se, se, se. Não ter podido enterrar o corpo de Missy ampliava seu
fracasso como pai. O fato de ela ainda estar em algum lugar, sozinha na
floresta, assombrava-o todos os dias. Agora, três anos e meio depois,
Missy era considerada oficialmente vítima de assassinato. A vida nunca
mais seria a mesma. A ausência de Missy criara um vazio absurdo.
A tragédia também havia
aumentado a fenda no relacionamento de Mack com Deus, mas ele não se dava
conta dessa separação crescente. Em vez disso, tentava abraçar uma fé
estóica e desprovida de sentimentos que lhe trazia algum conforto e paz, porém
não eliminava os pesadelos em que se via com os pés presos na lama e sem
voz para dar os gritos que salvariam sua preciosa Missy. Aos poucos os
pesadelos foram se tornando menos freqüentes e os momentos de alegria
começaram a despontar, fazendo Mack sentir-se culpado.
Assim, receber o bilhete
assinado Papai, dizendo para encontrá-lo na cabana, causou-lhe um profundo
impacto. Será que Deus escreve bilhetes? E por que na cabana — o ícone
de sua dor mais profunda? Certamente Deus teria lugares melhores onde se
encontrar com ele. Um pensamento sombrio chegou a atravessar sua mente: o
assassino o estaria provocando ou atraindo para longe com a intenção de
deixar sua família desprotegida. Talvez fosse somente uma brincadeira
cruel. Mas por que estava assinado "Papai"?
Por mais irracional que
parecesse, Mack não conseguia deixar de pensar que talvez o bilhete viesse
mesmo de Deus. Quanto mais pensava. mais confuso e irritado ia ficando.
Quem havia mandado a porcaria
do bilhete? Fosse quem fosse, Mack tinha a sensação de que estavam
brincando com ele. E, de qualquer modo, de que adiantava? Mas, apesar
da raiva e da depressão, Mack sabia que precisava de respostas. Percebeu
que estava travado e que as orações e os hinos dos domingos não serviam
mais, se é que já haviam servido. A espiritualidade do claustro não
parecia mudar nada na vida das pessoas que ele conhecia, a não ser,
talvez, na de Nan. Mas ela era especial. Mack estava farto de Deus e da
religião, farto de todos os pequenos clubes sociais religiosos que não pareciam
fazer nenhuma diferença expressiva nem provocar qualquer mudança real.
Mack certamente desejava mais.
Porém não sabia que estava a
ponto de conseguir muito mais do que havia pedido.
5. Adivinhe quem vem para jantar
Rotineiramente
desqualificamos testemunhos e exigimos comprovação. Isto é, estamos tão
convencidos da justeza de nosso julgamento que invalidamos provas que não
se ajustem a ele.
Nada que mereça ser
chamado de verdade pode ser alcançado por esses meios.
— Marilynne Robinson, The
Death of Adam
Há ocasiões em que optamos
por acreditar em algo que normalmente seria considerado absolutamente
irracional. Isso não significa que seja mesmo irracional, mas certamente
não é racional. Talvez exista a supra-racionalidade: a razão além das
definições normais dos fatos ou da lógica baseada em dados. Algo que só faz
sentido se você puder ver uma imagem maior da realidade. Talvez seja aí
que a fé se encaixe.
Mack não tinha certeza de um
monte de coisas, mas em algum momento em seu coração e em sua mente, nos
dias que se seguiram à nevasca, ele se convenceu de que havia três
explicações plausíveis para o bilhete. Podia ser de Deus, por mais absurdo
que isso parecesse, podia ser uma piada cruel ou algo mais sinistro vindo
do assassino de Missy. Independentemente de qualquer coisa, o bilhete
dominava seus pensamentos dia e noite.
Secretamente começou a fazer
planos para viajar até a cabana no fim de semana seguinte. A princípio não
falou com ninguém, nem mesmo com Nan, achando que uma conversa assim
só traria mais dor. "Estou mantendo segredo por causa de Nan",
dizia a si mesmo. Além disso, falar do bilhete seria admitir que guardara
segredos. Algumas vezes a honestidade pode ser incrivelmente complicada.
Decidido a empreender a
viagem, Mack começou a pensar em modos de afastar a família de casa
durante o fim de semana sem levantar suspeitas. Felizmente foi a
própria Nan quem ofereceu a solução. Ela estivera pensando em visitar a
família da irmã nas ilhas San Juan, no litoral de Washington. Seu cunhado
era psicólogo infantil e Nan achava que poderia ser útil conversar com ele
sobre o comportamento cada vez mais fechado de Kate. Quando ela levantou a
possibilidade da viagem, Mack reagiu quase ansioso demais.
— Claro que vocês vão — ele
afirmou imediatamente. Não era a resposta que ela havia previsto e Nan lhe
lançou um olhar interrogativo.
— Quero dizer — consertou
ele, sem jeito —, é uma idéia fantástica.
Vou sentir falta de vocês,
claro, mas acho que posso sobreviver sozinho uns dois dias e, de qualquer
modo, tenho um monte de coisas para fazer.
Ela deu de ombros, talvez
grata porque o caminho para a viagem tivesse se aberto com tanta
facilidade.
Bastou um rápido telefonema à
irmã de Nan e a viagem foi acertada. Logo a casa virou um turbilhão de
atividades. Josh e Kate ficaram deliciados com a perspectiva de visitar
os primos e compraram fácil a idéia.
Disfarçadamente, Mack
telefonou para seu amigo Willie pedindo seu jipe emprestado.
O pedido estranho, como era
de se prever, provocou um tiroteio de perguntas que Mack tentou responder
do modo mais evasivo possível. Terminou dizendo que explicaria tudo quando
Willie aparecesse para trocar os veículos.
No fim da tarde de
quinta-feira, depois de despedir-se de Nan, Kate e Josh, Mack começou a
preparar-se para a longa viagem ao Nordeste do Oregon — o local de
seus pesadelos. Sem dúvida havia a possibilidade de ter se transformado
num idiota completo ou de estar sendo vítima de uma brincadeira de mau
gosto, mas nesse caso ficaria livre para simplesmente ir embora. Uma
batida na porta arrancou-o de sua concentração e ele viu que era Willie.
— Estou aqui na cozinha —
gritou.
Um instante depois Willie
apontou a cabeça pela porta do corredor.
— Bom, eu trouxe o jipe e o
tanque está cheio, mas só vou entregar a chave quando você contar
exatamente o que está acontecendo.
Mack continuou enfiando
coisas em dois sacos de viagem. Sabia que não adiantava mentir para o
amigo.
— Vou voltar à cabana,
Willie.
— Bom, eu já tinha imaginado.
O que quero saber é por que você pretende voltar lá. Não sei se o meu
velho jipe vai dar conta do recado, mas, como garantia, coloquei
umas correntes atrás para o caso de precisarmos.
Sem olhar para ele, Mack foi
até o escritório, tirou a tampa de uma lata pequena e pegou o bilhete.
Voltando à cozinha, entregou-o ao amigo. Willie desdobrou o papel e leu em
silêncio.
— Nossa, que tipo de maluco
escreveria uma coisa assim? E quem é esse tal de Papai?
— Bom, você sabe, Papai é o
nome que Nan usa para Deus.
Mack pegou o bilhete de
volta e o enfiou no bolso da camisa.
— Espera, você está achando
mesmo que isso veio de Deus?
— Willie, não sei o que
pensar disso. Quer dizer, a princípio achei que era apenas uma brincadeira
de mau gosto e fiquei com raiva. Sei que parece loucura, mas de algum
modo me sinto estranhamente tentado a descobrir. Tenho de ir, Willie, ou
isso vai me deixar maluco para sempre.
— Já pensou na possibilidade
de ser o assassino? E se ele estiver atraindo você para lá por algum motivo?
— Claro que pensei. Parte de
mim não ficaria desapontada com isso. Tenho contas a acertar com ele —
disse sério e fez uma pausa. — Mas também não faz muito sentido. Não acho
que o assassino saiba que "Papai" é um termo usado em nossa família.
Willie ficou perplexo e Mack
prosseguiu:
— E nenhum amigo nosso
mandaria um bilhete desses. Estou pensando que só Deus faria isso...
talvez.
— Mas Deus não faz coisas
assim. Pelo menos nunca ouvi falar que ele tivesse mandado um bilhete a
alguém. E por que ele desejaria que você retornasse à cabana? Não
consigo pensar num lugar pior...
Pairou um silêncio incômodo
entre os dois. Mack falou:
— Não sei, Willie. Acho que
parte de mim gostaria de acreditar que Deus se importa o suficiente comigo
para me mandar um bilhete. Continuo muito confuso, mesmo depois de tanto
tempo. Simplesmente não sei o que pensar, e a coisa não melhora. Sinto que
estou perdendo Kate e isso me mata. Talvez o que aconteceu com Missy seja
uma espécie de castigo de Deus pelo que fiz com meu pai. Realmente
não sei.
Mack olhou o rosto de seu
melhor amigo, mais do que um irmão.
— Só sei que preciso voltar.
O silêncio se prolongou entre
os dois até que Willie falasse de novo.
— Então, quando partimos?
Mack ficou tocado com a
disposição do amigo.
— Obrigado, meu chapa, mas
realmente preciso fazer isso sozinho.
— Imaginei que você diria
isso — respondeu Willie, virando-se e saindo do cômodo.
Retornou alguns instantes
depois com uma pistola e uma caixa de balas.
— Achei que
não conseguiria convencê-lo a deixar de ir e pensei que poderia precisar
disso. Acho que você sabe usar.
Mack olhou a arma. Sabia que
Willie estava tentando ajudá-lo.
— Willie, não posso. Faz 30
anos que toquei pela última vez numa arma e não pretendo fazer isso agora.
Se aprendi uma coisa na vida, foi que usar a violência para resolver
um problema sempre cria um problema ainda maior.
— Mas e se for o assassino de
Missy? E se ele estiver esperando lá em cima? O que você vai fazer?
Mack deu de ombros.
— Honestamente não sei,
Willie. Vou correr o risco, acho.
— Mas você vai estar
indefeso. Não dá para saber o que ele tem em mente. Leve, Mack.
Willie empurrou a pistola e
as balas na direção dele.
— Você não precisa usar.
Mack olhou a arma e depois de
pensar um pouco estendeu lentamente a mão para ela e as balas,
colocando-as com cuidado no bolso.
— Certo, só para garantir.
Em seguida pegou parte do
equipamento e, com os braços carregados, saiu na direção do jipe. Willie
levou a grande sacola de lona que restava.
— Nossa, Mack, se você acha
que Deus vai estar lá em cima, para que tudo isso?
Mack lhe deu um sorriso
carregado de tristeza.
— Só pensei em cobrir as
várias opções. Você sabe, estar preparado para o que acontecer...
Quando chegaram no jipe,
Willie entregou as chaves a Mack.
— E o que é que Nan acha
disso? — perguntou.
— Nan e as crianças foram
visitar a irmã dela e... eu não contei — confessou Mack.
Willie ficou obviamente
surpreso.
— O quê!? Você nunca guarda
segredos de sua mulher. Não acredito que tenha mentido para ela!
Mack ignorou a explosão do
amigo, voltou à casa e entrou no escritório. Ali encontrou as chaves de
reserva de seu carro e da casa e, hesitando apenas um instante, pegou
a pequena lata. Willie foi atrás dele.
— Como você acha que ele é? —
perguntou rindo.
— Quem?
— Deus, claro. Como você acha
que ele é?
Mack pensou um instante.
— Não sei. Talvez ele tenha
uma luz muito forte ou apareça no meio de uma sarça ardente. Sempre o
visualizei assim como um avô, com uma barba longa flutuando.
Deu de ombros, entregou as
chaves de seu carro a Willie e os dois trocaram um abraço rápido.
— Bom, se ele aparecer, dê
lembranças minhas — disse Willie com um sorriso afetuoso. — Estou
preocupado com você, meu chapa. Gostaria de ir junto. Vou fazer uma ou
duas orações por você.
— Obrigado, Willie. Você é um
amigo e tanto.
Acenou enquanto Willie dava
marcha a ré pela entrada de veículos. Mack sabia que ele manteria a
promessa. Provavelmente ele iria precisar de todas as orações que
conseguisse.
Ficou olhando até Willie
virar a esquina e sumir, depois tirou o bilhete do bolso da camisa, leu
mais uma vez e colocou-o na lata, que depositou no banco do carona em meio
a outros equipamentos. Trancando as portas do jipe, voltou para casa e para
uma noite sem sonhos.
* * *
Bem antes do amanhecer da sexta-feira,
Mack já estava fora da cidade. Nan havia telefonado na noite anterior
dizendo que chegaram em segurança e que voltaria a ligar no domingo. Até
lá provavelmente ele já teria voltado.
Refez o mesmo caminho que
haviam tomado três anos e meio antes, mas passou pela cachoeira Multnomah
sem olhar. No longo trecho subindo o desfiladeiro sentiu o pânico se
esgueirando e invadindo sua consciência. Tentara não pensar no que estava
fazendo e simplesmente ir colocando um pé na frente do outro, mas os
sentimentos e temores represados começaram a surgir. Seus olhos ficaram
sombrios e as mãos apertavam com força o volante enquanto ele lutava
contra a tentação de voltar para casa. Sabia que estava indo direto para o
centro de sua dor, o vórtice da Grande Tristeza que havia minado sua
alegria de viver.
Finalmente pegou a
auto-estrada para Joseph. Pensou em procurar Tommy, mas decidiu não fazer isso.
Quanto menos pessoas pensassem que ele era um lunático desvairado, melhor.
O trânsito era tranqüilo e as
estradas estavam notavelmente limpas e secas para essa época do ano, mas
parecia que quanto mais avançava mais lentamente viajava, como se de algum
modo a cabana repelisse sua aproximação. O jipe atravessou a faixa de
neve enquanto ele subia os últimos 3 quilômetros até a
trilha que iria descer para a cabana. Era apenas o início da tarde quando
Mack finalmente parou e estacionou no começo da trilha praticamente
invisível.
Ficou ali sentado por cerca
de cinco minutos, repreendendo-se por ser tão idiota. A cada quilômetro
percorrido desde Joseph as lembranças voltavam com uma clareza que
o empurrava para trás. Mas a compulsão interna de prosseguir era
irresistível.
Levantou-se, olhou o caminho
e decidiu deixar tudo no carro e descer a pé o trecho de cerca de um
quilômetro e meio até o lago. Pelo menos não teria de carregar nada
morro acima quando retornasse para ir embora, o que esperava que
acontecesse logo.
Estava suficientemente frio
para sua respiração pairar no ar em volta dele, e parecia que ia nevar. A
dor que estivera crescendo no estômago finalmente o empurrou para
o pânico. Depois de apenas cinco passos ele parou e teve ânsias de vômito
tão fortes que o deixaram de joelhos.
— Por favor, me ajude! —
gemeu. Em seguida levantou-se com as pernas trêmulas e virou-se. Abriu a
porta do carona e enfiou a mão, remexendo até sentir a pequena lata.
Abriu a tampa e encontrou o
que estava procurando: sua foto predileta de Missy, que tirou junto com o
bilhete. Recolocou a tampa e deixou a lata no banco. Parou um
momento olhando o porta-luvas. Por fim abriu-o e pegou a arma de Willie,
verificando que estava carregada e com a trava de segurança acionada. De
pé, fechou a porta, enfiou a mão embaixo do casaco e pôs a arma no cinto,
às costas. Virou-se e encarou o caminho de novo, olhando uma última vez a
foto de Missy antes de enfiá-la no bolso da camisa junto com o bilhete. Se
o encontrassem morto, pelo menos saberiam qual tinha sido seu último
pensamento.
A trilha era traiçoeira; as
pedras, geladas e escorregadias. Cada passo exigia concentração enquanto
ele descia para a floresta cada vez mais densa. O silêncio
era fantasmagórico. Os únicos sons que podia ouvir eram os de seus passos
esmagando a neve e o da sua respiração pesada. Mack começou a sentir que
estava sendo observado e uma vez chegou a girar rapidamente para ver se
havia alguém ali. Por mais que quisesse dar a volta e correr para o jipe,
seus pés pareciam ter vontade própria, determinados a continuar pelo
caminho e entrar mais fundo na floresta mal iluminada e cada vez mais fechada.
De repente algo se mexeu ali
perto. Assustado, ele se imobilizou em silêncio e alerta.
Com o coração martelando nos
ouvidos e a boca subitamente seca, levou devagar a mão às costas e tirou a
pistola do cinto. Depois de soltar a trava, olhou fixamente para o
mato baixo e escuro, tentando ver ou ouvir algo que pudesse explicar o
barulho e diminuir o jorro de adrenalina. Mas o que quer que tivesse se
mexido havia parado agora. Estaria esperando por ele? Só para garantir,
ficou imóvel por alguns minutos antes de começar de novo a descer
lentamente a trilha, tentando ser o mais silencioso possível.
A floresta parecia se fechar
ao seu redor e ele começou a se perguntar seriamente se havia tomado o
caminho errado. Com o canto do olho viu movimento outra vez e se
agachou instantaneamente, espiando entre os galhos baixos de uma árvore
próxima. Algo fantasmagórico, como uma sombra, entrou nos arbustos. Ou
seria imaginação? Esperou de novo, sem mexer um músculo. Seria Deus?
Duvidava. Talvez um animal. Então o pensamento que estivera evitando:
"E se for algo pior? E se ele tivesse sido atraído aqui para cima?
Mas para quê?"
Levantando-se devagar do
esconderijo, com a arma ainda na mão, deu um passo adiante, e foi quando
de repente o arbusto atrás dele pareceu explodir. Mack girou, apavorado
e pronto para lutar pela vida, mas, antes que pudesse apertar o gatilho,
reconheceu um texugo correndo de volta pela trilha. Exalou aos poucos o ar
que estivera prendendo, baixou a arma e balançou a cabeça. Mack, o
corajoso, parecia um menino apavorado na floresta. Depois de travar a arma
de novo, guardou-a. "Alguém poderia se machucar", pensou com um
suspiro de alívio.
Respirando fundo outra vez e
soltando o ar lentamente, acalmou-se. Decidiu que estava farto de sentir
medo e continuou a descer o caminho, tentando parecer mais confiante do
que se sentia. Esperava não ter vindo tão longe à toa. Se Deus
realmente aparecesse, Mack estava mais do que pronto para dizer-lhe umas
tantas verdades.
Algumas voltas depois, saiu
da floresta para uma clareira. Do outro lado, abaixo da encosta, viu-a de
novo: a cabana. Ficou parado olhando-a, com o estômago transformado numa
bola em movimento e tumulto. Na superfície nada parecia ter mudado, afora
o inverno ter despido as árvores e o manto branco de neve que cobria
o lugar. A cabana parecia morta e vazia, mas de repente transformou-se num
monstro de rosto maligno, retorcido numa careta demoníaca, olhando-o
diretamente e desafiando-o a se aproximar. Ignorando o pânico crescente,
Mack desceu com decisão os últimos 100 metros e subiu os degraus da varanda.
As lembranças e o horror da
última vez em que estivera ali voltaram num rompante e ele hesitou antes
de empurrar a porta.
— Olá? — chamou, não muito
alto. Pigarreando, chamou de novo, dessa vez mais alto. — Olá? Tem alguém
aí? — Sua voz ecoou no vazio. Sentindo-se mais seguro, entrou na sala e
parou.
Enquanto seus olhos se
ajustavam à semi-escuridão, começou a perceber os detalhes da sala com a
luz da tarde se filtrando pelas janelas quebradas. Reconheceu as
cadeiras velhas e a mesa. Não conseguiu evitar que seus olhos fossem
atraídos para o único local que não suportaria olhar. Mesmo depois de
alguns anos, a mancha de sangue desbotada ainda era claramente visível na
madeira perto da lareira, onde haviam encontrado o vestido de Missy.
— Desculpe, querida. —
Lágrimas começaram a se juntar nos seus olhos.
E finalmente seu coração
explodiu como uma tromba-d'água, soltando a raiva contida e deixando-a
jorrar pelos cânions rochosos de suas emoções. Virando os olhos para o
céu, começou a gritar suas perguntas angustiadas.
— Por quê? Por que você
deixou que isso acontecesse? Por que me trouxe aqui? Por que logo aqui?
Não bastou matar minha filhinha? Tinha de zombar de mim também?
Numa fúria cega, Mack pegou
a cadeira mais próxima e jogou-a contra a janela, despedaçando-a.
Com uma das pernas da cadeira, começou a destruir tudo que podia.
Grunhidos e gemidos de
desespero e fúria irrompiam de seus lábios enquanto ele soltava a fúria
naquele lugar terrível. — Odeio você! — Num frenesi, liberou a raiva até
ficar exaurido.
Desesperado e derrotado, Mack
se deixou cair no chão, perto da mancha de sangue.
Tocou-a com cuidado. Era tudo
o que restava de sua Missy. Deitado junto dela, os dedos acompanharam com
ternura as bordas descoloridas e ele sussurrou baixinho:
— Missy, desculpe. Desculpe
se não pude proteger você. Desculpe se não pude encontrar você.
Mesmo em sua exaustão, a
raiva fervilhou e de novo ele apontou contra o Deus indiferente que ele
imaginava encontrar-se em algum lugar acima do teto da cabana.
— Deus, você nem deixou que a
encontrássemos e a enterrássemos. Seria pedir demais?
Enquanto a mistura de emoções
ia e vinha, com a raiva dando lugar à dor, uma nova onda de tristeza
começou a se misturar com sua confusão.
— Então, onde está você?
Achei que queria se encontrar comigo. Bom, estou aqui, Deus. E você? Não
está em lugar nenhum! Nunca esteve quando precisei, nem quando eu era
pequeno, nem quando perdi Missy. Nem agora! Tremendo "Papai" você
é! — cuspiu as palavras.
Mack ficou ali sentado em
silêncio, com o vazio do lugar invadindo sua alma. Todas as perguntas sem
resposta e as acusações dolorosas se acomodaram no chão ao lado dele e
lentamente se transformaram num poço de desolação. A Grande Tristeza se apertou
ao redor e ele quase gostou da sensação esmagadora. Esta dor ele conhecia.
Estava familiarizado com ela, era quase uma amiga.
Mack podia sentir a arma na
cintura, um frio convidativo contra a pele. Pegou-a, sem saber direito o
que fazer. Ah, parar de se preocupar, parar de sentir a dor, nunca
mais sentir nada. Suicídio? No momento a opção era quase atraente.
"Seria tão fácil", pensou.
"Chega de lágrimas,
chega de dor..." Quase podia ver um abismo preto abrindo-se no chão
atrás da arma para a qual estava olhando, uma escuridão que sugava os
últimos vestígios de esperança do coração. Matar-se seria um modo de
contra-atacar Deus, se Deus ao menos existisse.
As nuvens se abriram do lado
de fora e de repente um raio de sol derramou-se na sala, rasgando o centro
de seu desespero. Mas... e Nan? E Josh, Kate, Tyler e Jon? Por mais que
desejasse interromper a dor, sabia que não poderia aumentar o sofrimento deles.
Uma brisa fria passou por seu
rosto e parte de Mack quis simplesmente se deitar e congelar até a morte,
de tão exausto. Encostou-se na parede e esfregou os olhos cansados.
Deixou-os fecharem-se enquanto murmurava:
— Eu te amo, Missy. Sinto
saudades demais. — Logo penetrou sem esforço num sono pesado.
Provavelmente haviam se
passado apenas alguns minutos quando Mack despertou com um solavanco.
Surpreso por ter cochilado, levantou-se depressa. Enfiando a arma de volta
na cintura e a raiva na parte mais funda da alma, foi em direção à porta.
— Isso é ridículo! Sou tão
idiota! E pensar que eu esperava que Deus poderia se importar a ponto de
me mandar um bilhete!
Olhou para o espaço aberto.
— Estou cheio, Deus —
sussurrou. — Não posso mais. Estou cansado de tentar encontrá-lo em tudo
isso. — E saiu pela porta.
Decidiu que esta era a última
vez que procuraria Deus.
Se Deus o quisesse, teria de
vir encontrá-lo.
Enfiou a mão no bolso, pegou
o bilhete que havia encontrado na caixa de correio e picou-o em
pedacinhos, deixando-os escorrer lentamente entre os dedos para
serem levados pelo vento frio que havia aumentado. Com passos pesados e o
coração mais pesado ainda, começou a caminhar de volta para o jipe.
* * *
Mal havia caminhado uns 15 metros pela trilha
quando sentiu um jorro súbito de ar quente alcançá-lo por trás. O canto de
um pássaro rompeu o silêncio gelado. O caminho diante dele perdeu
rapidamente o verniz de gelo e neve, como se alguém estivesse usando um
secador de cabelos. Mack parou e ficou olhando, enquanto ao redor
a cobertura branca se dissolvia e era substituída por uma vegetação
radiante. Três semanas de primavera se desdobraram diante dele em 30
segundos. Esfregou os olhos e firmou-se naquele redemoinho. Até mesmo a
neve fina que havia começado a cair se transformara em minúsculas flores
descendo preguiçosamente para o chão.
O que ele estava vendo,
claro, não era possível. Os montes de neve haviam desaparecido e flores
silvestres de verão começaram a colorir as bordas da trilha e a surgir na
floresta até onde a vista alcançava. Tordos, esquilos e tâmias atravessavam de
vez em quando o caminho, alguns parando para sentar-se e olhá-lo por um
momento antes de mergulhar de novo no mato baixo. Como se isso não
bastasse, o perfume das flores começou a encher o ar, não somente o aroma
fugaz de flores silvestres da montanha, mas a intensidade de rosas, orquídeas
e outras fragrâncias exóticas encontradas em climas mais tropicais.
O terror dominou Mack, como
se ele tivesse aberto a Caixa de Pandora e fosse varrido para o centro da
loucura, perdendo-se para sempre. Inseguro, girou com cuidado, tentando se
agarrar a algum sentimento de sanidade.
Ficou pasmo. Tudo mudara. A
cabana dilapidada fora substituída por um chalé sólido e lindamente
construído com troncos descascados à mão, cada um deles trabalhado para um
encaixe perfeito.
Em vez dos arbustos escuros e
agrestes de macegas, urzes e espinheiros, tudo o que Mack via agora era
perfeito como num cartão-postal. A fumaça subia preguiçosa da chaminé para
o céu do fim de tarde, sinal de atividade dentro da cabana. Um caminho
fora construído ao redor da varanda da frente, limitado por uma pequena
cerca de ripas brancas.
O som de risos vinha de perto
— talvez de dentro, mas não dava para ter certeza.
Talvez fosse assim a
experiência de um surto psicótico total.
— Estou pirando de vez —
sussurrou Mack. — Isso não pode estar acontecendo. Não é real.
Era um lugar que Mack só
poderia ter imaginado em seus melhores sonhos, e isso tornava a coisa
ainda mais suspeita. A visão era maravilhosa, os perfumes inebriantes,
e seus pés, como se tivessem vontade própria, levaram-no de volta descendo
o caminho até a varanda da frente. Flores brotavam em toda parte e a
mistura de fragrâncias florais provocou lembranças de infância, esquecidas
havia muito. Ele sempre ouvira dizer que o olfato era o melhor elo com o
passado, o sentido mais forte para redescobrir histórias antigas.
Na varanda, parou de novo.
Vozes vinham muito claramente de dentro. Mack rejeitou o impulso súbito de
sair correndo, como se fosse algum garoto que tivesse jogado a bola no
jardim de um vizinho. "Quem estaria lá dentro?" Fechou os olhos e
balançou a cabeça para ver se conseguia apagar a alucinação e restaurar a
realidade. Mas, quando os abriu, tudo continuava ali. Estendeu a mão,
hesitando, e tocou o corrimão de madeira.
Certamente parecia real.
Agora enfrentava outro
dilema. O que você faz quando chega à porta de uma casa — ou de um chalé,
neste caso — onde Deus pode estar? Deve bater? Certamente Deus devia
saber que Mack estava ali. Talvez ele simplesmente devesse entrar e se
apresentar, mas isso parecia igualmente absurdo. E como se dirigir a Deus?
Deveria chamá-lo de Pai, de Todo- Poderoso ou talvez de Senhor Deus? Seria
melhor ajoelhar-se e cair em adoração?
Enquanto tentava estabelecer
algum equilíbrio interno, a raiva voltou a emergir.
Energizado pela ira, Mack foi
até a porta. Decidiu bater com força para ver o que acontecia, mas, no
momento em que levantou o punho, a porta se escancarou e diante dele
apareceu uma negra enorme e sorridente.
Mack pulou para trás por
instinto, mas foi lento demais. Com uma velocidade surpreendente para o
seu tamanho, a mulher atravessou a distância entre os dois e o engolfou
nos braços, levantando-o do chão e girando-o como se ele fosse uma
criança pequena. E o tempo todo gritava o seu nome, Mackenzie Allen Phillips,
com o ardor de alguém que reencontrasse um parente amado há muito perdido.
Por fim colocou-o de volta no chão e, com as mãos nos ombros dele,
empurrou-o para trás, como se quisesse vê-lo bem.
— Mack, olha só para você! —
ela praticamente explodiu. — Aí está, e tão crescido! Eu estava ansiosa
para vê-lo cara a cara. É tão maravilhoso tê-lo aqui conosco! Minha nossa,
como eu amo você! — E, ao dizer isso, o abraçou de novo.
Mack ficou sem fala. Em
poucos segundos aquela mulher havia rompido praticamente todas as convenções
sociais atrás das quais ele se entrincheirava com tanta segurança.
Mas algo no seu olhar e na
maneira como ela dizia o seu nome o deixou deliciado, mesmo não tendo a
menor idéia de quem se tratava.
De repente foi dominado pelo
perfume que exalava da mulher, e isso o sacudiu. Era o cheiro de flores,
com sugestões de gardênia e jasmim, inconfundivelmente o perfume de
sua mãe que ele mantivera guardado em um vidro na latinha. O cheiro que
jorrava e a lembrança que vinha junto o fizeram cambalear. Podia sentir o
calor das lágrimas em seus olhos, como se estivessem batendo à porta de
seu coração. A mulher percebeu.
— Tudo bem, querido, pode
deixar que elas saiam... Sei que você foi magoado e que está com raiva e
confuso. Então vá em frente e ponha para fora. É bom para a alma deixar
que as águas rolem de vez em quando, as águas que curam.
Mack não podia impedir que as
lágrimas enchessem seus olhos, mas não estava preparado para soltá-las,
ainda não, não com essa mulher. Reuniu todas as forças possíveis para evitar
cair de volta no buraco negro das emoções. Enquanto isso, a mulher ficou
ali com os braços estendidos, como se fossem os da sua mãe. Ele sentiu
a presença do amor. Era quente, convidativo, derretia tudo.
— Não está pronto? — reagiu
ela. — Tudo bem, vamos fazer as coisas no seu devido tempo. Venha comigo.
Posso pegar seu casaco? E essa arma? Você não precisa mesmo dela, certo? Não
queremos que alguém se machuque, não é?
Mack não sabia direito o que
fazer ou dizer. Quem era ela? Enraizado no mesmo lugar, lenta e
mecanicamente tirou o casaco.
A negra enorme pegou o casaco
e ele lhe entregou a arma, que ela segurou com a ponta de dois dedos, como
se aquilo estivesse contaminado. No momento em que ela se virou para
entrar no chalé, uma mulher pequena, claramente asiática, emergiu de trás
da negra.
— Aqui, deixe-me pegar isso —
cantarolou ela. Obviamente não queria falar do casaco nem da arma e sim de
outra coisa, e estava na frente dele num piscar de olhos. Mack se
enrijeceu ao sentir algo passar suavemente em sua face. Sem se mexer, olhou
para baixo e viu que a mulher estava usando um frágil frasco de cristal e
um pequeno pincel, como os que vira Nan e Kate usar para maquiagem, e que
gentilmente removia algo de seu rosto.
Antes que ele pudesse
perguntar, ela sorriu e sussurrou:
— Mackenzie, todos temos
coisas que valorizamos a ponto de colecionar, não é? — A pequena lata
relampejou na mente dele. — Eu coleciono lágrimas.
Enquanto a mulher recuava,
Mack se pegou franzindo os olhos na direção dela, como se isso lhe
permitisse enxergar melhor. Mas, estranhamente, ainda tinha dificuldade
para focalizá-la. Ela parecia quase tremeluzir na luz e seu cabelo voava
em todas as direções, apesar de não haver nenhuma brisa. Era quase mais
fácil vê-la com o canto do olho do que fixando-a diretamente.
Então olhou para além dela e
notou que uma terceira pessoa havia saído do chalé. Desta vez era um
homem. Parecia ser do Oriente Médio e se vestia como um operário,
com cinto de ferramentas e luvas. Estava de pé, tranqüilamente encostado
no portal e com os braços cruzados, usando jeans cobertos de serragem e
uma camisa xadrez com mangas enroladas acima dos cotovelos, revelando
antebraços musculosos. Suas feições eram bastante agradáveis, mas ele não
era particularmente bonito — não se destacaria numa multidão. Mas seus
olhos e o sorriso iluminavam o rosto e Mack achou difícil desviar o olhar.
Mack recuou de novo, sentindo-se um tanto esmagado.
— Há mais de vocês? —
perguntou meio rouco.
Os três se entreolharam e
riram. Mack não conseguiu evitar um sorriso.
— Não, Mackenzie — riu a
negra. — Somos tudo que você tem e, acredite, é mais do que o bastante.
Mack tentou olhar de novo
para a mulher asiática. Pelo que podia ver, ela talvez fosse do Norte da
China, ou até mesmo de etnia mongólica. Era difícil dizer, porque seus
olhos precisavam se esforçar para enxergá-la. Pelas roupas, Mack presumiu
que fosse jardineira ou que cuidasse da horta. Tinha luvas dobradas no
cinto, não como as de couro do homem, mas leves, de pano e borracha, como
as que o próprio Mack usava para trabalhar no quintal de casa. Vestia
jeans simples com desenhos ornamentais nas barras — joelhos cobertos da
terra onde estivera ajoelhada — e uma blusa muito colorida com manchas de
amarelo, vermelho e azul. Mack tinha uma impressão de tudo isso, porque
ela parecia entrar e sair de seu campo de visão.
Então o homem se aproximou,
tocou o ombro de Mack, beijou-o nas faces e o abraçou com força. Mack
soube instantaneamente que gostava dele. Depois o homem recuou e a mulher
asiática aproximou-se de novo, segurando seu rosto com as duas mãos. Gradual
e intencionalmente, ela aproximou o seu rosto do dele e olhou no fundo de
seus olhos.
Mack achou que quase podia
ver através dela. Então a mulher sorriu e seu perfume pareceu envolvê-lo e
tirar um peso enorme de seus ombros.
De repente Mack sentiu-se
mais leve do que o ar, quase como se não tocasse mais o chão. Ela estava
abraçando-o sem abraçá-lo, ou sem mesmo tocá-lo. Só quando ela recuou, o
que provavelmente aconteceu apenas alguns segundos depois, ele
percebeu que ainda estava de pé e que seus pés continuavam tocando o piso
da varanda.
— Ah, não se incomode — riu a
negra enorme. — Ela causa esse efeito em todo mundo.
— Gosto disso — ele murmurou
e os três irromperam em mais risos. Agora Mack se pegou rindo com eles,
sem saber exatamente por que e não se importando com isso.
Quando finalmente parou de
rir, a mulher enorme passou o braço por seus ombros, puxou-o e disse:
— Nós sabemos quem você é,
mas acho que devemos nos apresentar. Eu — ela balançou as mãos com um
floreio — sou a governanta e cozinheira. Pode me chamar de Elousia.
— Elousia? — perguntou Mack,
sem compreender.
— Certo, você não precisa me
chamar de Elousia. É só um nome de que eu gosto e que tem um significado
particular para mim. Então — ela cruzou os braços e pôs a mão sob
o queixo, como se pensasse com intensidade especial — pode me chamar do
mesmo modo como Nan me chama.
— O quê? Você não quer
dizer... — Agora Mack ficou surpreso e mais confuso ainda.
Sem dúvida aquela não era o
Papai que havia mandado o bilhete! — É... quer dizer, "Papai"?
— É — respondeu ela e sorriu,
esperando que ele falasse, mas Mack ficou quieto.
O homem, que parecia ter
trinta e poucos anos e era um pouco mais baixo do que Mack, interrompeu:
— Tento manter as coisas
consertadas por aqui. Mas gosto de trabalhar com as mãos, se bem que, como
essas duas vão lhe dizer, sinto prazer em cozinhar e cuidar do jardim.
— Você parece ser do Oriente
Médio, talvez seja árabe? — perguntou Mack.
— Na verdade, sou irmão de
criação daquela grande família. Sou hebreu; para ser exato, da casa de
Judá.
— Então... — De repente Mack
ficou abalado com a própria percepção. — Então você é...
— Jesus? Sou. E pode me
chamar assim, se quiser. Afinal de contas, esse se tornou o meu nome
comum. Minha mãe me chamava de Yeshua, mas também posso ser conhecido como
Joshua ou até mesmo Jessé.
Mack ficou perplexo e mudo. O
que ele estava vendo e ouvindo parecia completamente impossível! De
repente sentiu que ia desmaiar. A emoção o varria, enquanto sua
mente tentava em desespero acompanhar todas as informações. Nesse momento
a asiática chegou mais perto e desviou sua atenção.
— E eu sou Sarayu — disse ela
inclinando a cabeça numa ligeira reverência e sorrindo. — Guardiã dos jardins,
dentre outras coisas.
Pensamentos se embolavam
enquanto Mack lutava para ter alguma clareza. Será que alguma daquelas
pessoas era Deus? E se fossem alucinações? Ou será que Deus viria mais
tarde? Já que eram três, talvez aquilo fosse uma espécie de Trindade. Mas
duas mulheres e um homem? E nenhum deles era branco? Mas por que ele havia
presumido que Deus seria branco? Sabia que sua mente estava divagando, por
isso concentrou-se na pergunta que mais queria ver respondida.
— Então qual de vocês é Deus?
— Eu — responderam os três em uníssono. Mack
olhou de um para o outro e, mesmo sem entender nada, de algum modo
acreditou.
6. Aula de vôo
...não importa qual seja
o poder de Deus, o primeiro aspecto de Deus jamais é o do Senhor absoluto, do
Todo-Poderoso. Ê o do Deus que se coloca no nosso nível humano e se limita.
— Jacques Ellul, Anarchy
and Christianity
— Mackenzie, não fique aí
parado de boca aberta — disse a negra enorme enquanto se virava e seguia
pela varanda, falando o tempo todo. — Venha conversar comigo
enquanto preparo a janta. Ou, se não quiser, faça o que desejar. Atrás do
chalé, perto do abrigo de barcos, você vai encontrar uma vara de pesca que
pode usar para pegar umas trutas. Ela parou junto à porta para dar um
beijo em Jesus.
— Lembre apenas — e virou-se
para olhar Mack — que você tem de limpar o que pegar. — Depois, com um
sorriso rápido, desapareceu no chalé, carregando o casaco de inverno de
Mack e segurando a arma pelos dois dedos, com o braço estendido.
Mack ficou parado, de boca
aberta e com uma expressão de perplexidade grudada no rosto.
Mal notou quando Jesus passou
o braço por seu ombro. Sarayu parecia ter simplesmente evaporado.
— Ela não é fantástica? —
exclamou Jesus, rindo para Mack.
Mack o encarou, balançando a
cabeça.
— Estou ficando maluco? Devo
acreditar que Deus é uma negra gorda com um senso de humor questionável?
Jesus riu.
— Ela é uma piada! Adora
surpresas e tem uma noção de tempo sempre perfeita.
— Verdade? — disse Mack,
ainda balançando a cabeça e sem saber se realmente acreditava. — Então o
que devo fazer agora?
— Você não deve fazer nada.
Está livre para o que quiser. — Jesus fez uma pausa e continuou, dando
algumas sugestões: — Estou trabalhando num projeto em madeira no barracão
e Sarayu está no jardim. Você pode ir pescar, andar de canoa ou entrar
e conversar com Papai.
— Bem, acho que me sinto
obrigado a entrar e falar com ele... isto é, com ela.
— Ah! — Agora Jesus estava
sério. — Não se sinta obrigado. Vá se for isso o que você quer fazer.
Mack pensou um momento e decidiu
que entrar no chalé era o que realmente desejava. Agradeceu a Jesus, que,
sorrindo, foi para a sua oficina. Mack atravessou a varanda e chegou à
porta. Depois de olhar rapidamente em volta, abriu-a. Enfiou a cabeça para
dentro, hesitou e decidiu mergulhar.
— Deus? — chamou timidamente,
sentindo-se bastante idiota.
— Estou na cozinha,
Mackenzie. Basta seguir minha voz.
Ele entrou e examinou a sala.
Será que este era o mesmo lugar? Estremeceu diante do sussurro dos pensamentos
sombrios à espreita e trancou-os de novo. Olhou para a sala de estar
procurando o local perto da lareira, mas não encontrou nenhuma mancha.
Notou que a sala era decorada com figuras que pareciam ter sido desenhadas
ou feitas por crianças. Imaginou se aquela mulher guardava com carinho cada
uma daquelas peças, como qualquer pai ou mãe que ama os filhos.
Talvez fosse assim que ela
valorizava as coisas que lhe eram dadas de coração, como as crianças em
geral fazem. Mack foi em direção ao cantarolar baixo e chegou a uma
copa-cozinha onde havia uma mesa com quatro lugares e cadeiras de encosto
de vime. O interior do chalé era mais espaçoso do que ele havia imaginado.
Papai estava trabalhando em alguma coisa, de costas para ele, com farinha
voando enquanto se balançava ao ritmo da música ou do que quer que
estivesse escutando. A canção obviamente acabou, marcada por duas últimas
sacudidas de ombros e quadris. Virando-se para encará-lo, a negra tirou
os fones de ouvido.
De repente Mack quis fazer
mil perguntas ou dizer mil coisas, algumas terríveis. Tinha a certeza de
que seu rosto traía as emoções que ele lutava para controlar e então
enfiou tudo de volta no coração sofrido. Se ela conhecia seu conflito
interno, não demonstrou nada pela expressão — ainda aberta, cheia de vida
e convidativa.
Ele quis saber:
— Posso perguntar o que você
está escutando?
— Um barato da Costa Oeste. É
um disco que ainda nem foi lançado, chamado Viagens do coração, tocado por
uma banda chamada Diatribe. Na verdade — ela piscou para Mack —, esses
garotos ainda nem nasceram.
— É mesmo? — reagiu Mack
bastante incrédulo. — Um barato da Costa Oeste, hein? Não parece muito
religioso.
— Ah, acredite: não é. É mais
tipo funk e blues eurasiano, com uma mensagem fantástica. — Ela veio
bamboleando na direção de Mack, como se estivesse dançando, e bateu
palmas. Mack recuou.
— Então Deus ouve funk? —
Mack nunca ouvira a palavra "funk" em qualquer
contexto religioso. — Achei que você estaria ouvindo uma música mais de
igreja.
— Ora, veja bem, Mackenzie.
Você não precisa ficar me rotulando. Eu ouço tudo e não somente a música
propriamente dita, mas os corações que estão por trás dela. Não se lembra
de suas aulas na escola dominical? Esses garotos não estão dizendo nada que
eu já não tenha ouvido antes. Simplesmente são cheios de vinagre e gás.
Muita raiva, e, devo dizer, com um bocado de razão. São apenas alguns dos
meus meninos se mostrando e fazendo beicinho. Gosto especialmente desses
garotos. É, vou ficar de olho neles.
Mack lutou para encontrar
algum sentido no que acontecia. Nada do que estudara na escola dominical
da igreja estava ajudando. Sentia-se subitamente sem palavras e todas as
suas perguntas pareciam tê-lo abandonado. Por isso declarou o óbvio:
— Você deve saber que
chamá-la de Papai é meio complicado para mim.
— Ah, verdade? — Ela olhou-o
fingindo surpresa. — Claro que sei. Sempre sei. — Ela deu um risinho. —
Mas diga, por que você acha que é difícil? Porque é uma palavra
familiar demais ou talvez porque estou me mostrando como mulher, mãe ou...
— Tudo isso é complicado —
interrompeu Mack com um risinho sem jeito.
— Ou talvez por causa dos
fracassos do seu pai?
Mack ofegou
involuntariamente. Não estava acostumado a ver seus segredos
mais profundos virem à superfície de modo tão rápido e explícito. A culpa
e a raiva cresceram instantaneamente, e ele quis reagir com uma resposta
sarcástica. Sentia que estava pendurado sobre um abismo sem fundo e teve
medo de que, se deixasse algo daquilo sair, perderia o controle de tudo.
Procurou uma base segura, mas finalmente só conseguiu responder com os
dentes trincados:
— Talvez porque nunca conheci
ninguém a quem pudesse realmente chamar de papai.
Diante disso, ela pousou a
tigela que estava aninhada em seu braço e, deixando dentro a colher de
pau, virou-se para Mack com olhos gentis. Não precisava dizer coisa alguma.
Ele viu imediatamente que ela
entendia o que lhe ia na alma e de algum modo soube que ela gostava mais
dele do que de qualquer pessoa.
— Se você deixar, Mack, serei
o pai que você nunca teve.
A oferta era ao mesmo tempo
convidativa e repulsiva. Ele sempre quisera um pai em quem pudesse
confiar, mas não sabia se iria encontrá-lo ali, logo com alguém que
não pudera proteger sua Missy. Um longo silêncio pairou entre eles. Mack
não sabia direito o que dizer e ela parecia não ter pressa.
— Se você não foi capaz de
cuidar de Missy, como posso confiar que cuide de mim?
Pronto, havia feito a
pergunta que o atormentara em todos os dias da Grande Tristeza.
Mack sentiu o rosto se encher
de um vermelho de raiva, enquanto olhava para o que agora considerava uma
caracterização estranha de Deus, e percebeu que fechara os punhos com
força.
— Mack, sinto muito. —
Lágrimas começaram a descer pelo rosto dela. — Sei o tamanho do abismo que isso
abriu entre nós. Sei que você ainda não entende, mas gosto especialmente
de Missy e de você também.
Mack adorou o modo como ela
disse o nome de Missy, mas odiou ouvi-lo dito por ela.
A palavra rolava na língua da
mulher como o vinho mais doce e, apesar de toda a fúria que ainda rugia em
sua mente, de algum modo ele acreditou na sinceridade dela. Mack desejava
acreditar, e lentamente parte da raiva começou a diminuir.
— É por isso que você está
aqui, Mack — continuou ela. — Quero curar a ferida que cresceu dentro de
você e entre nós.
Para ganhar algum controle,
ele voltou os olhos para o chão. Passou-se um minuto inteiro antes que
tivesse energia suficiente para sussurrar sem levantar a cabeça:
— Acho que eu gostaria disso
— admitiu —, mas não vejo como.
— Querido, não existe
resposta fácil para a sua dor. Acredite, se eu tivesse uma, usaria agora.
Não tenho varinha mágica para fazer com que tudo fique bem. A vida custa
um bocado de tempo e um monte de relacionamentos.
Mack ficou satisfeito porque
estavam se afastando de sua acusação medonha. Ficara apavorado com a
intensidade da própria raiva.
— Acho que seria mais fácil
ter esta conversa se você não estivesse usando um vestido — ele sugeriu,
tentando sorrir debilmente.
— Se fosse mais fácil, eu não
estaria assim — ela disse com um risinho. — Não estou tentando tornar isso mais
difícil para nenhum de nós dois. Mas este é um bom lugar para começar. Acho que
começar tirando do caminho as questões que vêm da cabeça faz com que as do
coração fiquem mais fáceis de ser trabalhadas... quando você estiver
pronto.
Ela pegou de novo a colher de
pau, de onde pingava algum tipo de massa.
— Mackenzie, eu não sou
masculino nem feminina, ainda que os dois gêneros derivem da minha
natureza. Se eu escolho aparecer para você como homem ou mulher, é porque
o amo. Para mim, aparecer como mulher e sugerir que você me chame de Papai é
simplesmente para ajudá-lo a não sucumbir tão facilmente aos seus
condicionamentos religiosos. Ela se inclinou, como se
quisesse compartilhar um segredo.
— Se eu me revelasse a você
como uma figura muito grande, branca e com aparência de avô com uma barba
comprida, simplesmente reforçaria seus estereótipos religiosos. É importante
você saber que o objetivo deste fim de semana não é reforçar esses
estereótipos.
Mack quase riu alto,
ironizando, mas, em vez disso, concentrou-se no que ela acabara de dizer e
recuperou a compostura. Acreditava, pelo menos no coração, que Deus era um
Espírito, nem masculino nem feminino, mas, apesar disso, sentia-se embaraçado
ao admitir que todas as suas concepções visuais de Deus eram muito brancas
e muito masculinas.
Ela parou de falar enquanto
guardava alguns condimentos numa prateleira de temperos e depois virou-se
para encará-lo de novo. Olhou para Mack com intensidade.
— Não é verdade que você
sempre teve dificuldade para me ver como um pai? Depois do que passou, não
fica nada fácil lidar com um pai, não é?
Ele sabia que ela estava
certa e percebeu a gentileza e a compaixão de sua atitude. De algum modo,
a maneira como ela havia se aproximado dele diminuíra sua resistência
a receber o amor oferecido. Era estranho, doloroso e talvez até um tanto
maravilhoso.
— Mas então — ele parou,
esforçando-se para se manter racional — por que tanta ênfase em você ser
um pai? Quero dizer, este parece o modo como você mais se revela.
— Bem — respondeu Papai
dando-lhe as costas e ocupando-se na cozinha —, há muitos motivos para
isso, e alguns são muito profundos. Por enquanto, deixe-me dizer
que, assim que a Criação se degradou, nós soubemos que a verdadeira
paternidade faria muito mais falta do que a maternidade. Não me entenda
mal, as duas coisas são necessárias, mas é essencial uma ênfase na
paternidade por causa da enormidade das conseqüências da ausência da
função paterna.
Mack se virou, meio perplexo,
sentindo que aquilo já estava indo longe demais.
Enquanto refletia, olhou pela
janela para um jardim de aparência selvagem.
— Você sabia que eu viria,
não é? — disse finalmente, baixinho.
— Claro que sabia. — Ela
estava ocupada de novo, de costas para ele.
— Então eu não estava livre
para deixar de vir? Eu não tinha opção?
Papai se virou de novo para
encará-lo, agora com farinha e massa nas mãos.
— Boa pergunta; até que
profundidade você gostaria de ir? — Ela não esperou resposta, sabendo que
Mack não tinha. Em vez disso, perguntou: — Você acredita que está
livre para ir embora?
— Acho que sim. Estou?
— Claro que está! Não gosto
de prisioneiros. Você está livre para sair por essa porta agora mesmo e
voltar para a sua casa vazia. Mas eu sei que você é curioso demais
para ir. Será que isso reduz sua liberdade de partir?
Ela parou apenas brevemente e
depois voltou para sua tarefa, falando com ele por cima do ombro.
— Se você quiser ir só um
pouquinho mais fundo, poderíamos falar sobre a natureza da própria
liberdade. Será que liberdade significa que você tem permissão para fazer
o que quer? Ou poderíamos falar sobre tudo o que limita a sua liberdade. A
herança genética de sua família, seu DNA específico, seu metabolismo, as
questões quânticas que acontecem num nível subatômico onde só eu sou a
observadora sempre presente.
Existem as doenças de sua
alma que o inibem e amarram, as influências sociais externas, os hábitos
que criaram elos e caminhos sinápticos no seu cérebro. E há os anúncios,
as propagandas e os paradigmas. Diante dessa confluência de inibidores
multifacetados — ela suspirou —, o que é de fato a liberdade?
Mack ficou ali parado, sem
saber o que dizer.
— Só eu posso libertá-lo,
Mackenzie, mas a liberdade jamais pode ser forçada.
— Não entendo. Não estou
entendendo o que você acaba de dizer.
Ela se virou e sorriu.
— Eu sei. Não falei para que
você entendesse agora. Falei para mais tarde. No ponto em que estamos,
você ainda não compreende que a liberdade é um processo de crescimento.
Estendendo gentilmente
as mãos sujas de farinha, ela segurou as de Mack e, olhando-o direto
nos olhos, continuou:
— Mackenzie, a Verdade irá
libertá-lo, e a Verdade tem nome. Neste momento ele está na carpintaria,
coberto de serragem. Tudo tem a ver com ele. E a liberdade é um processo
que acontece dentro de um relacionamento com ele. Então todas essas coisas
que você sente borbulhando por dentro vão começar a sair.
— Como você pode realmente
saber como me sinto? — perguntou Mack, encarando-a de volta.
Papai não respondeu, apenas
olhou para as mãos dos dois. O olhar de Mack seguiu o dela, e pela
primeira vez ele notou as cicatrizes nos punhos da negra, como as que
agora presumia que Jesus também tinha nos dele. Ela permitiu que ele
tocasse com ternura as cicatrizes, marcas de furos fundos, e finalmente
Mack ergueu os olhos para os dela.
Lágrimas desciam lentamente
pelo rosto de Papai, pequenos caminhos através da farinha que empoava suas
faces.
— Jamais pense que o que meu
filho optou por fazer não nos custou caro. O amor sempre deixa uma marca
significativa — ela declarou, baixinho e gentilmente. — Nós estávamos lá,
juntos.
Mack ficou surpreso.
— Na cruz? Espere aí, eu
pensei que você o tinha abandonado. Você sabe: "Meu Deus, meu Deus,
por que me abandonastes?" — Era uma citação das Escrituras
que freqüentemente assombrava Mack na Grande Tristeza.
— Você não entendeu o
mistério naquilo. Independentemente do que ele sentiu no momento, eu nunca
o deixei.
— Como pode dizer isso? Você
o abandonou, exatamente como me abandonou!
— Mackenzie, eu nunca o
abandonei e nunca deixei você.
— Isso não faz nenhum sentido
— reagiu ele rispidamente.
— Sei que não, pelo menos por
enquanto. Mas pense nisto: quando tudo que consegue ver é sua dor, talvez
você perca a visão de mim, não é?
Quando Mack não respondeu,
ela retornou ao trabalho na cozinha, como se quisesse lhe oferecer um
pouco de um necessário espaço. Parecia estar preparando vários pratos
ao mesmo tempo, acrescentando temperos e ingredientes. Cantarolando uma
musiquinha repetitiva, deu os últimos retoques na torta que estava fazendo
e enfiou-a no forno.
— Não se esqueça, a história
não terminou no sentimento de abandono de Jesus. Ele encontrou a saída para se
colocar inteiramente nas minhas mãos. Ah, que momento foi aquele!
Mack se encostou na bancada
um tanto perplexo. Suas emoções e pensamentos estavam todos misturados.
Parte dele queria acreditar em tudo que Papai dizia. Seria ótimo! Mas
outra parte questionava ruidosamente: "Isso não pode ser verdade! "
Papai pegou o cronômetro da
cozinha, girou-o de leve e colocou-o na mesa diante deles.
— Não sou quem você acha,
Mackenzie. — As palavras dela não eram raivosas nem defensivas.
Mack olhou para ela, olhou
para o cronômetro e suspirou.
— Estou me sentindo
totalmente perdido.
— Então vejamos se podemos
encontrá-lo no meio dessa confusão.
Quase como se tivesse
recebido a deixa, um pássaro azul pousou no parapeito da janela e começou
a pular para trás e para a frente. Papai enfiou a mão numa lata sobre a
bancada e, abrindo a janela, ofereceu ao pássaro uma mistura de grãos que ela
devia guardar exatamente para isso. Sem qualquer hesitação e com aparente ar
de humildade e gratidão, o pássaro foi direto para a mão dela e começou a
comer.
— Considere nosso amiguinho
aqui — começou ela. — A maioria dos pássaros foi criada para voar. Para
eles, ficar no solo é uma limitação de sua capacidade de voar, e não o
contrário. — Ela parou para deixar que Mack pensasse nisso. — Você, por
outro lado, foi criado para ser amado.
Assim, para você, viver como
se não fosse amado é uma limitação, e não o contrário.
Mack assentiu, não porque
concordasse completamente, mas sinalizando que entendia e estava
acompanhando. O que ela dizia era bastante simples.
— Viver sem ser amado é como
cortar as asas de um pássaro e tirar sua capacidade de voar. Não é algo
que eu queira para você.
Aí é que estava. No momento
ele não se sentia particularmente amado.
— Mack, a dor tem a
capacidade de cortar nossas asas e nos impedir de voar. — Ela esperou um
momento, permitindo que suas palavras se assentassem. — E, se essa
situação persistir por muito tempo, você quase pode esquecer que foi
criado originalmente para voar.
Mack ficou quieto.
Estranhamente, o silêncio não era tão desconfortável assim.
Olhou o pássaro. O pássaro
olhou de volta para Mack. Ele imaginou se seria possível os pássaros
sorrirem. Pelo menos aquele parecia capaz.
— Não sou como você, Mack.
Não era uma repreensão, e sim
a simples declaração de um fato. Mas para Mack foi como um banho de água
gelada.
— Sou Deus. Sou quem sou. E,
ao contrário de você, minhas asas não podem ser cortadas.
— Bom, é maravilhoso para
você, mas onde, exatamente, isso me deixa? — reagiu Mack, parecendo mais
irritado do que gostaria.
Papai começou a acariciar o
pássaro, aproximou-o do rosto e disse:
— Exatamente no centro do meu
amor!
— Estou achando que esse
pássaro provavelmente entende isso melhor do que eu — foi o máximo que
Mack conseguiu dizer.
— Eu sei, querido. Por isso
estamos aqui. Por que você acha que eu disse que não sou como você?
— Bom, realmente não faço
idéia. Quer dizer, você é Deus e eu não sou. — Ele não conseguiu afastar o
sarcasmo da voz, mas ela o ignorou completamente.
— É, mas não exatamente. Pelo
menos não do modo como você está pensando. Mackenzie, eu sou o que alguns
chamariam de "sagrado e totalmente diferente de você". O problema é
que muitas pessoas tentam entender um pouco o que eu sou pensando
no melhor que elas podem ser, projetando isso ao enésimo grau,
multiplicando por toda a bondade que são capazes de perceber — que
freqüentemente não é muita —, e depois chamam o resultado de Deus. E,
embora possa parecer um esforço nobre, a verdade é que fica
lamentavelmente distante do que realmente sou. Sou muito mais do que
isso, sou acima e além de tudo o que você possa perguntar ou pensar.
— Lamento, mas para mim isso
não passa de palavras. E elas não fazem muito sentido. — Mack deu de ombros.
— Mesmo que você não consiga
finalmente me compreender, sabe de uma coisa? Ainda quero ser conhecido.
— Você está falando de Jesus,
não é verdade? Está me lembrando as aulas de catecismo: "Vamos tentar
entender a Trindade"?
Ela deu um risinho.
— Mais ou menos, mas aqui não
é a escola dominical. É uma aula de vôo. Mackenzie, como você pode
imaginar, há algumas vantagens em ser Deus. Por natureza, sou
completamente ilimitada, sem amarras.
Sempre conheci a plenitude.
Minha condição normal de existência é um estado de satisfação perpétua —
disse ela, bastante satisfeita. — É apenas uma das vantagens de Eu ser Eu.
Isso fez Mack sorrir. A
mulher estava se divertindo muito com ela mesma e não havia um pingo de
arrogância para estragar aquilo.
— Nós criamos vocês para
compartilhar isso. Mas então Adão optou por ficar sozinho, como sabíamos
que iria acontecer, e tudo se estragou.
Mas, em vez de varrer toda a
Criação, arregaçamos as mangas e entramos no meio da bagunça. Foi o que fizemos
em Jesus.
Mack estava parado,
esforçando-se ao máximo para acompanhar o fio dos pensamentos dela.
— Quando nós três penetramos
na existência humana sob a forma do Filho de Deus, nos tornamos totalmente
humanos. Também optamos por abraçar todas as limitações que isso
implicava. Mesmo que tenhamos estado sempre presentes nesse universo
criado, então nos tornamos carne e sangue. Seria como se este pássaro,
cuja natureza é voar, optasse somente por andar e permanecer no chão. Ele
não deixa de ser pássaro, mas isso altera significativamente sua
experiência de vida.
Ela parou para se certificar
de que Mack ainda estava acompanhando seu raciocínio.
Embora houvesse uma dor
nítida se formando em seu cérebro, ele fez um gesto, convidando-a a
continuar.
— Ainda que por natureza
Jesus seja totalmente Deus, ele é totalmente humano e vive como tal. Ainda
que jamais tenha perdido sua capacidade inata de voar, ele opta, momento a
momento, por ficar no chão. Por isso seu nome é Emanuel, Deus conosco,
ou Deus com vocês, para ser mais exata.
— Mas... e todos os milagres?
As curas? Ressuscitar os mortos? Isso não prova que Jesus era Deus... você
sabe, mais do que humano?
— Não, isso prova que Jesus é
realmente humano.
— O quê?
— Mackenzie, eu posso voar,
mas os humanos, não. Jesus é totalmente humano. Apesar de ele ser também
totalmente Deus, nunca aproveitou sua natureza divina para fazer nada.
Apenas viveu seu relacionamento comigo do modo como eu desejo que cada ser humano
viva. Ele foi simplesmente o primeiro a levar isso até as últimas instâncias:
o primeiro a colocar minha vida dentro dele, o primeiro a acreditar no meu
amor e na minha bondade, sem considerar aparências ou conseqüências.
— E quando ele curava os cegos?
— Fez isso como um ser humano
dependente e limitado que confia na minha vida e no meu poder de trabalhar
com ele e através dele. Jesus, como ser humano, não tinha poder para curar
ninguém.
Isso foi um choque para as
crenças religiosas de Mack.
— Só enquanto ele repousava
em seu relacionamento comigo e em nossa comunhão, nossa comum-união, ele
se tornava capaz de expressar meu coração e minha vontade em qualquer
circunstância determinada. Assim, quando você olha para Jesus e parece que ele
está voando, na verdade ele está... voando. Mas o que você está realmente
vendo sou eu, minha vida nele. É assim que ele vive e age como um
verdadeiro ser humano, como cada humano está destinado a viver: a partir da
minha vida.
E continuou:
— Um pássaro não é definido por
estar preso ao chão, mas por sua capacidade de voar. Lembre-se disso: os
seres humanos não são definidos por suas limitações, e sim pelas intenções que
tenho para eles.
Não pelo que parecem ser, mas
por tudo que significa ser criado à minha imagem.
Mack sentiu necessidade de
sentar-se. Percebeu que precisaria de um certo tempo para compreender
todas aquelas informações.
Papai colocou o pássaro sobre
a mesa, perto de Mack, virou-se para abrir o forno e deu uma olhadinha na
torta que estava assando. Satisfeita porque tudo ia bem, puxou uma cadeira
para perto. Mack olhou o pássaro que, espantosamente, parecia contente
em apenas ficar ali com eles. O absurdo daquilo fez Mack dar um risinho.
— Para começar, é bom que
você não consiga entender a maravilha da minha natureza. Quem quer adorar um
Deus que pode ser totalmente compreendido, hein? Não há muito mistério
nisso.
— Mas que diferença faz o
fato de haver três de vocês e que todos sejam um só Deus? É isso mesmo?
— É, sim. — Ela riu. —
Mackenzie, faz toda a diferença do mundo! — Ela parecia estar gostando
daquilo. — Não somos três deuses e não estamos falando de um deus com
três atitudes, como um homem que é marido, pai e trabalhador. Sou um só
Deus e sou três pessoas, e cada uma das três é total e inteiramente o um.
O "hã" que Mack
estivera retendo veio finalmente à superfície com toda a força.
— Não importa — continuou a
mulher. — O importante é o seguinte: se eu fosse simplesmente Um Deus e
Uma Pessoa, você iria se encontrar nesta Criação sem algo maravilhoso, sem
algo que é essencial. E eu seria absolutamente diferente do que sou.
— E nós estaríamos sem...? —
Mack nem sabia como terminar a pergunta.
— Amor e relacionamento. Todo
amor e relacionamento só são possíveis para vocês porque já existem dentro
de Mim, dentro do próprio Deus. O amor não é a limitação. O amor é o vôo.
Eu sou o amor.
Como que em resposta à
declaração dela, o pássaro partiu voando pela janela. Olhá-lo voando
causou um intenso deleite. Mack virou-se de volta para Papai e
olhou-a maravilhado. Ela era muito linda e espantosa e, apesar de estar se
sentindo meio perdido e de a Grande Tristeza ainda o acompanhar, percebeu
crescendo dentro dele um pouco de segurança por estar perto dela.
— Entenda o seguinte —
continuou Papai. — Para que eu tenha um objeto para amar ou, mais
exatamente, um alguém para amar, é preciso que exista esse relacionamento
dentro de mim. Caso contrário, eu não seria capaz de amar. Você teria um
deus incapaz de amar. Ou, talvez pior, você teria um deus que, quando
escolhesse amar, só poderia fazê-lo como uma limitação de sua natureza.
Esse tipo de deus possívelmente poderia agir sem amor e seria um desastre.
E isso certamente não sou eu.
Papai se levantou, foi até a
porta do forno, tirou a torta recém-assada, colocou-a na bancada e,
virando-se como se fosse se apresentar, disse:
— O Deus que é, o "eu
sou quem eu sou", não pode agir fora do amor!
Mack soube que, por mais
difícil de entender que fosse, o que estava escutando era algo espantoso e
incrível. Como se as palavras dela estivessem se enrolando nele,
envolvendo-o e falando com ele de maneiras que iam além do que ele poderia
ouvir. Não que acreditasse de fato em nada daquilo. Se ao menos fosse verdade!
Sua experiência lhe dizia o contrário.
— Este fim de semana tem a ver
com relacionamento e amor. Bom, eu sei que você tem um monte de coisas
para me dizer, mas neste momento é melhor ir se lavar. Os outros dois estão
vindo para o jantar. — Ela foi andando, mas parou e virou-se.
— Mackenzie, sei que seu
coração está cheio de dor, de raiva e de muita confusão. Nós dois vamos
falar um pouco disso enquanto você estiver aqui. Mas também quero
que saiba que estão acontecendo mais coisas do que você pode
imaginar ou entender. Procure usar ao máximo a confiança que tiver em
mim, mesmo que ela seja pequena, está bem?
Mack baixara a cabeça e
olhava para o chão. "Ela sabe", pensou. Pequena? "Pequena"
ou praticamente nada? Confirmando com a cabeça, olhou para cima e notou
novamente as cicatrizes nos pulsos dela.
— Papai? — disse Mack muito
sem jeito.
— O que é, querido?
Mack lutou para encontrar as
palavras que expressassem o que lhe ia no coração.
— Lamento muito que você, que
Jesus tivesse de morrer.
Ela rodeou a mesa e deu outro
grande abraço em Mack.
— Sei que lamenta e agradeço.
Mas você precisa saber que nós não lamentamos nem um pouco. Valeu a pena.
Não é, filho?
Ela se virou para fazer a
pergunta a Jesus, que havia acabado de entrar no chalé.
— Sem dúvida! — Ele fez uma
pausa e depois olhou para Mack. — E eu teria feito aquilo mesmo que fosse
somente por você. Mas não foi! — disse com um sorriso acolhedor.
Mack pediu licença e saiu em
direção ao banheiro. Lavou as mãos e o rosto e tentou recuperar a
compostura.
7. Deus no cais
Rezemos para que a raça
humana jamais escape da Terra para espalhar sua iniqüidade em outros lugares.
— C. S. Lewis
Mack ficou parado no banheiro
olhando o espelho enquanto enxugava o rosto com uma toalha.
Procurava algum sinal de
insanidade naqueles olhos que o espiavam de volta. Aquilo seria real?
Claro que não, era
impossível. Mas então... Estendeu a mão e tocou lentamente o espelho.
Talvez fosse uma alucinação
trazida por todo o seu sofrimento e desespero. Talvez fosse um sonho e ele
estivesse dormindo em algum lugar, quem sabe na cabana, morrendo congelado.
Talvez... de repente um
estrondo terrível rompeu seu devaneio. Vinha da direção da cozinha
e deixou Mack paralisado. Por um momento houve um silêncio mortal e
depois, inesperadamente, gargalhadas retumbantes. Curioso, saiu do
banheiro e enfiou a cabeça pela porta da cozinha.
Mack ficou chocado diante da
cena. Jesus deixara cair uma grande tigela com algum tipo de massa ou
molho no chão, e a coisa tinha se espalhado por toda parte. A barra da saia de
Papai e seus pés descalços estavam cobertos pela massa gosmenta. Sarayu
disse alguma coisa sobre a falta de jeito dos humanos e os três caíram na
risada. Por fim, Jesus passou por Mack e voltou com toalhas e uma grande
bacia de água. Sarayu já estava começando a limpar a sujeira do chão e dos
armários, mas Jesus foi direto até Papai e, ajoelhando-se aos pés dela, começou
a limpar a frente de seu vestido. Gentilmente levantou um pé de cada vez e
colocou os dois na bacia, onde os limpou e massageou.
— Uuuuuh, isso é tãããão bom!
— exclamou Papai.
Encostado no portal, Mack não
parava de pensar. Então Deus era assim no relacionamento? Muito linda e
atraente! Ele sabia que ninguém estava em busca do culpado pela sujeira do
chão, pela tigela quebrada ou por um prato que não seria compartilhado.
Era óbvio que o que realmente importava era o amor que eles sentiam uns
pelos outros e a plenitude que esse amor lhes trazia. Balançou a cabeça. Como
isso era diferente da maneira como ele tratava seus entes queridos!
Embora simples, o jantar foi
um banquete. Algum tipo de ave assada com uma espécie de molho de laranja,
manga e alguma outra coisa, verduras frescas temperadas com sabe-se lá o
quê, com gosto de fruta e de gengibre, e arroz de uma qualidade que Mack
jamais havia provado. Por hábito, abaixou a cabeça para rezar. Levantou-a
e viu os três rindo para ele. Meio sem jeito, disse:
— Ah, obrigado a vocês
todos... Alguém pode me passar o arroz?
— Claro. Nós íamos ter um
molho japonês incrível, mas o sem-jeito ali — Papai acenou na direção de
Jesus — decidiu ver se a tigela quicava.
— Ah, qual é? — respondeu
Jesus num arremedo de defesa. — Minhas mãos estavam escorregadias.
Papai piscou para Mack
enquanto lhe passava o arroz.
— Não se consegue bons
empregados por aqui.
Todo mundo riu.
A conversa parecia quase
normal. Pediram que Mack falasse de cada um dos filhos, menos de Missy, e
ele contou das várias lutas e conquistas deles. Quando falou de
suas preocupações com Kate, os três apenas assentiram com uma expressão
solidária, mas não ofereceram nenhum conselho. Ele também respondeu a
perguntas sobre os amigos, e Sarayu pareceu mais interessada em perguntar
por Nan. Finalmente Mack conseguiu dizer uma coisa que o incomodara
durante toda a conversa.
— Bom, estou aqui falando
sobre meus filhos, meus amigos e sobre Nan, mas vocês já sabem tudo o que
vou dizer, não é? Vocês estão agindo como se ouvissem pela primeira vez.
Sarayu estendeu a mão por
cima da mesa e segurou a dele.
— Mackenzie, lembra-se da
nossa conversa anterior sobre limitação?
— Nossa conversa? — Ele olhou
para Papai, que assentiu como quem sabe das coisas.
— Você não pode compartilhar
com um de nós sem que compartilhe com todos — disse Sarayu e sorriu. —
Lembre-se das muitas vezes em que escolheu sentar no chão para facilitar
um relacionamento, para honrá-lo. Mackenzie, você faz isso freqüentemente.
Você não brinca com uma criança ou colore uma figura com ela para mostrar
sua superioridade. Pelo contrário, você escolhe se limitar para facilitar
e honrar o relacionamento. Você é até capaz de perder uma competição como
um ato de amor. Isso não tem nada a ver com ganhar e perder, e sim
com amor e respeito.
— Então o que acontece quando
estou falando com vocês sobre meus filhos?
— Nós nos limitamos por
respeito a você. Não estamos trazendo à mente, por assim dizer, nosso conhecimento
sobre seus filhos. Ouvimos como se fosse a primeira vez e temos
enorme prazer em conhecê-los através dos seus olhos.
— Gosto disso — refletiu
Mack, recostando-se na cadeira.
Sarayu apertou a mão dele e
pareceu se recostar.
— Eu também! Os relacionamentos
não têm nada a ver com poder. Nunca! E um modo de evitar a vontade de
exercer poder é escolher se limitar e servir. Os humanos costumam
fazer isso quando cuidam dos enfermos, quando servem os idosos, quando se
relacionam com os pobres, quando amam os muito velhos e os muito novos, ou
até mesmo quando se importam com aqueles que assumiram uma posição de
poder sobre eles.
— Bem falado, Sarayu — disse
Papai, com o rosto luzindo de orgulho. — Eu cuido dos pratos depois. Mas
primeiro gostaria de ter um tempo para as devoções.
Mack teve de conter um
risinho diante da idéia de Deus fazendo orações. Imagens de devoções
familiares de sua infância vieram se derramar em seu pensamento. E não
eram exatamente boas lembranças.
Com freqüência consistiam em
um exercício tedioso de dar as respostas certas, ou melhor, as mesmas
velhas respostas às mesmas velhas perguntas sobre histórias da Bíblia e depois
tentar ficar acordado durante as orações exaustivamente longas de seu pai.
E, quando o pai tinha bebido, as orações da família sempre se tornavam um
terrível campo minado, onde qualquer resposta errada ou um olhar distraído
provocava uma explosão. Ficou esperando que Jesus pegasse uma velha versão
da Bíblia.
Em vez disso, Jesus estendeu
as mãos sobre a mesa e segurou as de Papai, com as cicatrizes agora
claramente visíveis. Mack ficou sentado, em extremo fascínio, vendo Jesus
beijar as mãos do Pai, depois olhar fundo nos seus olhos e finalmente
dizer:
— Papai, adorei ver como hoje
você se tornou completamente disponível para assumir a dor de Mack e deixar que
ele escolhesse seu próprio ritmo. Você o honrou e me honrou. Ouvir você
sussurrar amor e calma no coração dele foi realmente incrível. Que alegria
imensa ver isso! Adoro ser seu filho.
Embora Mack se sentisse um intruso,
ninguém pareceu se preocupar e, de qualquer modo, ele não tinha idéia de
para onde ir. Presenciar a expressão de tamanho amor parecia
deslocar qualquer entrave lógico e, ainda que ele não soubesse exatamente
o que sentia, era muito bom.
Estava testemunhando algo
simples, caloroso, íntimo e verdadeiro. Isso era sagrado. A santidade
sempre fora um conceito frio e estéril para Mack, mas isso era diferente.
Preocupado em não fazer qualquer gesto que perturbasse aquele momento,
simplesmente fechou os olhos e cruzou as mãos. Ouvindo atentamente de
olhos fechados, sentiu Jesus mexer a cadeira. Houve uma pausa antes que
ele falasse de novo:
— Sarayu — começou Jesus com
suavidade e ternura —, você lava, eu enxugo.
Os olhos de Mack se abriram
rapidamente, a tempo de ver os dois sorrirem afetuosamente um para o
outro, pegarem os pratos e desaparecerem na cozinha. Ficou sentado alguns
minutos sem saber o que fazer. Papai tinha ido a algum lugar e os outros
dois estavam ocupados com os pratos. A decisão foi fácil. Pegou os
talheres e os copos e levou-os para a cozinha. Assim que entrou, Jesus lhe
jogou um pano e, enquanto Sarayu lavava os pratos, os dois começaram a
enxugar.
Sarayu começou a cantarolar
uma música evocativa que ele havia escutado Papai cantar. Mais uma vez a
melodia mexeu no fundo de Mack, despertando lembranças e emoções. Se
pudesse permanecer ouvindo aquela canção, aceitaria ficar enxugando
os pratos pelo resto da vida.
Cerca de 10 minutos depois
haviam acabado. Jesus deu um beijo no rosto de Sarayu e ela desapareceu no
corredor. Em seguida ele sorriu para Mack.
— Vamos ao cais olhar as
estrelas.
— E os outros? — perguntou
Mack.
— Estou aqui — respondeu
Jesus. — Sempre estou aqui.
Mack assentiu. Esse negócio
da presença de Deus, embora difícil de entender, parecia estar penetrando
constantemente em sua mente e em seu coração. Por isso relaxou.
— Vamos — disse Jesus,
interrompendo seus pensamentos. — Sei que você gosta de olhar as estrelas!
— Parecia uma criança cheia de ansiedade e expectativa.
— É, acho que gosto —
respondeu Mack, percebendo que a última vez em que fizera isso fora na
maldita viagem com as crianças. Talvez tivesse chegado a hora de correr
alguns riscos.
Seguiu Jesus, saindo pela
porta dos fundos. Nos momentos finais do crepúsculo, Mack podia ver a
margem rochosa do lago, não cheia de mato alto como ele recordava,
mas lindamente cuidada e perfeita como uma pintura. O riacho ali perto
parecia cantarolar algum tipo de música. Projetando-se cerca de 15 metros sobre o lago
havia um cais e Mack mal conseguiu vislumbrar três canoas amarradas nele.
A noite ia caindo depressa e a escuridão distante já estava cheia dos sons
de grilos e sapos. Jesus pegou-o pelo braço e guiou-o pelo caminho
enquanto seus olhos se ajustavam, mas Mack já estava olhando para uma
noite sem luar, com o espanto das estrelas emergindo.
Chegaram ao meio do cais e se
deitaram de costas, olhando para cima. A altitude do lugar parecia ampliar
o céu e Mack adorou ver a imensidão do espaço tão claramente estrelada.
Jesus sugeriu que fechassem os olhos por alguns minutos, permitindo que
os últimos clarões do crepúsculo desaparecessem. Mack obedeceu e, quando
finalmente abriu os olhos, a visão foi tão poderosa que por alguns
segundos ele experimentou uma espécie de vertigem. Era quase como se
estivesse caindo no espaço, com as estrelas correndo em sua direção para
abraçá-lo. Levantou as mãos imaginando que podia colher diamantes, um a
um, de um céu de veludo negro.
— Uau! — exclamou.
— Incrível! — sussurrou
Jesus, com a cabeça perto da de Mack no escuro. — Nunca me canso de ver
isso.
— Mesmo que você tenha
criado?
— Eu criei quando era o
Verbo, antes que o Verbo se tornasse Carne. De modo que, mesmo tendo
criado tudo isso, agora vejo como humano. E acho impressionante!
— É mesmo. — Mack não sabia
como descrever o que sentia, mas enquanto continuavam deitados em
silêncio, olhando o espetáculo celestial num espanto reverente, observando
e ouvindo, soube em seu coração que isso também era sagrado.
Estrelas cadentes ocasionais
chamejavam numa trilha breve cortando o negrume da noite e fazendo um ou
outro exclamar:
— Viu aquilo? Que maravilha!
Depois de um silêncio
particularmente longo, Mack falou:
— Eu me sinto mais
confortável perto de você. Você parece muito diferente delas.
— Como assim, diferente? — a
voz suave de Jesus emergiu da escuridão.
— Bom. — Mack fez uma pausa
enquanto pensava. — Mais real ou palpável. Não sei. — Lutou com as
palavras e Jesus ficou deitado em silêncio, esperando. — É como se
eu sempre tivesse conhecido você. Mas Papai não é nem um pouco o que eu
esperava de Deus e Sarayu é muito estranha.
Jesus deu um risinho no
escuro.
— Como eu sou humano, nós
temos muito mais em comum.
— Mas, mesmo assim, não
entendo...
— Eu sou o melhor modo que
qualquer humano pode ter de se relacionar com Papai ou com Sarayu. Me ver
é vê-las. E, acredite, Papai e Sarayu são tão reais quanto eu, embora,
como você viu, de maneiras muito diferentes.
— Por falar em Sarayu, ela é
o Espírito Santo?
— É. É Criatividade, é Ação,
é o Sopro da Vida. E é muito mais. Ela é o meu Espírito.
— E o nome dela, Sarayu?
— É um nome simples de uma
das nossas línguas humanas. Significa "Vento", na verdade um
vento comum. Ela adora esse nome.
— Humm — resmungou Mack. —
Não há nada de muito comum nela!
— Isso é verdade.
— E o nome que Papai
mencionou, El... Elo...
— Elousia — disse a voz
reverentemente no escuro, ao lado dele. — Esse é um nome maravilhoso. El é
meu nome como Deus Criador, mas ousia é "ser", ou "aquilo que
é verdadeiramente real", de modo que o nome significa "o Deus
Criador que é verdadeiramente real e a base de todo o ser". Isso é
que é um nome bonito!
Houve silêncio por um minuto
enquanto Mack pensava no que Jesus havia dito.
— Então onde é que isso nos
deixa?
Ele sentia como se estivesse
fazendo a pergunta em nome de toda a raça humana.
— Bem, onde vocês sempre se
destinaram a estar. No próprio centro do nosso amor e do nosso propósito.
De novo uma pausa e depois:
— Acho que posso viver com
isso.
Jesus deu um risinho.
— Fico feliz em saber — e os
dois riram. Ninguém falou por um tempo. O silêncio havia baixado como um
cobertor e tudo de que Mack tinha realmente consciência era do som da água
batendo no cais. Novamente ele rompeu o silêncio.
— Jesus?
— O que é, Mackenzie?
— Estou surpreso com uma
coisa em você.
— Verdade? O quê?
— Acho que eu esperava que
você fosse mais... — Cuidado aí, Mack. — Ah... bem, humanamente marcante.
Jesus riu.
— Humanamente marcante? Quer
dizer bonito? — Agora ele estava gargalhando.
— Bom, eu estava tentando
evitar dizer assim, mas é. De algum modo achei que você seria o homem
ideal, você sabe, atlético e de uma beleza avassaladora.
— Ê o meu nariz, não é?
Mack não soube o que dizer.
Jesus riu.
— Eu sou judeu, você sabe.
Meu avô materno tinha um narigão. Na verdade, a maioria dos homens do meu
lado materno tinha nariz grande.
— Só pensei que você teria
uma aparência melhor.
— De acordo com que padrão?
De qualquer modo, quando você me conhecer melhor, isso não vai importar.
Mesmo ditas com gentileza, as
palavras machucaram. Machucaram o quê, exatamente? Mack ficou deitado por
alguns segundos e percebeu que, por mais que pensasse que conhecia Jesus,
talvez não conhecesse... ou conhecesse mal. Talvez o que conhecesse fosse
um ícone, um ideal, uma imagem através da qual tentava captar
um sentimento de espiritualidade, mas não uma pessoa real.
— Por que isso? — perguntou
finalmente. — Você disse que, se eu o conhecesse de verdade, sua aparência
não importaria...
— Na verdade é bem simples. O
ser sempre transcende a aparência. Assim que você começa a descobrir o ser
que há por trás de um rosto muito bonito ou muito feio, de acordo com seus
conceitos e preconceitos, as aparências superficiais somem
até simplesmente não importarem mais. Por isso Elousia é um nome tão
maravilhoso. Deus, que é a base de todo o ser, mora dentro, em volta e
através de todas as coisas, e emerge em última instância como o real.
Qualquer aparência que mascare essa verdade está destinada a cair.
Seguiu-se um silêncio
enquanto Mack refletia sobre o que Jesus havia dito. Desistiu depois
de apenas um ou dois minutos e decidiu fazer a pergunta mais arriscada.
— Você disse que eu não o
conheço de verdade. Seria muito mais fácil se pudéssemos sempre conversar
assim.
— Admito, Mack, que essa
conversa é especial. Você estava realmente travado e nós queríamos
ajudá-lo a se arrastar para fora da dor. Mas não fique achando que porque não
sou visível nosso relacionamento precise ser menos real. Será diferente,
talvez até mais real.
— Como assim?
— Meu propósito, desde o
início, era viver em você e você viver em mim.
— Espere, espere. Espere um
minuto. Como isso pode acontecer? Se você ainda é totalmente humano, como
pode estar dentro de mim?
— Espantoso, não é? É o
milagre de Papai. É o poder de Sarayu, meu Espírito, o Espírito de Deus
que restaura a união que foi perdida há tanto tempo. Eu? A cada momento eu
escolho viver totalmente humano. Sou totalmente Deus, mas sou humano até o
âmago. Como eu disse, é o milagre de Papai.
Mack estava deitado no escuro
ouvindo com atenção.
— Você está falando de uma
moradia real e não somente de uma questão teológica?
— Claro — respondeu Jesus com
a voz forte e segura. — O humano, formado a partir da criação material e
física, pode ser totalmente habitado pela vida espiritual, a minha vida. Isso
exige a existência de uma união muito real, dinâmica e ativa.
— É quase inacreditável! —
exclamou Mack baixinho. — Eu não fazia idéia. Preciso pensar mais nisso.
Mas talvez eu tenha outro monte de perguntas.
— E temos toda a sua vida
para respondê-las — riu Jesus. — Mas por enquanto chega disso. Vamos nos perder
de novo na noite estrelada.
No silêncio que se seguiu,
Mack simplesmente ficou parado, permitindo que a enormidade do espaço e da
luminosidade esparsa o fizesse sentir-se pequeno, deixando suas percepções
serem capturadas pela luz das estrelas e pela idéia de que tudo tinha a
ver com ele... com a raça humana... que toda aquela magnífica criação era
para a humanidade. Depois do que pareceu um longo tempo, Jesus rompeu o
silêncio.
— Nunca vou me cansar de
olhar para isso. A maravilha de tudo, o esbanjamento da Criação, como
disse um dos nossos irmãos. Tão elegante, tão cheia de desejo e
beleza, mesmo agora.
— Sabe — reagiu Mack,
novamente abalado pelo absurdo da situação, pelo lugar onde estava, pela
pessoa ao seu lado —, algumas vezes você parece tão... quero dizer,
aqui estou eu, perto de Deus Todo-Poderoso, e na verdade você parece
tão...
— Humano? — sugeriu Jesus. —
Mas feio. — E começou a rir, primeiro baixinho e contido, depois às
gargalhadas. Era contagioso e Mack deixou-se levar num riso que vinha de
algum lugar bem no fundo. Não ria a partir daquele lugar havia muito tempo.
Jesus estendeu a mão e o
abraçou, sacudido por seus próprios espasmos de riso, e Mack se sentiu
mais limpo, vivo e bem desde... bom, não conseguia se lembrar desde quando.
Os dois acabaram se
aquietando e o silêncio da noite se impôs mais uma vez. Mack ficou parado,
se dando conta da culpa por estar se divertindo e rindo. Mesmo no
escuro, sentiu a Grande Tristeza chegar e encobri-lo.
— Jesus? — sussurrou com a
voz embargada. — Eu me sinto muito perdido.
Uma mão se estendeu e ficou
apertando a sua.
— Eu sei, Mack. Mas não é
verdade. Lamento se a sensação é essa, mas ouça com clareza: você não está
perdido.
— Espero que você esteja
certo — respondeu Mack, com a tensão afrouxada pelas palavras do amigo
recém-encontrado.
— Venha — disse Jesus,
levantando-se e estendendo a mão para Mack. — Você tem um grande dia pela
frente. Vou levá-lo para a cama.
— Passou o braço pelo ombro
de Mack e juntos andaram para o chalé. De repente, Mack sentiu-se exausto.
O dia fora longo. Talvez acordasse em casa, na sua cama, depois de uma
noite de sonhos vividos. Mas em algum lugar dentro de si esperava estar errado.
8. Um café da manhã de campeões
"Crescer significa
mudar e mudar envolve riscos, uma passagem do conhecido para o
desconhecido."
— Autor desconhecido
Quando chegou no quarto, Mack
descobriu que as roupas que havia deixado no carro estavam dobradas em
cima da cômoda ou penduradas no armário. Achou engraçado encontrar uma
Bíblia na mesinha-de-cabeceira. Escancarou a janela para deixar que o ar da
noite entrasse livremente, algo que Nan jamais tolerava em casa porque
tinha medo de aranhas e de qualquer coisa rastejante. Aninhado como uma
criança pequena debaixo do grosso edredom, havia lido apenas dois
versículos da Bíblia quando o livro saiu de sua mão, a luz se apagou, alguém
deu-lhe um beijo no rosto e ele foi levantado suavemente do chão, num
sonho em que voava.
Quem nunca voou assim talvez
não acredite que seja possível, mas no fundo sente um pouco de inveja.
Havia anos que ele não tinha esse tipo de sonho, pelo menos desde que a
Grande Tristeza baixara, mas nessa noite Mack voou alto na noite
estrelada, através do ar límpido e frio, sem qualquer desconforto.
Sobrevoou lagos e rios, atravessou um litoral oceânico e várias ilhotas
cercadas de recifes.
Por mais estranho que pareça,
Mack aprendera com seus sonhos a voar erguendo-se do chão sem ser
sustentado por nada — sem asas, sem qualquer tipo de aparelho, apenas ele. Os
vôos inicialmente o elevavam a alguns centímetros do chão, por causa do
medo de cair. Aos poucos ele foi adquirindo confiança e se alçando mais
alto, descobrindo que a queda não era dolorosa, apenas um pequeno ricochete
em câmara lenta. Com o tempo, aprendeu a ascender até as nuvens, cobrir
vastas distâncias e pousar suavemente.
Enquanto planava à vontade
sobre montanhas escarpadas e praias de um branco cristalino, usufruía a
maravilha do sonho de voar. Subitamente, algo o agarrou pelo tornozelo e o
puxou para baixo. Em questão de segundos foi arrastado das alturas e
jogado violentamente, de cara, numa estrada lamacenta e muito esburacada.
O trovão sacudia o solo e a chuva o encharcou instantaneamente até os
ossos. E tudo veio de novo, raios iluminando o rosto de sua filha enquanto
ela gritava "Papai! " sem emitir nenhum som e se virava e corria
para a escuridão, o vestido vermelho visível apenas por alguns clarões
breves e depois sumindo. Mack lutou com todas as forças para se soltar da
lama e da água, mas foi sendo sugado para mais fundo. No momento em que
estava submergindo, acordou ofegando.
Com o coração disparado e a
imaginação presa às imagens do pesadelo, demorou alguns instantes para
perceber que fora somente um sonho. Mas, mesmo que o sonho fosse sumindo
da consciência, as emoções permaneceram. O sonho havia provocado a Grande
Tristeza e, antes que ele pudesse sair da cama, estava de novo procurando um
caminho através do desespero que viera devorando muitos dos seus dias.
Olhou ao redor do quarto, no
cinza opaco de antes do amanhecer que chegava sorrateiramente do outro
lado dos postigos da janela. Aquele não era seu quarto, nada parecia
familiar. Onde estava? Pense, Mack, pense! Então se lembrou. Ainda estava na cabana
com aquelas três figuras interessantes e todas as três achavam que eram Deus.
— Isso não pode estar
acontecendo de verdade — resmungou, enquanto punha os pés para fora da
cama e se sentava na beira com a cabeça nas mãos. Pensou no dia anterior e de novo
sentiu medo de estar enlouquecendo. Como nunca fora uma pessoa muito
chegada a contatos físicos e a emoções, Papai — ou quem quer que fosse — o
deixara nervoso, e ele não fazia idéia do que pensar a respeito de Sarayu.
Admitiu que gostava um bocado de Jesus, mas ele parecia o menos divino dos
três.
Soltou um suspiro fundo e
pesado. E, se Deus estava realmente ali, por que não havia afastado seus
pesadelos?
Ficar se debatendo com um
dilema não iria ajudar. Por isso foi até o banheiro, onde, para sua perplexidade,
tudo de que precisava para tomar um banho de chuveiro fora cuidadosamente
arrumado. Demorou um tempo no calor da água, depois barbeando-se e, de
volta ao quarto, vestindo-se.
O aroma penetrante e sedutor
do café o atraiu para a xícara fumegante que o esperava na mesa junto à
porta. Tomando um gole, abriu os postigos e ficou olhando pela janela do
quarto para o lago que apenas vislumbrara como uma sombra na
noite anterior.
Era perfeito, liso como
vidro, a não ser pelo salto ocasional de alguma truta, lançando círculos
de ondas em miniatura que se irradiavam pela superfície de um azul
profundo até serem lentamente absorvidas de volta na superfície maior.
Avaliou que a margem mais distante estaria a uns 800 metros. O orvalho
brilhava em toda parte como diamantes refletindo o amor do sol.
As três canoas que repousavam
tranqüilas ao longo do cais pareciam convidativas, mas Mack afastou o
pensamento. Canoas traziam muitas lembranças dolorosas.
O cais o fez lembrar-se da
noite anterior. Será que realmente havia se deitado ali com Aquele que
fizera o universo? Mack balançou a cabeça, perplexo. O que
estava acontecendo? Quem eram eles e o que queriam? O que quer que fosse,
Mack estava certo de que não tinha nada para dar.
O cheiro de ovos e bacon
ondulou para dentro do quarto, interrompendo seus pensamentos. Ao entrar
na sala, ouviu o som de uma música conhecida, de Bruce Cockburn, vindo da
cozinha, e uma voz aguda de mulher acompanhando bastante bem: "Ah, amor
que incendeia o sol, mantenha-me aceso." Papai surgiu com pratos cheios
de panquecas, batatas fritas e algum tipo de verdura. Vestia uma roupa
comprida e larga, de aparência africana, com uma faixa multicolorida no
cabelo. Parecia radiante — quase reluzindo.
— Sabe — exclamou ela —,
adoro as músicas dessa criança! Gosto especialmente do Bruce, você sabe. —
Ela olhou para Mack, que estava se sentando à mesa.
Mack assentiu, com o apetite
aumentando a cada segundo.
— É — continuou ela —, e sei
que você também gosta dele.
Mack sorriu. Era verdade.
Cockburn era o favorito de toda a família havia anos.
— Então, querido — perguntou
Papai, enquanto se ocupava com alguma coisa. — Como foram seus sonhos esta
noite? Algumas vezes os sonhos são importantes, você sabe. Podem ser um modo de
abrir a janela e deixar que o ar poluído saia.
Mack sabia que isso era um
convite para destrancar a porta de seus terrores, mas no momento não
estava pronto para convidá-la a entrar naquele buraco com ele.
— Dormi bem, obrigado —
respondeu e rapidamente mudou de assunto. — Quer dizer que Bruce é seu
predileto?
Ela parou e olhou-o.
— Mackenzie, eu não tenho
prediletos; apenas gosto especialmente dele.
— Você parece gostar
especialmente de um monte de pessoas — observou Mack. — E há alguém de
quem você não goste especialmente?
Ela ergueu a cabeça e revirou
os olhos como se estivesse examinando mentalmente o catálogo de cada ser
criado.
— Não, não consigo encontrar
ninguém. Acho que sou assim. Mack ficou interessado.
— Nunca fica furiosa com
alguém?
— Imagina! Que pai não fica?
Os filhos se metem em várias confusões que deixam a gente furiosa. Não
gosto de muitas das escolhas que eles fazem, mas essa minha raiva é uma
expressão de amor. Eu amo aqueles de quem estou com raiva tanto quanto
aqueles de quem não estou.
— Mas... — Mack fez uma pausa.
— E a sua ira? Parece que, se você pretende ser o Deus Todo-Poderoso,
precisa ser muito mais irado.
— É mesmo?
— É o que eu acho. Você não
vivia matando gente na Bíblia? Você não parece se encaixar naquele modelo.
— Entendo como tudo isso deve
deixar você desorientado, Mack. Mas o único que está pretendendo ser
alguma coisa aqui é você. Eu sou o que sou. Não estou tentando me
encaixar em modelo nenhum.
— Mas está pedindo que eu
acredite que você é Deus, e simplesmente não vejo... — Mack não sabia como
terminar a frase, por isso desistiu.
— Não estou pedindo que
acredite em nada, mas vou lhe dizer que você vai achar este dia muito mais
fácil se simplesmente aceitá-lo como é, em vez de tentar encaixá-lo em suas
idéias preconcebidas.
— Mas o Deus que me ensinaram
derramou grandes doses de fúria, mandou o dilúvio e lançou pessoas num
lago de fogo. — Mack podia sentir sua raiva profunda emergindo de novo,
fazendo brotar as perguntas, e se chateou um pouco com sua falta de
controle. Mas perguntou mesmo assim: — Honestamente, você não gosta de
castigar aqueles que a desapontam?
Diante disso, Papai
interrompeu suas ocupações e virou-se para Mack. Ele pôde ver uma tristeza
profunda nos olhos dela.
— Não sou quem você pensa,
Mackenzie. Não preciso castigar as pessoas pelos pecados. O pecado é o
próprio castigo, pois devora as pessoas por dentro. Meu objetivo não é
castigar. Minha alegria é curar.
— Não entendo...
— Está certo. Não entende
mesmo — disse ela com um sorriso meio triste. — Mas, afinal de contas,
você ainda não terminou.
Nesse momento, Jesus e Sarayu
entraram rindo pela porta dos fundos, entretidos numa conversa. Jesus
chegou vestido praticamente como no dia anterior, com jeans e uma
camisa azul-clara que fazia seus olhos castanhos se destacarem. Sarayu,
por outro lado, vestia algo tão fino e rendado que praticamente voava à
mais tênue brisa. Padrões de arco-íris tremeluziam e se alteravam a cada
gesto dela. Mack se perguntou se em algum momento ela parava completamente
de se mexer. Duvidou.
Papai inclinou-se para ficar
com os olhos na mesma altura dos de Mack.
— Você faz algumas perguntas
interessantes. Chegaremos a elas, prometo. Mas agora vamos aproveitar o
café da manhã.
Mack assentiu de novo um
pouco sem graça enquanto voltava a atenção para a comida. Estava de fato com
fome e havia muita coisa apetitosa.
— Obrigado pelo café da manhã
— disse a Papai, enquanto Jesus e Sarayu ocupavam seus lugares.
— O quê? — reagiu ela num
horror fingido. — Você não vai abaixar a cabeça e fechar os olhos?
— Ela começou a andar em
direção à cozinha, fazendo pequenos muxoxos de reprovação. — O que está
acontecendo com este mundo? Meu bem, não há de quê. — Um instante depois
retornou trazendo outra tigela com uma comida fumegante que desprendia um
aroma maravilhoso e convidativo.
Passaram as tigelas uns para
os outros e Mack ficou fascinado enquanto olhava e ouvia Papai participar
da conversa de Jesus e Sarayu. Estavam falando algo sobre conciliar uma família
em crise, mas não foi o que eles falavam que atraiu Mack e sim como eles
se relacionavam. Nunca vira três pessoas compartilharem sentimentos com
tamanha simplicidade e beleza. Cada um parecia mais interessado nos outros
do que em si mesmo.
— Então o que acha, Mack? —
perguntou Jesus, fazendo um gesto em sua direção.
— Não faço a mínima idéia do
que vocês estão falando — respondeu Mack com a boca cheia daquelas
verduras saborosas. — Mas adoro o modo como falam.
— Uau! — disse Papai, que
vinha retornando da cozinha com outro prato. — Vá com calma nessas
verduras, rapaz. Se não tiver cuidado, elas podem dar uma bela dor de barriga.
— Certo, tentarei me lembrar
— disse Mack servindo-se do prato que ela lhe oferecia. Depois, virando-se
de novo para Jesus, acrescentou: — Adoro o modo como vocês se tratam.
Certamente eu não esperaria que Deus fosse desse jeito.
— Como assim?
— Bom, sei que vocês são um
só e coisa e tal, e que são três. Mas vocês se tratam de uma forma tão
amável! Um não manda mais do que os outros dois?
Os três se entreolharam como
se nunca tivessem pensado nisso.
— Quero dizer — continuou
Mack rapidamente —, sempre pensei em Deus, o Pai, como uma espécie de
chefe, e em Jesus como o que seguia as ordens, vocês sabem, sendo
obediente. Não sei exatamente como o Espírito Santo se encaixa. Ele... quero
dizer, ela... ah... — Mack tentou não olhar para Sarayu enquanto procurava
as palavras. — Tanto faz, o Espírito sempre me pareceu meio... é...
— Um Espírito livre? —
sugeriu Papai.
— Exatamente, um Espírito
livre, mas ainda assim sob a orientação do Pai. Faz sentido?
Jesus olhou para Papai,
tentando com alguma dificuldade manter uma aparência séria.
— Faz sentido para você,
Abba? Francamente, não tenho a mínima idéia do que este homem está
falando.
Papai franziu o rosto, como
se estivesse se concentrando.
— Não, eu estava tentando
entender, mas sinto muito. Para mim isso não tem pé nem cabeça.
— Vocês sabem do que estou
falando. — Mack ficou meio frustrado. — Estou falando de quem está no
comando. Vocês não têm uma cadeia de comando?
— Cadeia de comando? Isso
parece medonho! — disse Jesus.
— No mínimo opressivo —
acrescentou Papai, enquanto os outros dois começavam a rir.
Então, virando-se para Mack,
cantou: — "Mesmo sendo correntes de ouro, ainda são correntes."
— Ah, não se incomode com
esses dois — interrompeu Sarayu, estendendo a mão para confortá-lo. — Eles
só estão brincando com você. Na verdade, este é um assunto que
nos interessa.
Mack assentiu, aliviado e
meio chateado por ter de novo perdido o controle.
— Mackenzie, não existe
conceito de autoridade superior entre nós, apenas de unidade. Estamos num
círculo de relacionamento e não numa cadeia de comando. O que você
está vendo aqui é um relacionamento sem qualquer camada de poder. Não
precisamos exercer poder um sobre o outro porque sempre estamos procurando
o melhor. A hierarquia não faria sentido entre nós. Na verdade, isso é um
problema de vocês, não nosso.
— Verdade? Como assim?
— Os humanos estão tão
perdidos e estragados que para vocês é quase incompreensível que as
pessoas possam trabalhar ou viver juntas sem que alguém esteja no comando.
— Mas qualquer instituição
humana, desde as políticas até as empresariais, até mesmo o casamento, é
governada por esse tipo de pensamento. É a trama do nosso tecido social —
declarou Mack.
— Que desperdício! — disse
Papai, pegando o prato vazio e indo para a cozinha.
— Esse é um dos motivos pelos
quais é tão difícil para vocês experimentar o verdadeiro relacionamento —
acrescentou Jesus. — Assim que montam uma hierarquia, vocês precisam de
regras para protegê-la e administrá-la, e então precisam de leis e da
aplicação das leis, e acabam criando algum tipo de cadeia de comando que
destrói o relacionamento, em vez de promovê-lo. Raramente vocês vivem o
relacionamento fora do poder. A hierarquia impõe leis e regras e vocês
acabam perdendo a maravilha do relacionamento que nós pretendemos para
vocês.
— Bom — disse Mack com
sarcasmo, recostando-se na cadeira. — Certamente parece que nos adaptamos
muito bem a isso.
Sarayu foi rápida em
responder:
— Não confunda adaptação com
intenção, ou sedução com realidade.
— Então... ah, por favor,
poderia me passar mais um pouco dessa verdura? ... Então nós fomos
seduzidos por essa preocupação com a autoridade?
— De certo modo, sim! —
respondeu Papai, passando o prato de verduras para Mack com uma certa
relutância. — Só estou cuidando de você, filho.
Sarayu continuou:
— Quando vocês escolhem a
independência nos relacionamentos tornam-se perigosos uns para os outros.
As pessoas se tornam objetos a serem manipulados ou administrados para a
felicidade de alguém. A autoridade, como vocês geralmente pensam nela,
é meramente a desculpa que o forte usa para fazer com que os outros se
sujeitem ao que ele quer.
— Ela não é útil para impedir
que as pessoas lutem interminavelmente ou se machuquem?
— Às vezes. Mas num mundo
egoísta também é usada para infligir grandes danos.
— Mas vocês não a usam para
conter o mal?
— Nós respeitamos
cuidadosamente as suas escolhas e por isso trabalhamos dentro dos seus
sistemas, ao mesmo tempo que procuramos libertá-los deles — continuou Papai. —
A Criação foi levada por um caminho muito diferente daquele que
desejávamos. Em seu mundo, o valor do indivíduo é constantemente medido em
comparação com a sobrevivência do sistema, seja ele político, econômico,
social ou religioso; na verdade, de qualquer sistema. Primeiro uma pessoa,
depois umas poucas e finalmente muitas são facilmente sacrificadas pelo
bem e pela permanência do sistema. De uma forma ou de outra, isso está por
trás de cada luta pelo poder, de cada preconceito, de cada guerra e
de cada abuso de relacionamento. A "vontade de poder e
independência" se tornou tão disseminada que agora é considerada
normal.
— E não é?
— É o paradigma humano —
acrescentou Papai, após retornar com mais comida. — É como água para os
peixes, tão natural que permanece sem ser vista e questionada. É a matriz,
uma trama diabólica em que vocês estão presos sem esperança, mesmo
que completamente inconscientes da sua existência.
Jesus continuou:
— Como glória máxima da
Criação, vocês foram feitos à nossa imagem. Se realmente tivessem
aprendido a considerar que as preocupações dos outros têm tanto valor quanto as
suas, não haveria necessidade de hierarquia.
Mack se recostou na cadeira,
perplexo com as implicações do que ouvia.
— Então vocês estão me dizendo
que sempre que nós, humanos, usamos o poder para nos proteger...
— Estão cedendo à matriz e
não a nós — terminou Jesus:
E agora — exclamou Sarayu —
completamos o círculo, voltando a uma das minhas declarações iniciais:
vocês, humanos, estão tão perdidos e estragados que não
conseguem compreender um relacionamento sem hierarquia. Por isso acham que
Deus se relaciona dentro de uma hierarquia, tal como vocês. Mas não somos
assim.
— E como podemos mudar isso?
Se abrirmos mão do poder e da hierarquia, as pessoas simplesmente vão nos
usar.
— Provavelmente sim. Mas não
estamos pedindo que faça isso com os outros, Mack.
Pedimos que faça conosco.
Este é o único lugar onde isso pode começar. Não vamos usar você.
— Mack — disse Papai com uma
intensidade que o fez escutar com muita atenção —, queremos compartilhar
com você o amor, a alegria, a liberdade e a luz que já conhecemos em nós. Criamos vocês,
os humanos, para estarem num relacionamento de igual para igual conosco e
para se juntarem ao nosso círculo de amor. Por mais difícil que seja
entender isso, tudo que aconteceu está ocorrendo exatamente segundo
esse propósito, sem violar qualquer escolha ou vontade.
— Como você pode dizer isso
diante de toda a dor deste mundo, de todas as guerras e desastres que
destroem milhares? — A voz de Mack baixou até um sussurro. — E qual é
o valor de uma menininha ser assassinada por um tarado? — Ali estava de
novo a pergunta que abria um buraco a fogo em sua alma. — Vocês podem não
causar as coisas, mas certamente não as impedem.
— Mackenzie — respondeu Papai
com ternura, aparentemente não se ofendendo com a acusação —, há milhões
de motivos para permitir a dor, a mágoa e o sofrimento, em vez de
erradicá-los, mas a maioria desses motivos só pode ser entendida dentro da história
de cada pessoa. Eu não sou má. Vocês é que abraçam o medo, a dor, o poder
e os direitos em seus relacionamentos. Mas suas escolhas também não são
mais fortes do que os meus propósitos, e eu usarei cada escolha que vocês
fizerem para o bem final e para o resultado mais amoroso.
Veja só — interveio Sarayu —,
os humanos feridos centram sua vida ao redor .de coisas que parecem boas
para eles, procurando compensação. Mas isso não irá preenchê-los nem
libertá-los. Eles são viciados em poder, ou na ilusão de segurança que o
poder oferece. Quando acontece um desastre, essas mesmas pessoas vão se
voltar contra os falsos poderes nos quais confiavam. Em seu
desapontamento, se suavizam com relação a mim ou se tornam mais ousados em
sua independência. Se você ao menos pudesse ver como tudo isso terminará e
o que alcançaremos sem violar qualquer vontade humana, entenderia. Um dia
entenderá.
— Mas o custo! — Mack estava
aparvalhado. — Vejam o custo, toda a dor, todo o sofrimento, tudo que é
tão terrível e mau. — Ele parou e olhou para a mesa. — E vejam o que
custou para vocês. Valeu a pena?
— Sim! — foi a resposta
unânime e jubilosa dos três.
— Mas como podem dizer isso?
Desse jeito parece que o fim justifica os meios, que para obter o que
querem vocês são capazes de qualquer coisa, mesmo que isso custe a vida
de bilhões de pessoas.
— Mackenzie. — Era a voz de
Papai outra vez, especialmente gentil e terna. — Você realmente ainda não
entende. Tenta dar sentido ao mundo em que vive baseado numa visão pequena
e incompleta da realidade. É como olhar um desfile pelo buraco minúsculo
da dor, da mágoa, do egocentrismo e do poder e acreditar que você
está sozinho e é insignificante. Tudo isso contém mentiras poderosas. Você
vê a dor e a morte como males definitivos, e Deus como o traidor
definitivo, ou talvez, na melhor das hipóteses, como fundamentalmente
indigno de confiança. Você dita os termos, julga meus atos e me declara
culpado.
Parou um instante e depois
prosseguiu:
— A verdadeira falha
implícita de sua vida, Mackenzie, é que você não acha que eu sou bom. Se
soubesse que eu sou bom e que tudo — os meios, os fins e todos os processos
das vidas individuais — é coberto por minha bondade, mesmo que nem sempre
entenda o que estou fazendo, confiaria em mim. Mas não confia.
— Não? — perguntou Mack, mas
não era realmente uma pergunta. Era uma declaração, e ele sabia disso. Os
outros pareciam saber também e a mesa permaneceu em silêncio.
Sarayu disse:
— Mackenzie, você não pode
"produzir" confiança, assim como não pode "fazer"
humildade. Ela existe ou não. A confiança é fruto de um relacionamento em
que você sabe que é amado. Como não sabe que eu o amo, não pode confiar em
mim.
De novo se fez silêncio. Por
fim Mack olhou para Papai e disse:
— Não sei como mudar isso.
— Você não pode mudar, pelo
menos sozinho, mas juntos vamos ver essa mudança acontecer. Por enquanto
só quero que você esteja comigo e descubra que nosso relacionamento não
tem a ver com seu desempenho nem com qualquer obrigação de me agradar. Não
sou um valentão nem uma divindade egocêntrica e exigente que insiste
que as coisas sejam feitas do jeito que eu quero. Sou boa e só desejo o
que é melhor para você. Não é pela culpa, pela condenação ou pela coerção
que você vai encontrar isso. É apenas praticando um relacionamento de amor.
E eu amo você.
Sarayu se levantou da mesa e
olhou diretamente para Mack.
— Mackenzie, se você quiser,
eu gostaria que viesse me ajudar no jardim. Há coisas que preciso fazer lá
antes da celebração de amanhã. Podemos continuar nossa conversa lá fora,
por favor?
— Claro — respondeu Mack,
levantando-se. — Um último comentário — ele acrescentou. — Simplesmente
não consigo imaginar um resultado final que justifique tudo isso.
Mackenzie. — Papai se
levantou da cadeira e rodeou a mesa para lhe dar um abraço — apertado. —
Não estamos justificando. Estamos libertando.
9. Há muito tempo, num jardim muito, muito distante
Mesmo que encontrássemos
outro Éden,
não teríamos condição
de desfrutá-lo perfeitamente
nem de ficar lá para
sempre.
— Henry Van Dyke
Mack acompanhou Sarayu pela
porta dos fundos do melhor modo que pôde e seguiu pelo caminho, passando
pela aléia de pinheiros. Andar atrás de um ser daqueles era como seguir
um raio de sol. A luz parecia se irradiar dela e refletir sua presença
numa infinidade de lugares ao mesmo tempo.
Mack concentrou-se no
caminho. Enquanto rodeava as árvores, viu pela primeira vez um magnífico
jardim e pomar, contido num terreno que não teria mais de 4 mil metros
quadrados.
Mack imaginara um jardim em
estilo inglês, perfeitamente cuidado e organizado. Não era assim!
Era um caos de cores. Jorros
ofuscantes de flores se espalhavam em meio a legumes, verduras e ervas
plantados aleatoriamente, um tipo de vegetação que Mack nunca vira.
Era confuso, espantoso e incrivelmente lindo.
— Para mim parece uma
confusão — murmurou Mack baixinho.
Sarayu parou e se virou para
Mack, com o rosto glorioso.
— Mack! Obrigada! Que elogio
maravilhoso! — Ela olhou o jardim ao redor. — É exatamente isso, uma
confusão.
Sarayu se aproximou de uma
erva, arrancou alguns brotos e virou-se para Mack.
— Papai não estava brincando
no café da manhã — disse, a voz parecendo mais música do que qualquer outra
coisa. — É melhor você mastigar essa erva por alguns minutos. Vai se
contrapor ao "movimento" natural daquelas verduras que você comeu
demais, se é que me entende.
Mack deu um risinho enquanto
aceitava e, com algum cuidado, começou a mastigar.
— É, mas o gosto daquelas
verduras era bom demais! — Seu estômago havia começado a se revirar um
pouco. O gosto da erva não era desagradável: uma sugestão de hortelã e alguns
outros temperos que ele provavelmente já havia cheirado antes, mas que não
podia identificar. Enquanto andavam, seu estômago foi se aplacando e ele
relaxou.
Sem dizer uma palavra, tentou
seguir Sarayu de um lugar a outro no jardim, mas acabou se distraindo com
as incríveis misturas de cores. Era tudo maravilhosamente espantoso e
inebriante.
Sarayu parecia muito
concentrada numa tarefa específica. Oscilava como um vento brincalhão e
ele jamais sabia exatamente para onde ela estava soprando. Achava
bastante difícil acompanhá-la.
Ela se movia pelo jardim
cortando várias flores e ervas e entregando para Mack carregar. O buquê
improvisado ficou bastante grande, uma linda massa aromática diferente de
qualquer coisa que ele já havia cheirado e tão forte que quase dava
para sentir o gosto.
Depositaram o buquê final
dentro de uma pequena oficina que Mack não havia notado antes, como se
estivesse enterrada num adensamento de mato selvagem.
— Uma tarefa terminada — anunciou
Sarayu — e outra pela frente.
Entregou a Mack uma pá, um
ancinho, uma foice e um par de luvas e flutuou por uma trilha coberta de
mato que parecia ir em direção à extremidade mais distante do jardim. Pelo
caminho, às vezes diminuía a velocidade para tocar uma planta ou uma flor,
sempre cantarolando a música repetitiva que havia cativado Mack na
tarde anterior. Ele seguia, obediente, levando as ferramentas.
Quando Sarayu parou, Mack
quase chocou-se com ela. De algum modo Sarayu havia mudado; agora vestia
roupas de trabalho: jeans com estampados loucos, uma camisa de trabalho e
luvas. Estavam num local aberto, rodeado por pereiras e cerejeiras, no
meio do qual havia uma cascata de arbustos com flores roxas e amarelas de
tirar o fôlego.
— Mackenzie — ela apontou
diretamente para o incrível trecho florido —, gostaria que você me ajudasse a
limpar todo esse terreno. Há uma coisa muito especial que quero plantar
aqui amanhã, e temos de deixar tudo pronto. — Olhou para Mack e estendeu a
mão para a foice.
— Você não pode estar falando
sério! Isso é tão maravilhoso!
Mas Sarayu pareceu não notar.
Sem mais explicações, virou-se e começou a destruir o espetáculo artístico
das flores. Fazia cortes limpos, aparentemente sem esforço. Mack deu de
ombros, calçou as luvas e começou a amontoar em pilhas o estrago que ela
estava fazendo. Lutava para acompanhar o ritmo. Para ela talvez não fosse
um esforço, mas para ele era um trabalho estafante. Vinte minutos depois,
todas as plantas estavam cortadas junto às raízes e o terreno parecia uma
ferida no jardim. Os antebraços de Mack estavam riscados com marcas de
arranhões dos galhos que havia empilhado. Estava sem fôlego e suando,
feliz por terminar. Sarayu parou, examinando o trabalho.
— Não é empolgante? —
perguntou.
— Já me empolguei com coisas
melhores — retrucou Mack, sarcástico.
— Ah, Mackenzie, se você
soubesse. Não é o trabalho, e sim o propósito que o torna especial. E — ela
sorriu — é o único tipo que eu faço.
Mack se apoiou no ancinho,
olhou o jardim ao redor e os vergões vermelhos nos braços.
— Sarayu, sei que você é o
Criador. Mas você fez as plantas venenosas, as urtigas e os mosquitos
também?
— Mackenzie — respondeu
Sarayu, parecendo se mover junto com a brisa. — Para fazer algo diferente,
um ser criado tem que partir do que já existe.
— Então você está dizendo
que...
— ... criei tudo que existe,
inclusive as coisas que você considera ruins — completou Sarayu. — Mas, quando
as criei, elas eram boas, porque é assim que eu sou. — Ela pareceu
quase se dobrar numa reverência antes de retomar sua tarefa.
— Mas — continuou Mack,
insatisfeito — então por que tantas coisas "boas" ficaram
"ruins"?
Agora Sarayu parou antes de
responder.
— Vocês, humanos, são
verdadeiramente cegos em relação ao seu lugar na Criação. Escolheram o caminho
devastado da independência e não compreendem que estão arrastando toda a
Criação com vocês.
Ela balançou a cabeça e o
vento sussurrou pelas árvores próximas.
— É muito triste, mas não
será assim para sempre.
Os dois desfrutaram alguns
instantes de silêncio, enquanto Mack contemplava as várias plantas ao
alcance de sua vista.
— Então existem plantas
venenosas neste jardim? — perguntou.
— Ah, sim — exclamou Sarayu.
— São algumas das minhas prediletas. Há certas plantas perigosas ao toque,
como esta aqui. — Ela estendeu a mão para um arbusto próximo e arrancou
algo que parecia um graveto morto com apenas algumas folhas minúsculas
que brotavam da haste. Entregou a Mack, que levantou as duas mãos evitando
tocá-lo.
Sarayu riu.
— Eu estou aqui, Mack. Há ocasiões
em que é seguro tocar e ocasiões em que é preciso tomar precauções. Esta é
a maravilha e a aventura da exploração, uma parte do que vocês chamam de
ciência: discernir e descobrir o que nós escondemos.
— Então por que esconderam?
— Por que as crianças adoram
brincar de esconde-esconde? Pergunte a qualquer pessoa que tenha paixão
por explorar, descobrir e criar. Escolhemos esconder tantas maravilhas de
vocês como um ato de amor, um verdadeiro presente dentro do processo da vida.
Mack estendeu a mão cautelosamente
e pegou o galho venenoso.
— Se você não tivesse me dito
que era seguro tocar, ele teria me envenenado?
— Claro! Mas, se eu o der
para você tocar, é diferente.
— Então por que criar plantas
venenosas? — perguntou Mack, devolvendo o galho.
— Sua pergunta parte do
princípio de que o veneno é algo ruim, uma coisa sem propósito. Muitas das
supostas plantas ruins, como esta, contêm propriedades incríveis de curar
ou são necessárias para criar maravilhas magníficas quando combinadas com
outros elementos. Os humanos apressam-se em declarar que algo é bom ou
ruim sem saber de fato.
Sarayu estendeu uma pá
pequena para Mack e pegou o ancinho.
— Para preparar este terreno,
devemos arrancar as raízes de todas as plantas maravilhosas que estavam
aqui. É trabalho duro, mas vale a pena. Se as raízes estiverem
aí, prejudicarão as sementes que iremos plantar.
— Certo — grunhiu Mack,
enquanto os dois se ajoelhavam no terreno recém-limpo. De algum modo
Sarayu conseguia enfiar as mãos mais fundo no chão e encontrar as pontas das
raízes, trazendo-as sem esforço à superfície. Deixou as mais curtas para Mack,
que usava a pazinha para arrancá-las. Depois jogavam as raízes numa das
pilhas que Mack havia juntado antes.
— Mais tarde vou queimar isso
— disse ela.
— Antes você estava falando
que os humanos declaram que as coisas são boas ou ruins sem conhecer? —
perguntou Mack, sacudindo a terra de uma raiz.
— É. Estava falando
especificamente da árvore do conhecimento do bem e do mal.
— A árvore do conhecimento do
bem e do mal?
— Exato! — declarou ela. — E
agora, Mackenzie, você está começando a entender por que comer o fruto
mortal daquela árvore foi tão devastador para a sua raça.
— Na verdade eu nunca havia
pensado muito nisso — disse Mack, intrigado. — Então houve um jardim de
verdade? Quer dizer, o Éden?
— Claro. Eu lhe disse que
tenho uma queda por jardins.
— Isso vai incomodar algumas
pessoas. Tenho alguns amigos que não vão gostar disso — observou Mack,
enquanto lutava com uma raiz teimosa.
— Não faz mal. Eu gosto muito
deles.
— Estou surpreso — disse Mack
com um certo sarcasmo e sorriu para ela. Cravou a pá na terra, pegando com
a mão a raiz que estava por cima. — Então fale da árvore do conhecimento
do bem e do mal.
— É disso que estávamos
falando no café da manhã. Primeiro quero fazer uma pergunta a você. Quando
algo lhe acontece, como você determina se é uma coisa boa ou ruim?
Mack pensou um momento antes
de responder.
— Bom, na verdade nunca
pensei nisso. Acho que eu diria que algo é bom quando eu gosto, quando faz
com que eu me sinta bem ou me dá um sentimento de segurança. Por outro
lado, eu diria que uma coisa é ruim se me causa dor ou custa algo que eu quero.
— Então é bastante subjetivo?
— Acho que sim.
— E até que ponto você confia
em sua capacidade de discernir o que é bom ou o que é ruim para você?
— Para ser honesto, acho que
tenho razão de ficar com raiva quando alguém ameaça o que eu considero
"bom", o que eu acho que mereço. Mas não sei realmente se
existe algum fundamento lógico para decidir o que é bom ou ruim, a não ser
o modo como algo ou alguém me afeta. — Ele parou para descansar e
recuperar o fôlego. — Tudo parece relacionado comigo e com meus
interesses, acho. E minha ficha também não é das melhores. Algumas coisas
que eu inicialmente achava boas acabaram sendo terrivelmente destrutivas,
e outras que eu achava ruins, bem, acabaram sendo...
Ele hesitou antes de
finalizar o pensamento, mas Sarayu o interrompeu.
— Então é você que determina
o que é bom e o que é ruim. Você se torna o juiz. E, para tornar as coisas
ainda mais confusas, aquilo que você determina que é bom acaba mudando com
o tempo e as circunstâncias. E, pior ainda, há bilhões de vocês, cada um
determinando o que é bom e o que é ruim. Assim, quando o seu bom e o seu
ruim se chocam com os do vizinho, seguem-se brigas, discussões e até
guerras.
As cores que se moviam dentro
de Sarayu estavam escurecendo enquanto ela falava, pretos e cinzas se
misturando e sombreando os tons de arco-íris.
— E, se não há uma realidade
do bem que seja absoluta, você perde qualquer base para avaliar. É apenas
linguagem e podemos muito bem trocar a palavra bem pela palavra mal.
— Dá para perceber que isso
pode ser um problema — concordou Mack.
— Um problema? — disse
Sarayu, quase com rispidez, enquanto se levantava e o encarava. Ela estava
perturbada, mas Mack sabia que isso não era contra ele. — De fato!
A escolha de comer daquela árvore rasgou o universo, divorciando o
espiritual do físico. Eles morreram expelindo no hálito de sua escolha o
próprio hálito de Deus. Eu diria que isso é um problema!
Na intensidade de sua fala,
Sarayu havia se alçado lentamente do chão. Mas agora, enquanto baixava ao
solo, sua voz chegou mais nítida.
— Aquele foi um dia de grande
tristeza.
Nenhum dos dois falou durante
quase 10 minutos enquanto trabalhavam. À medida que continuava arrancando
raízes e jogando-as na pilha, a mente de Mack trabalhava para entender as
implicações do que Sarayu havia dito. Por fim ele rompeu o silêncio.
— Agora posso ver — confessou
— que gastei a maior parte do meu tempo e da minha energia tentando
adquirir o que eu achava que era bom, como a segurança financeira,
a saúde, a aposentadoria, ou sei lá o quê. E gastei uma quantidade
gigantesca de energia e preocupação temendo o que determinei que era mau.
— Mack deu um suspiro fundo.
— Quanta verdade há nisso! —
disse Sarayu com gentileza. — Lembre-se. Isso permite que vocês brinquem
de Deus em sua independência. Por essa razão, uma parte de vocês prefere
não me ver. E vocês não precisam de mim para criar sua lista do que é bom
e ruim. Mas precisam de mim se tiverem qualquer desejo de parar com essa
ânsia tão insana de independência.
— Então há algum modo de
consertar?
— Você deve desistir de seu
direito de decidir o que é bom e ruim e escolher viver apenas em mim. É um
comprimido difícil de engolir. Para isso você deve me conhecer o bastante,
a ponto de confiar em mim e aprender a se entregar à minha bondade inerente.
Mack teve a impressão de que
Sarayu se virou para ele.
— Mackenzie, o mal é uma
palavra que usamos para descrever a ausência de Deus, assim como usamos a
palavra escuridão para descrever a ausência de Luz, ou morte
para descrever a ausência de Vida. Tanto o mal quanto a escuridão só podem
ser entendidos em relação à Luz e ao Bem. Eles não têm existência real. Eu
sou a Luz e eu sou o Bem. Sou Amor e não há escuridão em mim. A Luz e o Bem
existem realmente. Assim, afastar-se de mim irá mergulhar você na
escuridão. Declarar independência resultará no mal, porque, separado de
mim, você só pode contar consigo mesmo. Isso é morte, porque você se
separou de mim, que sou a Vida.
— Uau! — exclamou Mack,
sentando-se por um momento. — Isso real mente ajuda. Mas também posso ver
que abrir mão dos meus direitos de independência não será um processo
fácil. Poderia significar que...
Sarayu interrompeu a frase
dele outra vez.
— ... que de alguma forma o
bem pode ser a presença do câncer ou a perda de ganhos financeiros, ou
mesmo de uma vida.
— É, mas diga isso à pessoa
com câncer ou ao pai cuja filha morreu — reagiu Mack, um pouco mais
sarcasticamente do que havia pretendido.
— Ah, Mackenzie. Você acha
que nós não pensamos neles? Cada um deles era o centro de outra história
que não é contada.
— Mas — Mack podia sentir seu
controle se esvaindo enquanto cravava a pá com força — Missy não tinha o
direito de ser protegida?
— Não, Mack. Uma criança é
protegida porque é amada e não porque tem o direito de ser protegida.
Isso o fez parar. De algum
modo, o que Sarayu acabara de dizer pareceu virar o mundo de cabeça para
baixo e ele lutou para encontrar um ponto de apoio. Sem dúvida devia haver
alguns direitos aos quais ele poderia legitimamente se agarrar.
— Mas e...
— Os direitos são o que os
sobreviventes procuram para não terem de trabalhar os relacionamentos —
interveio ela.
— Mas, se eu abrir mão...
— Então começará a entender a
maravilha e a aventura de viver em mim — interrompeu ela de novo.
Mack estava ficando
frustrado. Falou mais alto:
— Mas eu não tenho o direito
de...
— De terminar uma frase sem
ser interrompido? Não, não tem. Na realidade, não. Mas, enquanto você achar que
tem, certamente ficará irritado quando alguém o interromper, mesmo que
seja Deus.
Ele ficou perplexo e se
levantou, encarando-a, sem saber se tinha um ataque de fúria ou se ria.
Sarayu sorriu para ele.
— Mackenzie, Jesus não se
agarrou a nenhum direito. Tornou-se um servo por livre vontade e vive seu
relacionamento com Papai. Abriu mão de tudo, de modo que ao longo de sua
vida independente deixou uma porta aberta que permitiria a você viver
suficientemente livre para abdicar de seus direitos.
Nesse momento, Papai desceu
pelo caminho carregando duas sacolas de papel. Sorria enquanto se
aproximava.
— Bem, pelo que vejo, vocês
dois estão tendo uma conversa. — Ela piscou para Mack.
— A melhor! — exclamou Sarayu.
— E adivinhe só! Ele disse que nosso jardim era uma confusão. Não é
perfeito?
As duas deram um largo
sorriso para Mack, que ainda não tinha certeza absoluta de que não estavam
brincando com ele. Sua raiva começou a diminuir, mas ainda podia sentir o
rosto ardendo. As duas pareceram não notar.
Sarayu estendeu a mão e deu
um beijo no rosto de Papai.
— Como sempre, sua noção de
tempo é perfeita. Tudo que eu precisava que Mack fizesse aqui está
terminado. — Virou-se para ele. — Mackenzie, você é um deleite! Obrigada por
seu trabalho duro.
— Na verdade, não fiz grande
coisa — ele respondeu em tom de desculpa. — Quero dizer, olhe essa
bagunça. — Seu olhar passou pelo jardim que os rodeava. — Mas é
realmente lindo e pleno de você, Sarayu. Mesmo que pareça que ainda resta
um monte de trabalho a ser feito, sinto-me estranhamente à vontade e
tranqüilo aqui.
As duas se entreolharam e
riram.
Sarayu foi na direção dele
até invadir seu espaço pessoal.
— E não é de espantar,
Mackenzie, porque este jardim é a sua alma. Esta confusão é você! Juntos, você
e eu estivemos trabalhando com um propósito no seu coração. E ele é
selvagem, lindo e perfeitamente em evolução. Para você parece uma confusão, mas
eu vejo um padrão perfeito emergindo, crescente e vivo.
O impacto das palavras de
Sarayu quase fez desmoronar todas as reservas de Mack.
Ele olhou de novo o jardim
das duas — seu jardim —, e era mesmo uma confusão, mas ao mesmo tempo
incrível e maravilhoso. E, além disso, Papai estava aqui e Sarayu adorava
a confusão. Era quase demais para compreender e de novo suas emoções
cuidadosamente guardadas ameaçaram se derramar.
— Mackenzie, Jesus gostaria
de levá-lo num passeio, se você quiser ir. Preparei um lanche para o caso
de ficarem com fome. Deixo-o livre até a hora do chá.
Enquanto se virava para pegar
as sacolas do lanche, Mack sentiu Sarayu passar, beijando seu rosto, mas
não a viu ir embora. Sentiu que podia vê-la avançar, como se fosse o
vento, as plantas se dobrando, uma de cada vez, parecendo cultuá-la. Quando se
virou de volta, Papai também havia sumido e por isso foi na direção da
carpintaria para ver se conseguia encontrar Jesus. Parecia que os dois
tinham um compromisso.
10. Andando sobre a água
Novo mundo — grande
horizonte.
Abra os olhos e veja
que é verdade.
Novo mundo —do outro
lado das assustadoras
ondas azuis.
— David Wilcox
Jesus terminou de lixar o
último canto do que parecia um pequeno baú que estava numa bancada da
carpintaria. Passou os dedos pela borda lisa, sorriu satisfeito e pousou a
lixa. Saiu pela porta espanando o pó do jeans e da camiseta enquanto Mack
se aproximava.
— Olá, Mack! Eu estava dando
os últimos retoques no meu projeto para amanhã. Gostaria de dar uma volta?
Mack pensou no tempo que
haviam passado juntos na véspera sob as estrelas.
— Se você vai, eu gostaria,
sim — respondeu. — Por que vocês vivem falando sobre amanhã?
— É um grande dia para você,
um dos motivos pelos quais está aqui. Vamos. Há um lugar especial que
quero lhe mostrar, do outro lado do lago, e o panorama é indescritível. De lá
se podem ver alguns dos picos mais altos.
— Deve ser fantástico! —
respondeu Mack entusiasmado.
— Parece que você pegou o
lanche, então podemos ir.
Em vez de se desviar para
algum lado do lago, onde devia haver uma trilha, Jesus foi direto ao cais.
O dia estava luminoso e lindo. O sol esquentava a pele, mas não demais, e uma
brisa fresca e perfumada acariciava o rosto dos dois, suave e
amorosamente.
Mack imaginou que pegariam
uma das canoas presas às estacas do cais e ficou surpreso quando Jesus não
hesitou ao passar pela última, indo diretamente para o fim do píer. Ao
chegar no final, ele se virou para Mack e riu.
— Primeiro você — disse com
um floreio e uma reverência.
— Está brincando, não é? —
reagiu Mack. — Achei que íamos andar e não nadar.
— E vamos. Só pensei que
atravessando o lago levaria menos tempo do que rodeando.
— Não sou um nadador
fantástico e, além disso, a água parece muito fria — reclamou Mack.
— Bom — Jesus cruzou os
braços —, nós dois sabemos que você é um nadador muito capaz e que já foi
salva-vidas. A água está fria e o lago é fundo. Mas não estou falando em nadar. Quero
atravessar andando com você.
Mack finalmente se deu conta
do que Jesus estava sugerindo. Tratava-se de andar sobre a água.
Antecipando sua hesitação, Jesus afirmou: — Vamos, Mack. Se Pedro conseguiu...
Mack riu nervosamente. Para
ter certeza, perguntou de novo:
— Você quer que eu ande sobre
a água até o outro lado. É isso que está dizendo, não é?
— Você entende rápido, Mack.
Tenho certeza de que ninguém consegue enganá-lo. Venha, é divertido! — Ele riu.
Mack foi até a borda do cais
e olhou para baixo. A água batia suavemente apenas uns 30 centímetros
abaixo de onde ele estava, mas era como se fossem 30 metros. A
distância parecia enorme. Mergulhar seria fácil, ele fizera isso mil
vezes, mas como se desce de um cais para a superfície da água? Olhou para
Jesus, que ainda estava rindo.
— Pedro teve o mesmo
problema: como sair do barco? É como descer de um degrau de escada. Nada
de mais.
De novo Mack olhou para a
água e de volta para Jesus.
— Então por que é tão difícil
para mim?
— Diga do que você tem medo,
Mack.
— Bem, vejamos. Do que tenho
medo? Bem, tenho medo de parecer idiota. Tenho medo de você estar se
divertindo às minhas custas e de afundar como uma pedra. Imagino que...
— Exatamente — interrompeu
Jesus. — Você imagina. A imaginação é uma capacidade poderosa! É um poder
que o torna muito parecido conosco. Mas, sem sabedoria, a imaginação é uma
professora cruel. Quero lhe fazer uma pergunta: você acha que os humanos foram
criados para viver no presente, no passado ou no futuro?
— Bom — disse Mack,
hesitando. — Acho que a resposta mais óbvia é que fomos criados para viver
no presente. Estou errado?
Jesus deu um risinho.
— Relaxe, Mack, isso não é um
teste, é uma conversa. Você está corretíssimo, por sinal. Mas agora me diga
onde você passa a maior parte do tempo em sua imaginação: no presente, no
passado ou no futuro?
Mack pensou um momento antes
de responder.
— Acho que eu passo muito
pouco tempo no presente. Passo grande parte dele no passado, mas na maior
parte do tempo estou tentando adivinhar o futuro.
— Você não é diferente da
maioria das pessoas. Quando estou com vocês, vivo no presente. Não no
passado, se bem que muita coisa pode ser lembrada e aprendida ao se olhar
para trás, mas somente para uma visita, não para uma estada demorada.
E certamente não vivo no futuro que você visualiza ou imagina. Mack, você
percebe que sua imaginação do futuro, que é quase sempre ditada por algum
tipo de medo, raramente me coloca lá com você, se é que me coloca?
De novo Mack parou e pensou.
Era verdade. Ele passava um bocado de tempo se aborrecendo e se
preocupando com o futuro, e em sua imaginação o futuro geralmente era
muito sombrio, deprimente e mesmo horrível. E Jesus também estava correto
ao dizer que, do modo como Mack imaginava o futuro, Deus estava sempre
ausente.
— Por que faço isso? —
perguntou Mack.
É sua tentativa desesperada
de conseguir algum controle sobre algo que você não pode controlar. É
impossível ter poder sobre o futuro, porque ele não é real, e jamais será.
Você tenta brincar de Deus
imaginando que o mal que teme pode se tornar realidade e depois tenta
fazer planos para evitar aquilo que teme.
— É basicamente o que Sarayu
esteve dizendo. Então por que tenho tanto medo da vida?
— Porque não acredita. Não
sabe que nós o amamos. A pessoa que vive dominada pelos medos não encontra
liberdade no meu amor. Não estou falando de medos racionais, ligados a
perigos reais, e sim de medos imaginários, e especialmente da projeção
desses medos no futuro. À medida que dá lugar a esses medos, você não
acredita que eu sou bom, nem sabe, no fundo do seu coração, que eu o amo.
Você pode até falar disso, mas não sabe.
Mack olhou de novo para a
água e soltou um suspiro enorme, que saiu do fundo da alma.
— Há um longo espaço para eu
percorrer.
— Só uns 30 centímetros, é o
que me parece — riu Jesus, pondo a mão no ombro de Mack. Ele só precisava
disso para descer do cais. Para tentar ver a água como sólida e não se
atrapalhar com o movimento dela, olhou para a margem distante e levantou os
sacos do lanche.
O pouso foi mais suave do que
ele havia pensado. Seus sapatos ficaram molhados no mesmo instante, mas a
água não subiu nem mesmo até os tornozelos. O lago ainda se movia ao seu
redor e ele quase perdeu o equilíbrio por causa disso. Era estranho.
Olhando para baixo, parecia
que seus pés estavam sobre algo sólido, mas invisível.
Virou-se e viu Jesus ao seu
lado segurando os sapatos e as meias numa das mãos e sorrindo.
— Nós sempre tiramos os
sapatos e as meias antes — disse ele rindo.
Mack balançou a cabeça rindo
também enquanto se sentava de novo na beira do cais.
— Acho que vou fazer isso.
Tirou os sapatos, espremeu as
meias e enrolou as pernas da calça.
Partiram levando os calçados
e as sacolas e caminharam para a margem oposta, a cerca de 800 metros de
distância. A água era fresca e revigorante e fazia subir arrepios pela coluna.
Caminhar sobre a água com
Jesus parecia o modo mais natural de atravessar um lago, e Mack ria de
orelha a orelha só de pensar no que estava fazendo.
— Isso é absolutamente
ridículo e impossível, você sabe — exclamou finalmente.
— Claro — confirmou Jesus,
rindo também.
Chegaram rapidamente à outra
margem e Mack parou pouco antes de atingi-la. À esquerda viu uma linda
cachoeira se derramando pela borda de um penhasco e caindo até o lago. Ao
lado da cachoeira havia uma campina cheia de flores selvagens que
se espalhavam ao acaso, semeadas pelo vento. Tudo era espantoso e Mack
ficou um momento absorto. Uma imagem de Missy relampejou em sua mente, mas
não se fixou.
Uma praia de pedrinhas
esperava-os e, atrás dela, uma floresta densa e rica erguia-se até a base
de uma montanha encimada pela brancura da neve recém-caída. Mack saiu
da água para as pedras pequenas, indo cautelosamente em direção a um
tronco tombado. Ali sentou-se, torceu as meias de novo e colocou-as ao
lado dos sapatos para secar ao sol de quase meio-dia.
Só então olhou para o outro
lado do lago. A beleza era estonteante. Podia ver a cabana, com a fumaça
subindo preguiçosamente da chaminé de tijolos vermelhos delineada contra
os verdes do pomar e da floresta. Fazendo tudo parecer minúsculo,
uma enorme cordilheira pairava acima e atrás, como sentinela montando
guarda. Mack sentou-se ao lado de Jesus e impregnou-se da sinfonia visual.
— Você faz um grande
trabalho! — disse baixinho.
— Obrigado, Mack, e você viu
muito pouco. Por enquanto, a maior parte das coisas que existem no
universo só será vista e desfrutada por mim como telas especiais guardadas
nos fundos do ateliê de um pintor. Mas um dia... E você pode imaginar o
que seria se a Terra não estivesse em guerra, lutando tanto para
simplesmente sobreviver?
— O que você quer dizer
exatamente?
Nossa Terra é como uma
criança que cresceu sem pais, não tendo ninguém para guiá-la e orientá-la.
— Enquanto Jesus falava, sua voz se intensificava numa angústia contida. —
Alguns tentaram ajudá-la, mas a maioria procurou simplesmente usá-la. Os
seres humanos, que receberam a tarefa de guiar amorosamente o mundo, em
vez disso o saquearam sem qualquer consideração. E pensaram pouco nos
próprios filhos, que vão herdar sua falta de amor. Por isso usam e abusam
da Terra e, quando ela estremece ou reage, se ofendem e levantam os punhos
contra Deus.
— Você é ecologista? — perguntou
Mack, com um certo tom de acusação.
— Esta imensa bola
verde-azulada no espaço negro, cheia de beleza mesmo agora, espancada,
abusada e linda.
— Conheço esta música. Você
deve se importar muito com a Criação.
— Bom, essa bola
verde-azulada no espaço negro pertence a mim — declarou
Jesus enfaticamente.
Depois de um momento eles
abriram as sacolas do lanche. Papai as enchera de sanduíches e guloseimas
e os dois comeram com grande apetite.
— Então por que vocês não
consertam? — perguntou Mack, mastigando o sanduíche. — Quero dizer, a
Terra.
— Por que nós a demos para
vocês.
— Não podem pegá-la de volta?
— Claro que poderíamos, mas
então a história acabaria antes de ser consumada.
Mack deu um olhar vazio para
Jesus.
— Já notou que, mesmo que me
chamem de Senhor e Rei, eu realmente nunca agi desse modo com vocês? Nunca
assumi o controle de suas escolhas nem os obriguei a fazer nada, mesmo
quando o que estavam fazendo era destrutivo para vocês mesmos e para os
outros?
Mack olhou de volta para o
lago antes de responder.
— Eu preferiria que às vezes
você assumisse o controle. Teria economizado um bocado de dor para mim e
para as pessoas de quem eu gosto.
Forçar minha vontade sobre a
de vocês é exatamente o que o amor não faz. Os relacionamentos verdadeiros
são marcados pela aceitação, mesmo quando suas escolhas não são úteis nem
saudáveis. Esta é a beleza que você vê no meu relacionamento com Abba e
Sarayu. Nós somos de fato submetidos uns aos outros, sempre fomos e
sempre seremos. Papai é tão submetida a mim quanto eu a ela, ou Sarayu a
mim, ou Papai a ela.
Submissão não tem a ver com
autoridade e não é obediência. Tem a ver com relacionamentos de amor e
respeito. Na verdade somos igualmente submetidos a você.
Mack ficou surpreso.
— Como pode ser? Por que o
Deus do universo quereria se submeter a mim?
— Porque queremos que você se
junte a nós em nosso círculo de relacionamento. Não quero escravos, quero
irmãos e irmãs que compartilhem a vida comigo.
— E é assim que você quer que
nós amemos uns aos outros, não é? Quero dizer, entre maridos e esposas,
pais e filhos. Em qualquer relacionamento.
— Exato! Quando sou sua vida,
a submissão é a expressão mais natural do meu caráter e da minha natureza,
e será a expressão mais natural de sua nova natureza dentro dos relacionamentos.
— E o que eu mais queria era
um Deus que simplesmente consertasse tudo para que ninguém se ferisse. —
Mack balançou a cabeça ao se dar conta disso. — Mas não sou bom no campo
dos relacionamentos, não sou como Nan.
Jesus terminou de comer o
sanduíche, fechou o saco do lanche e colocou-o ao lado, no tronco. Limpou
algumas migalhas presas ao bigode e à barba curta. Depois, pegando um
pedaço de pau ali perto, começou a desenhar na areia, enquanto continuava:
— Isso é porque, como a
maioria dos seres humanos, você procura realizar-se pelos seus feitos, e
Nan, como a maioria das mulheres, pelos relacionamentos. É
mais naturalmente a linguagem dela. — Jesus parou para contemplar uma
águia-pescadora mergulhar no lago a menos de 20 metros deles e, a
seguir, lentamente elevar-se com as garras segurando uma grande truta que
ainda lutava para escapar.
— Isso significa que eu não
tenho saída? Realmente quero o que vocês três compartilham, mas não faço
idéia de como chegar lá.
— Há muita coisa obstruindo o
seu caminho agora, Mack, mas você não precisa continuar vivendo assim.
— Sei que isso é mais
verdadeiro agora que Missy se foi, mas nunca foi fácil para mim.
— Você não está simplesmente
lidando com o assassinato de Missy. Há uma reviravolta maior que torna
difícil compartilhar da nossa vida. O mundo está partido porque no Éden
vocês abandonaram o relacionamento conosco para afirmar a
própria independência. A maioria dos humanos expressou isso voltando-se
para o trabalho das mãos e para o suor do rosto em busca da identidade, do
valor e da segurança. Ao optar por definir o que é bom e o que é mau,
vocês buscam determinar seu próprio destino. Foi essa reviravolta que causou
tanta dor.
Jesus se firmou no pedaço de
madeira para se levantar e parou enquanto Mack terminava de comer o
sanduíche e se levantava também. Juntos, começaram a andar pela margem do
lago.
— Mas isso não é tudo. O
desejo da mulher... na verdade a palavra é a "virada". Assim,
a virada da mulher não foi para a obra de suas mãos e sim para o homem, e a
reação dele foi "dominá-la", assumir o poder sobre ela,
tornar-se o governante. Antes dessa escolha, a mulher encontrava sua
identidade, sua segurança e sua compreensão do bem e do mal apenas em mim,
da mesma forma que o homem.
— Não é de espantar que eu me
sinta um fracasso tão grande com Nan. Não consigo ser isso para ela.
— Você não foi feito para
ser. E, ao tentar, estará brincando de Deus.
Mack se abaixou, pegou uma
pedra chata e atirou-a ricocheteando sobre o lago.
— Há alguma saída para isso?
— É simples demais, mas nunca
é fácil para vocês. A saída é voltar-se para mim. Abrir mão de seus
hábitos de poder e manipulação e simplesmente voltar-se para mim. — Jesus
parecia estar implorando. — As mulheres, em geral, acham difícil dar as
costas para um homem e parar de exigir que ele atenda às suas
necessidades, que proporcione segurança e proteja a identidade delas. Acham
difícil retornar para mim. Os homens, por sua vez, acham muito difícil dar
as costas para as obras de suas mãos, para sua busca de poder, segurança e
importância. Também acham difícil retornar para mim.
— Sempre me perguntei por que
os homens estão no comando — ponderou Mack. — Os homens parecem ser a
causa de muita dor no mundo. Cometem a maior parte dos crimes e muitos são
contra mulheres e — ele fez uma pausa — crianças.
— As mulheres — continuou
Jesus enquanto pegava uma pedra e também a fazia ricochetear na água — nos
deram as costas em busca de outro relacionamento, ao passo que os homens
viraram-se para eles mesmos e para o chão. O mundo, em vários sentidos,
seria um lugar muito mais tranqüilo e gentil se as mulheres governassem.
Haveria muito menos crianças sacrificadas aos deuses da cobiça e do poder.
— Então elas teriam realizado
melhor esse papel.
— Melhor, talvez, mas ainda
assim não seria suficiente. O poder nas mãos dos seres humanos
independentes, sejam homens ou mulheres, corrompe. Mack, você não vê que
representar papéis é o contrário do relacionamento? Queremos que homens e
mulheres sejam parceiros, iguais face a face, cada qual único e diferente,
distintos em gênero mas complementares, e cada um recebendo o poder
unicamente de Sarayu, de quem se origina todo o poder e autoridade
verdadeiros. Lembre-se, minha identidade não se baseia em desempenho e eu
não preciso me encaixar nas estruturas feitas pelos humanos. Eu tenho a
ver com ser. À medida que você cresce no relacionamento comigo, o que
fizer simplesmente refletirá quem você realmente é.
— Mas você veio na forma de
homem. Isso não significa alguma coisa?
— Sim, mas não o que
muitos imaginam. Vim como homem para completar a imagem maravilhosa de
como fizemos vocês. Desde o primeiro dia escondemos a mulher no homem,
de modo que na hora certa pudéssemos retirá-la de dentro dele. Não criamos
o homem para viver sozinho. A mulher foi projetada desde o início. Ao
tirá-la de dentro dele, de certa forma ele a deu à luz. Criamos um círculo
de relacionamento como o nosso, mas para os humanos. Ela saindo dele e
agora todos os homens, inclusive eu, nascidos dela, e tudo se originando ou
nascendo de Deus.
— Ah, entendi — exclamou
Mack, interrompendo o gesto de atirar outra pedra. — Se a mulher fosse
criada primeiro, não haveria um círculo de relacionamento e não
se tornaria possível um relacionamento totalmente igual, cara a cara,
entre o homem e a mulher. Certo?
— Certíssimo, Mack. — Jesus
olhou-o e riu. — Nosso desejo foi criar um ser que tivesse uma
contrapartida totalmente igual e poderosa: o homem e a mulher. Mas
sua independência, com a busca de poder e de realização, na verdade destrói
o relacionamento que seu coração deseja.
— Aí está de novo — disse
Mack, procurando uma pedra mais chata. — A questão sempre volta ao poder e
a como ele é oposto ao relacionamento que vocês têm entre si. Eu adoraria
experimentar isso com vocês e com Nan.
— E por essa razão está aqui.
— Gostaria que ela estivesse
também.
— Ah, o que poderia ter sido!
— meditou Jesus.
Mack não teve idéia do que
ele queria dizer. O silêncio se instalou por alguns minutos, interrompido
pelo som leve das pedras ricocheteando na água.
Jesus parou antes de jogar
mais uma pedra.
— Uma última coisa que eu
quero que você lembre desta conversa, Mack, antes de você ir.
Ele jogou a pedra. Mack
levantou os olhos, surpreso.
— Antes de eu ir?
Jesus ignorou a pergunta.
— Mack, assim como o amor, a
submissão não é algo que você pode praticar, especialmente sozinho. Fora
de minha vida dentro de você, você não pode se submeter a Nan, ou aos seus
filhos, ou a mais ninguém, inclusive Papai.
— Quer dizer — exclamou Mack,
um tanto sarcástico — que eu não posso simplesmente perguntar: "O que
Jesus faria?"
Jesus deu um risinho.
— Boas intenções, má idéia.
Não deixe de me contar como a coisa funciona para você, se escolher esse
caminho. — Parou e ficou sério. — É verdade, minha vida não se destinava a
tornar-se um exemplo a copiar. Ser meu seguidor não significa tentar
"ser como Jesus", significa matar sua independência. Eu vim lhe
dar vida, vida real, minha vida. Nós viveremos nossa vida dentro de você,
de modo que você comece a ver com nossos olhos, ouvir com nossos ouvidos,
tocar com nossas mãos e pensar como nós. Mas nunca forçaremos essa união.
Se você quiser fazer as coisas do seu jeito, tudo bem. O tempo está a
nosso favor. E, por falar em tempo — Jesus virou-se e apontou para o
caminho que levava até a floresta no fim da clareira —, você tem
um compromisso. Siga aquele caminho e entre onde ele acaba. Vou esperar
aqui.
Por mais que quisesse, Mack
soube que não adiantaria tentar prosseguir na conversa.
Num silêncio pensativo,
calçou as meias e os sapatos. Não estavam totalmente secos, mas ofereciam
algum conforto. Levantou-se sem dizer mais nada, foi na direção do fim da
praia, parou um minuto para olhar de novo a cachoeira, pulou por cima do
córrego e entrou na floresta por um caminho bem cuidado e nítido.
11. Olha o juiz aí, gente
Quem decidir se colocar
como juiz da Verdade e do Conhecimento é
naufragado pela
gargalhada dos deuses.
— Albert Einstein
Ah, minha alma,
prepare-se para encontrar Aquele que sabe
fazer perguntas.
— T. S. Eliot
Mack seguiu a trilha, que
serpenteava, passando pela cachoeira, afastando-se do lago, e atravessou
um denso bosque de cedros. Demorou menos de cinco minutos para chegar a
um impasse. O caminho o levou diretamente até a face de uma rocha onde
havia a leve silhueta de uma porta praticamente invisível. Obviamente ele
devia entrar, por isso estendeu a mão, hesitando, e empurrou. Sua mão
simplesmente penetrou na parede e Mack continuou a se mover cautelosamente
adiante até todo o seu corpo passar pelo que parecia o sólido exterior de
pedra da montanha. Dentro, a escuridão era tão espessa que ele nada via.
Respirando fundo e com as
mãos estendidas à frente do corpo, aventurou-se dando pequenos passos na
escuridão total e parou. O medo o dominou e ele respirava com dificuldade, sem
saber se deveria prosseguir ou não. Enquanto seu estômago se apertava,
sentiu de novo a Grande Tristeza pousando pesadamente em seus ombros,
quase o sufocando. Queria voltar desesperadamente para a luz, mas
acreditava que Jesus não iria mandá-lo para ali sem um bom propósito. Foi
em frente.
Devagar, seus olhos se
acostumaram com as sombras profundas e foi possível perceber um corredor
se curvando à esquerda. Enquanto seguia por ele, surgiu uma
leve luminosidade que se refletia nas paredes, vinda de algum lugar à
frente.
A menos de 30 metros o túnel virou
abruptamente para a esquerda e Mack se viu na borda do que imaginou ser
uma caverna enorme. A ilusão era ampliada pela única luz presente, um leve
fulgor que o envolvia, mas se dissipava a menos de 3 metros em todas as
direções. Para além disso não conseguia ver nada, somente o negrume. O ar
era pesado e opressivo, com um frio de tirar o fôlego. Olhou para baixo e
ficou aliviado ao vislumbrar o leve reflexo de uma superfície — não a
terra e a rocha do túnel, mas um piso liso e escuro como mica polida.
Dando corajosamente um passo
à frente, notou que o círculo de luz se movia com ele, iluminando um pouco
mais a área adiante. Sentindo-se mais confiante, começou a andar lenta e
deliberadamente na direção para a qual estivera virado, concentrando-se no
chão.
Estava tão ligado nos
próprios pés que trombou num objeto e quase caiu.
Era uma cadeira de madeira,
de aparência confortável, no meio de... nada. Mack decidiu rapidamente
sentar-se e esperar. Ao fazer isso, a luz que o havia ajudado continuou a
se mover à frente como se ele ainda estivesse andando. Logo adiante pôde
ver uma escrivaninha de ébano, de tamanho considerável, completamente
vazia. E deu um pulo quando a luz se concentrou num ponto e finalmente ele
a viu. Atrás da mesa se encontrava uma mulher alta, linda, de pele morena,
com feições hispânicas bem marcadas, vestindo um manto largo de cores
escuras. Estava sentada ereta e regia como um juiz da suprema corte.
Sua beleza era estonteante.
"Ela é a beleza",
pensou ele. "Tudo que a sensualidade luta para ser mas fica
muito longe de conseguir." À luz fraca era difícil ver onde seu rosto
começava, como se o cabelo e o manto emoldurassem as feições e se
fundissem nelas. Os olhos brilhavam e luziam como se fossem portais para a
vastidão do céu estrelado, refletindo alguma fonte de luz desconhecida
dentro da mulher.
Mack não ousou falar, com
medo de que sua voz fosse engolida pela intensidade do ambiente. Pensou:
"Sou o camundongo Mickey em vias de falar com Pavarotti."
O pensamento o fez sorrir. Como se de algum modo o tivesse ouvido, a
mulher sorriu de volta e o lugar clareou nitidamente. Foi o necessário
para Mack entender que era esperado e bem-vindo. A mulher parecia estranhamente
familiar, como se ele a tivesse conhecido ou vislumbrado em algum lugar no
passado, apesar de saber que nunca a vira nem se encontrara com ela de
verdade.
— Será que posso perguntar...
quem é você? — disse Mack desajeitado, a voz mal deixando uma impressão no
silêncio da sala, mas depois permanecendo como a sombra de um eco.
Ela ignorou a pergunta.
— Você sabe por que está
aqui? — Como uma brisa varrendo a poeira, a voz dela afastou a pergunta de
Mack para fora da sala. Ele quase podia sentir as palavras chovendo sobre sua cabeça
e se dissolvendo na coluna vertebral, lançando arrepios deliciosos para todos
os lados. Estremeceu e decidiu que não queria falar. Só desejava que ela
falasse, com ele ou com qualquer um, desde que ele a ouvisse. Mas a mulher
esperou.
— Você sabe — disse ele
baixinho, surpreso com a sonoridade da própria voz e convicto de que dizia
a verdade. — Eu não faço idéia — acrescentou, voltando o olhar para o chão. —
Ninguém me disse.
— Bem, Mackenzie Allen
Phillips — ela riu, fazendo-o levantar os olhos rapidamente. — Estou aqui
para ajudá-lo.
Se um arco-íris ou uma flor
desabrochando fizessem som, esse seria o som do riso dela. Era uma chuva
de luz, um convite para falar, e Mack riu com ela, sem mesmo saber ou se
importar por quê.
De novo houve silêncio, e o
rosto da mulher, embora permanecesse suave, assumiu uma intensidade feroz,
como se ela pudesse olhar no fundo dele, para além dos fingimentos e
fachadas, até os lugares dos quais raramente se fala, se é que se fala.
— Hoje é um dia muito sério,
com conseqüências sérias. — Ela fez uma pausa, como para dar peso às suas
palavras nitidamente pesadas. — Mackenzie, você está aqui em parte
por causa de seus filhos, mas também está aqui por...
— Meus filhos? — interrompeu
Mack. — Como assim, estou aqui por causa dos meus filhos?
— Mackenzie, você ama seus
filhos de um modo que seu pai jamais conseguiu amar você e suas irmãs.
— Claro que amo meus filhos.
Todo pai ama os filhos. Mas por que isso tem a ver com o motivo de eu
estar aqui?
— Em certo sentido, todo pai
ama os filhos — respondeu ela, ignorando a segunda pergunta. — Mas alguns
pais estão machucados demais para amá-los bem, e outros mal conseguem
amá-los, você deveria saber disso. Mas você ama seus filhos bem,
muito bem.
— Aprendi muito disso com
Nan.
— Sabemos. Mas aprendeu, não
foi?
— Acho que sim.
— Dentre os mistérios de uma
humanidade ferida, este também é bastante notável: aprender, permitir a
mudança. — Ela era calma como um mar sem vento. — Então, Mackenzie, qual
de seus filhos você mais ama?
Mack sorriu por dentro. Era
uma pergunta que ele se fizera muitas vezes sem encontrar resposta.
— Não amo nenhum mais do que
os outros. Amo cada um de um modo diferente — disse, escolhendo as
palavras com cuidado.
— Explique isso, Mackenzie —
pediu ela com interesse.
— Bom, cada um dos meus
filhos é único, tem uma personalidade especial. E essa condição única
provoca uma reação única em mim.
Mack se recostou na cadeira.
— Lembro-me de quando Jon, o
primeiro, nasceu. Fiquei tão maravilhado com aquele ser tão pequeno e frágil
que na verdade me preocupei, pensando se me restaria amor para um segundo
filho. Mas, quando Tyler chegou, foi como se trouxesse com ele um presente
maravilhoso para mim, toda uma nova capacidade de amá-lo especialmente.
Pensando bem, é como quando Papai diz que gosta de modo especial de
alguém. Quando penso em cada um dos meus filhos individualmente,
descubro que gosto especialmente de cada um.
— Muito bem, Mackenzie! — A
apreciação dela era tangível e ela prosseguiu, inclinando-se um pouco, com
o tom ainda suave, porém sério. — Mas e quando eles não se comportam, ou
quando fazem escolhas diferentes das que você gostaria que fizessem, ou quando
são agressivos e grosseiros? E quando eles o embaraçam na frente dos
outros? Como isso afeta seu amor por eles?
Mack respondeu lenta e
decididamente:
— Na verdade, não afeta. —
Ele sabia que estava sendo sincero, mesmo que algumas vezes Katie não
acreditasse. — Admito que isso me incomoda e algumas vezes fico sem graça ou
com raiva, mas, mesmo quando eles agem mal, ainda são meus filhos e serão para
sempre. O que fazem pode afetar meu orgulho, mas não meu amor.
Ela se recostou, rindo de
orelha a orelha.
— Você é sábio em termos de
amor verdadeiro, Mackenzie. Muitos acreditam que é o amor que cresce, mas
é o conhecimento que cresce, e o amor simplesmente se expande para
contê-lo. O amor é simples mente a pele do conhecimento. Mackenzie, você
ama seus filhos que conhece tão bem com um amor maravilhoso e verdadeiro.
Meio sem graça com o elogio,
Mack baixou o olhar.
— Bem, obrigado, mas não sou
assim com muitas outras pessoas. Meu amor tende a ser bastante condicional
na maior parte do tempo.
— Mas isso é um começo, não
é, Mackenzie? E você não ultrapassou sozinho a incapacidade de seu pai.
Foram Deus e você, juntos, que causaram essa mudança, para que você
pudesse amar desse modo. E agora você ama seus filhos praticamente como o
Pai ama os dele.
Mack percebeu seu maxilar se
apertando e sentiu de novo a raiva começar a crescer. O que deveria ter sido um
elogio tranqüilizador parecia mais uma pílula amarga que agora ele se
recusava a engolir. Tentou relaxar para encobrir as emoções, mas,
pela expressão dela, soube que era inútil.
— Hummm — murmurou a mulher.
— Algo que eu disse incomodou você, Mackenzie? — Dessa vez o olhar dela o
deixou desconfortável.
Mack sentiu-se exposto. O
silêncio que se seguiu à pergunta pairava no ar. Mack lutou para manter
a compostura. Podia ouvir o conselho de sua mãe ressoando nos ouvidos:
"Se não tiver nada de bom para dizer, não diga nada."
— Ah... bem, não! Na verdade,
não.
Mackenzie — instigou ela —,
este não é um momento para usar o bom senso da sua mãe. É um momento de
honestidade, de verdade. Você não acredita que o Pai ame bem seus filhos,
não é? Você não acredita realmente que Deus seja bom, não é?
— Missy é filha dele? —
perguntou Mack rispidamente.
— Claro!
— Então, não! — respondeu ele
bruscamente, levantando-se. — Não acredito que Deus ame todos os seus
filhos muito bem!
Tinha dito, e agora a
acusação ecoava nas paredes que poderiam existir na câmara. Enquanto Mack
estava ali parado, com raiva e pronto para explodir, a mulher permaneceu
calma e sem alterar a postura. Lentamente, levantou-se da cadeira
de encosto alto, passou em silêncio por trás dele e o chamou.
— Por que não se senta aqui?
Ele encarou-a com sarcasmo,
mas não se mexeu.
— Mackenzie. — Ela permaneceu
de pé atrás da cadeira. — Antes comecei a dizer por que você está aqui hoje.
Não somente por causa dos seus filhos. Está aqui para o julgamento.
Enquanto a palavra ecoava na
câmara, o pânico subiu por dentro de Mack como um maremoto e lentamente
ele se deixou afundar na cadeira. Lembranças se derramavam da mente como
ratos fugindo da enchente e no mesmo instante ele se sentiu culpado.
Segurou os braços da cadeira, tentando encontrar algum equilíbrio,
inundado por imagens e emoções. Seus fracassos como ser humano subitamente
se tornaram enormes e no fundo da mente quase pôde ouvir uma voz entoando
uma lista crescente e apavorante de pecados.
Não tinha defesa. Sabia que estava
perdido.
— Mackenzie? — começou ela,
mas ele a interrompeu.
— Agora entendo. Estou morto,
não estou? Por isso consigo ver Jesus e Papai, porque estou morto. — Ele
se recostou e olhou para a escuridão, sentindo-se nauseado. —
Não acredito! Não senti nada. — Olhou para a mulher, que o observava com
paciência. — Há quanto tempo estou morto?
— Mackenzie, lamento
desapontá-lo, mas você ainda não caiu no sono no seu mundo, e acredito que
se enga...
De novo Mack a interrompeu: —
Não estou morto? — Incrédulo, levantou-se de novo. — Quer dizer que tudo isto é
real e ainda estou vivo? Mas você disse que eu tinha vindo aqui para ser
julgado.
— Disse, sim — declarou ela
em tom casual, com uma expressão divertida. — Mas Macken...
— Julgamento? E nem estou
morto? — Pela terceira vez ele a interrompeu, com a raiva substituindo o
pânico. — Não é justo! — Ele sabia que suas emoções não estavam ajudando.
— Isso acontece com outras pessoas? Quero dizer, ser julgado antes mesmo
de morrer? E se eu mudar? E se eu for melhor pelo resto da vida? E se me
arrepender? E aí?
— Há alguma coisa da qual
você queira se arrepender, Mackenzie? — perguntou ela, sem se abalar com a
explosão.
Mack sentou-se de novo,
lentamente. Olhou a superfície lisa do chão e balançou a cabeça antes de responder.
— Eu não saberia por onde
começar — murmurou. — Sou uma confusão, não é?
— É, sim. — Mack levantou os
olhos e ela sorriu. — Você é uma confusão gloriosa e destrutiva,
Mackenzie, mas não está aqui para se arrepender, pelo menos não do
modo como entende o arrependimento. Mackenzie, você não está aqui para ser
julgado.
— Mas — interrompeu ele de
novo. — Achei que você disse que eu vim...
— ... aqui para o julgamento?
— Ela permaneceu fresca e plácida como uma brisa de verão enquanto
completava a pergunta dele. — Disse. Mas você não está em julgamento.
Mack respirou fundo, aliviado
com as palavras.
— Você será o juiz.
O nó no estômago retornou
quando ele percebeu o que ela dissera. Por fim baixou os olhos para a
cadeira que o esperava.
— O quê? Eu? — Fez uma pausa.
— Não tenho nenhuma capacidade de julgar.
— Ah, não é verdade — foi a
resposta rápida, agora tingida por um leve sarcasmo. — Você já se mostrou
bastante capaz, mesmo no pouco tempo que passamos juntos. E, além
disso, já julgou muitas pessoas durante a vida. Julgou os atos e até mesmo
as motivações dos outros, como se soubesse quais eram. Julgou a cor da
pele, a linguagem corporal e o odor pessoal. Julgou histórias e
relacionamentos. Até julgou o valor da vida de uma pessoa segundo seu
conceito de beleza. Em todos os sentidos, você é bastante treinado nessa
atividade.
Mack sentiu a vergonha
avermelhando seu rosto. Tinha de admitir que já fizera um bocado de
julgamentos. Mas não era diferente de mais ninguém, era? Quem não
julga impulsivamente as ações e intenções dos outros? Ao levantar os
olhos, viu-a espiando-o com atenção e rapidamente voltou a olhar para
baixo.
— Diga — pediu ela —, se é
que posso perguntar: qual é o critério pelo qual você baseia seus
julgamentos?
Mack tentou encará-la, mas descobriu
que quando a olhava diretamente seu pensamento oscilava. Teve de desviar
os olhos para a escuridão do canto a sala, esperando recuperar o controle.
— Nada que pareça fazer muito
sentido neste momento — admitiu finalmente, com a voz embargada. — Confesso
que quando fiz aqueles julgamentos eu me sentia bastante justificado, mas
agora...
— Claro que se sentia. — Ela
afirmou como uma declaração, como algo rotineiro, sem registrar sequer por
um momento a evidente vergonha e perturbação dele. — Julgar exige que você
se considere superior a quem você julga. Bom, hoje você terá a
oportunidade de colocar toda a sua capacidade em uso. Venha — disse ela,
dando um tapinha no encosto da cadeira. — Quero que se sente aqui. Agora.
Hesitando, ele foi
obedientemente até ela e a cadeira que o esperava. A cada passo parecia
ficar menor. Subiu com dificuldade na cadeira e sentiu-se infantil, os pés
mal tocando o chão.
— E exatamente o que vou
julgar? — perguntou, virando-se para olhá-la.
— Não o quê. — Ela foi para o
lado da mesa. — Quem.
O desconforto de Mack crescia
aos saltos e sentar-se numa cadeira solene e grande demais não ajudava.
Que direito ele tinha de julgar alguém? Claro, de certa forma era culpado
de julgar praticamente todo mundo que conhecera e muitos desconhecidos.
Mack sabia que era totalmente
culpado de ser egocêntrico. Como é que ele ousava julgar alguém? Todos os
seus julgamentos haviam sido superficiais, baseados na aparência e nos
atos, motivados por preconceitos, estados de espírito ou por sua necessidade
de sentir-se melhor ou superior. Estava começando a entrar em pânico.
— Sua imaginação — ela
interrompeu seus pensamentos — não vai ajudá-lo muito neste momento.
"Não brinca,
Sherlock!" ele pensou ironicamente, mas tudo que saiu de sua boca foi: —
Não posso fazer isso.
— Sua capacidade de fazer
isso ou não ainda não foi determinada — disse ela com um sorriso. — E meu
nome não é Sherlock.
Mack sentiu-se grato pela
sala escura que escondia seu embaraço. O silêncio que se seguiu pareceu
mantê-lo cativo por muito mais tempo do que os poucos segundos necessários
para encontrar a voz e finalmente fazer a pergunta:
— Então quem devo julgar?
— Deus — ela fez uma pausa —
e a raça humana. — Disse como se isso não tivesse importância especial. As
palavras simplesmente rolaram de sua língua, como se fosse
um acontecimento cotidiano.
Mack ficou aparvalhado.
— Você só pode estar
brincando! — exclamou.
— Por que não? Sem dúvida há
muitas pessoas no seu mundo que você acha que merecem julgamento. Deve
haver pelo menos algumas culpadas por boa parte da dor e do sofrimento,
não é? Que tal os gananciosos que exploram os pobres do mundo? Que tal
os que promovem as guerras? Que tal os homens que agridem as mulheres,
Mackenzie? Que tal os pais que batem nos filhos sem qualquer motivo além
de aplacar seu próprio sofrimento? Eles não merecem julgamento, Mackenzie?
Mack percebia a profundidade
de sua raiva não resolvida subir como um jorro de fúria. Afundou na cadeira
tentando manter o equilíbrio abalado por um tiroteio de imagens, mas podia
sentir o controle se esvaindo. Seu estômago deu um nó enquanto ele
fechava os punhos, com a respiração curta e rápida.
— E que tal o homem que é um
predador de menininhas inocentes? Que tal ele, Mackenzie? Esse homem é
culpado? Ele deve ser julgado?
— Deve! — gritou Mack. — Deve
ser mandado para o inferno!
— Ele é culpado da sua perda?
— É!
— E o pai dele, o homem que
deformou o filho até que ele se transformasse num terror? E ele?
— É, ele também!
— Até onde devemos voltar,
Mackenzie? Esse legado de deformação remonta até Adão. E ele? Mas por que
pararmos aqui? E Deus? Deus começou essa coisa toda. Deus deve ser
culpado?
Mack estava tonto. Não se
sentia de modo algum um juiz, e sim um réu sendo julgado.
A mulher não se aplacava.
— Não é aí que você está
travado, Mackenzie? Não é isso que alimenta a Grande Tristeza? O fato de não
poder confiar em Deus? Sem dúvida, um pai como você pode julgar o Pai!
De novo a raiva dele subiu
como uma chama gigantesca. Queria golpear alguma coisa, mas ela estava
certa e não havia sentido em
negar. A mulher prosseguiu:
— Sua reclamação não é justa,
Mackenzie? O fato de Deus ter fracassado com você, ter fracassado com Missy? O
fato de, antes da Criação, Deus saber que um dia sua Missy seria
brutalizada e mesmo assim a ter criado? E depois permitir que aquela alma
deturpada a arrancasse de seus braços amorosos quando tinha poder para
impedir? Deus não deve ser culpado, Mackenzie?
Mack olhava para o chão, com
uma avalanche de imagens empurrando seus sentimentos em todas as direções.
Por fim falou, mais alto do que pretendia, e apontou o dedo diretamente
para ela.
— Sim! A culpa é de Deus! — A
acusação pairou no ar enquanto o martelo de juiz batia em seu coração.
— Então — disse ela em tom
definitivo —, se você pode julgar Deus com tanta facilidade, certamente
pode julgar o mundo. — Sua voz não expressava emoção. — Você deve
escolher dois de seus filhos para passar à eternidade no novo Céu e na
nova Terra de Deus, mas apenas dois.
— O quê? — explodiu ele,
incrédulo.
— E você deve escolher três
filhos para passar a eternidade no inferno.
Mack não podia acreditar no
que estava ouvindo e começou a entrar em pânico.
— Mackenzie. — Agora a voz
dela veio tão calma e maravilhosa quanto na primeira vez em que ele a
havia escutado. — Só estou lhe pedindo para fazer uma coisa que
você acredita que Deus faz. Ele conhece todas as pessoas já concebidas e
muito mais profunda e claramente do que você jamais conhecerá seus filhos.
Ele ama cada um segundo o que conhece do ser desse filho ou dessa filha.
Você acredita que ele irá condenar a maioria a uma eternidade de tormento,
para longe de Sua presença e de Seu amor. Não é verdade?
— Acho que sim. Simplesmente
nunca pensei na coisa desse modo. — Ele tropeçava nas palavras, chocado. — Simplesmente
achei que, de algum modo, Deus poderia fazer isso. Falar sobre o inferno
era uma espécie de conversa abstrata e não sobre alguém de quem eu
realmente... — Mack hesitou — ... e não sobre alguém de quem eu realmente
gostasse.
— Então você acha que Deus
faz isso com facilidade, mas você não? Ande, Mackenzie. Quais de seus cinco
filhos você condenará ao inferno? Katie é a que está em maior conflito com
você agora. Ela o trata mal e lhe disse coisas dolorosas. Talvez ela seja
a primeira escolha, a mais lógica. Que tal ela? Você é o juiz, Mackenzie,
e deve escolher.
— Não quero ser juiz — disse
ele, levantando-se. A mente de Mack disparava. Isso não podia ser real.
Como Deus seria capaz de pedir que ele escolhesse entre os próprios filhos?
Era absolutamente impossível
condenar Katie ou qualquer um dos outros a uma eternidade no inferno
simplesmente porque ela havia pecado contra ele. Mesmo que Katie, Josh,
Jon ou Tyler cometessem algum crime hediondo, ele não faria isso.
Não podia! Para ele, isso não tinha relação com o desempenho dos filhos.
Tinha a ver com seu amor por eles.
— Não posso fazer isso —
disse baixinho.
— Você deve.
— Não posso fazer isso —
disse mais alto e veemente.
— Você deve — repetiu ela,
com a voz mais suave.
— Eu... não... vou... fazer...
isso! — gritou Mack, com o sangue fervendo por dentro.
— Você deve — sussurrou ela.
— Não posso. Não posso. Não
vou! — gritou ele, e agora as palavras e emoções saíram num jorro. A
mulher simplesmente ficou parada, esperando. Por fim ele a encarou, implorando
com os olhos. — Eu não posso ir no lugar deles? Se vocês precisam de
alguém para torturar por toda a eternidade, eu vou no lugar deles. Pode
ser? Eu poderia fazer isso? — Caiu aos pés dela, chorando e implorando. —
Por favor, deixe-me ir no lugar dos meus filhos, por favor, eu ficaria
feliz em... Por favor, estou implorando. Por favor... Por favor...
— Mackenzie, Mackenzie —
sussurrou a mulher, e suas palavras vieram como um jato de água fria num
dia de calor brutal. Suas mãos tocaram gentilmente o rosto dele
enquanto ela o punha de pé. Olhando-a através de lágrimas turvas, ele pôde
ver que o sorriso da mulher era radiante. — Agora você está falando como
Jesus. Você julgou bem, Mackenzie. Estou orgulhosa!
— Mas eu não julguei nada —
disse Mack, confuso.
— Ah, julgou sim. Você julgou
que eles são merecedores de amor, mesmo que isso lhe custe tudo. É assim
que Jesus ama.
Quando Mack ouviu as
palavras, pensou em seu novo amigo esperando junto do lago.
— E agora você conhece o
coração de Papai — acrescentou ela —, que ama todos os filhos com
perfeição.
No mesmo instante a imagem de
Missy chamejou em sua mente e ele ficou tenso. Sem pensar, sentou-se de
novo na cadeira.
— O que aconteceu, Mackenzie?
— perguntou ela.
Ele viu que não adiantaria
esconder.
— Entendo o amor de Jesus,
mas Deus é outra história. Não acho que os dois sejam iguais, de modo
nenhum.
— Você não gostou do tempo
que passou com Papai? — perguntou ela, surpresa.
— Não, eu amo Papai, quem
quer que ela seja. Ela é incrível, mas não é nem um pouco como o Deus que
eu conheço.
— Talvez sua idéia de Deus
esteja errada.
— Talvez. Simplesmente não
vejo como Deus pudesse amar Missy com perfeição.
— Então o julgamento
continua? — disse ela com tristeza na voz.
Isso fez Mack parar, mas
apenas por um momento.
— O que eu deveria pensar?
Simplesmente não entendo como Deus poderia amar Missy e deixar que ela
passasse por aquele horror. Era uma menininha inocente. Não fez nada para
merecer aquilo.
— Eu sei.
Mack prosseguiu:
— Deus usou-a para me
castigar pelo que eu fiz com o meu pai? Isso não é justo. Ela não merecia.
Nan não merecia. — Lágrimas escorreram pelo rosto dele. — Eu
poderia merecer, mas elas, não.
— É esse o seu Deus,
Mackenzie? Não é de espantar que você esteja afogado na tristeza. Papai não é assim,
Mackenzie. Ele não está castigando você, nem Missy, nem Nan. Isso não foi
feito por ele.
— Mas ele não impediu.
— Não, não impediu. Ele não
impede um monte de coisas que lhe causam dor. O mundo de vocês está
seriamente deturpado. Vocês exigiram a independência e agora têm raiva
daquele que os amou o bastante para lhes dar o mundo. Nada é como deveria
ser, como Papai deseja que seja e como será um dia. Neste momento seu
mundo está perdido na escuridão e no caos, e coisas horríveis acontecem
com aqueles de quem ele gosta especialmente.
— Então por que ele não faz
algo a respeito?
— Ele já fez...
— Quer dizer, o que Jesus
fez?
— Você não viu os ferimentos
em Papai também?
— Não entendi os ferimentos.
Como ele pôde...
— Por amor. Ele escolheu o
caminho da cruz, onde a misericórdia triunfa sobre a justiça por causa do
amor. Você preferiria que ele tivesse escolhido a justiça para todo mundo?
Você quer justiça, "Meritíssimo Juiz"? — Ela sorriu ao dizer isso.
— Não, não quero — ele
respondeu, baixando a cabeça. — Não para mim e não para meus filhos.
Ela esperou.
— Mas ainda não entendo por
que Missy teve de morrer.
— Ela não teve, Mackenzie.
Isso não foi nenhum plano de Papai. Papai nunca precisou do mal para
realizar seus bons propósitos. Foram vocês, humanos, que abraçaram o mal,
e Papai respondeu com bondade. O que aconteceu com Missy foi trabalho do
mal e ninguém no seu mundo está imune a ele.
— Mas dói demais. Deve haver
um modo melhor.
— Há. Você simplesmente não
consegue ver agora. Retorne de sua independência, Mackenzie. Desista de
ser juiz de Papai e conheça-o como ele é. Então, no meio de sua dor, você
poderá abraçar o amor dele, em vez de castigá-lo com sua percepção
egocêntrica de como você acha que o universo deveria ser. Papai se arrastou
para dentro de seu mundo para estar com vocês, para estar com Missy.
Mack se levantou da cadeira.
— Não quero mais ser juiz.
Realmente quero confiar em Papai. — Sem que Mack notasse, a sala se
iluminou de novo enquanto ele se movia ao redor da mesa em direção à cadeira
simples onde tudo havia começado. — Mas vou precisar de ajuda.
Ela aproximou-se dele e o
abraçou.
— Agora isso parece o início
da viagem para casa, Mackenzie. Parece mesmo.
O silêncio da caverna foi
subitamente rompido pelo som de risos de crianças. Parecia vir de uma das
paredes que agora Mack podia ver claramente à medida que a sala continuava
a clarear. Enquanto olhava naquela direção, a superfície da pedra foi
ficando cada vez mais translúcida e a luz do dia penetrou na caverna. Espantado,
Mack olhou pela névoa e finalmente conseguiu vislumbrar as formas vagas de
crianças brincando à distância.
— O som parece ser dos meus
filhos! — exclamou perplexo. Enquanto ia em direção à parede, a névoa se
dividiu, como se alguém tivesse aberto uma cortina, e ele estava
inesperadamente olhando para uma campina, na direção do lago. Na sua frente
estava o pano de fundo das montanhas nevadas, perfeitas em sua majestade,
vestidas com florestas densas. E, aninhada ao pé, a cabana onde ele sabia
que Papai e Sarayu estariam à sua espera. Um riacho largo surgia bem à sua
frente e desaguava no lago junto de campos de flores. Os sons de pássaros
estavam em toda parte e o perfume doce do verão pairava intenso no ar.
Tudo isso Mack viu, ouviu e
cheirou num instante, mas então seu olhar foi atraído para o grupo
brincando perto do lugar onde o rio desaguava no lago, a menos de 50 metros dali.
Viu seus filhos: Jon, Tyler, Josh e Kate. Mas espere! Havia mais alguém!
Ofegante, tentou focalizar
melhor. Moveu-se na direção deles, mas foi pressionado contra uma força
que não via, como se a parede de pedra ainda estivesse ali à sua
frente, invisível. Então ficou claro.
— Missy!
Lá estava ela, chutando a
água com os pés descalços. Como se tivesse escutado, Missy se separou do
grupo e veio correndo pela trilha que terminava diretamente diante dele.
— Ah, meu Deus! Missy! —
gritou Mack e tentou avançar através do véu que os separava. Para sua
consternação, bateu contra a força que não lhe permitia chegar mais perto,
como se algum magnetismo aumentasse em oposição ao seu esforço, mandando-o de
volta para a sala.
— Ela não pode ouvi-lo.
Mack não se importava.
— Missy! — gritou. Ela estava
tão perto! A lembrança que estivera se esforçando tanto para não perder,
mas que sentia lentamente se esvair agora, saltou de volta. Procurou algum
tipo de maçaneta, como se pudesse abrir alguma coisa e encontrar um modo de
chegar à filha. Mas não havia nada.
Enquanto isso, Missy havia
chegado e estava parada bem diante dele. O olhar dela se fixava em algo no
meio, maior e obviamente visível para ela, mas não para ele.
Finalmente Mack parou de
lutar contra o campo de força e virou-se para a mulher.
— Ela pode me ver? Ela sabe
que estou aqui? — perguntou desesperado.
— Ela sabe que você está
aqui, mas não pode vê-lo. Do lado onde se encontra, Missy está olhando
para a linda cachoeira e nada mais. Porém sabe que você está atrás dela.
— Cachoeiras! — exclamou
Mack, rindo sozinho. — Ela adora cachoeiras! — Agora Mack se concentrou na
filha, tentando memorizar de novo cada detalhe de sua expressão, do cabelo
e das mãos. Enquanto ele fazia isso, o rosto de Missy se abriu num
sorriso enorme, com as covinhas se destacando. Em câmara lenta, ele pôde
ver sua boca falando sem som:
— Está tudo bem, eu... — e
ela fez sinais acompanhando as palavras — ... te amo.
Era demais e Mack chorou de
alegria. Mesmo assim não conseguia parar de olhá-la, observando-a através
de sua cachoeira de lágrimas. Estar tão perto assim era doloroso, vê-la
ali, com aquele jeito tão característico de Missy.
— Ela está realmente bem, não
está?
— Mais do que você imagina.
Esta vida é apenas a ante-sala para uma realidade maior que virá. Ninguém
realiza plenamente seu próprio potencial no seu mundo. É apenas um
preparativo que Papai tinha em mente o tempo todo.
— Posso ir até ela? Talvez só
um abraço e um beijo? — implorou baixinho.
— Não. É assim que ela
queria.
— Ela queria assim? — Mack
ficou confuso.
— É. A nossa Missy é uma
criança muito sábia. Gosto especialmente dela.
— Tem certeza de que ela sabe
que estou aqui?
— Sim, tenho certeza —
garantiu a mulher. — Ela estava muito empolgada esperando este dia para
brincar com os irmãos e a irmã e estar perto de você. Ela gostaria que a
mãe também estivesse aqui, mas isso terá de esperar outra ocasião.
Mack se virou para a mulher.
— Meus outros filhos estão
realmente aqui?
— Estão e não estão. Só Missy
está realmente aqui. Os outros estão sonhando e cada um terá uma vaga
lembrança, alguns com mais detalhes do que outros. Este é um momento muito
pacífico de sono para cada um, menos para Kate. Este sonho não será fácil
para ela. Mas Missy está totalmente acordada.
Mack ficou olhando cada
movimento feito por sua preciosa Missy.
— Ela me perdoou? —
perguntou.
— Perdoou o quê?
— Eu falhei com ela —
sussurrou ele.
— Seria da natureza dela
perdoar se houvesse algo a perdoar, mas não há.
— Mas eu não impedi que ele a
levasse. Ele a levou enquanto eu não estava prestando atenção... — sua voz
ficou no ar.
— Se você se lembra, você
estava salvando seu filho. Só você, em todo o universo, acredita que tem
alguma culpa. Missy não acredita nisso, nem Nan, nem Papai. Talvez seja
hora de abandonar essa mentira. E, Mackenzie, mesmo que você fosse culpado,
o amor dela é muito mais forte do que a sua falha jamais poderia ser.
Nesse momento alguém chamou o
nome de Missy e Mack reconheceu a voz. A menina gritou de prazer e começou
a correr em direção aos outros. De repente parou e correu de volta para o
pai. Fez o gesto de um grande abraço e, com os olhos fechados, simulou
um grande beijo. De trás da barreira ele a abraçou também. Por um instante
ela ficou totalmente imóvel, como se soubesse que estava lhe dando um
presente. Depois acenou, virou-se e correu para os outros.
E agora Mack pôde ouvir
claramente a voz que havia chamado sua Missy. Era Jesus brincando no meio
de seus filhos. Sem hesitar, Missy pulou no colo dele. Ele girou-a no ar
duas vezes antes de colocá-la de volta no chão, depois todo mundo riu e
saíram procurando pedras lisas para jogar ricocheteando na superfície do
lago. Os sons de exuberante alegria eram uma sinfonia nos ouvidos de Mack
e suas lágrimas correram livremente.
De súbito, sem aviso, a água
veio rugindo de cima, bem à sua frente, e obliterou toda a visão e as
vozes de seus filhos. Instintivamente ele saltou para trás. Então percebeu
que as paredes da caverna haviam se dissolvido ao redor e ele estava numa
gruta atrás da cachoeira.
Mack sentiu a mão da mulher
nos ombros.
— Acabou? — perguntou ele.
— Por enquanto — respondeu
ela com ternura. — Mackenzie, julgar não é destruir, mas consertar as
coisas.
Mack sorriu. — Não estou mais
me sentindo travado. — Ela o guiou gentilmente para a lateral da
cachoeira, até que ele pôde ver de novo — Jesus na margem do lago ainda
jogando pedras.
— Acho que alguém está esperando
você. — As mãos dela apertaram seus ombros com suavidade, depois ela o
soltou e, sem olhar, Mack soube que ela fora embora. Ele passou cuidadosamente
sobre pedras escorregadias e rochas molhadas até encontrar um caminho pela
borda da cachoeira.
Atravessou a névoa
revigorante da água que despencava e retornou à luz do dia.
Exausto, mas profundamente
realizado, Mack parou e fechou os olhos por um momento, tentando gravar
indelevelmente no pensamento os detalhes da presença de Missy, esperando
que nos dias futuros pudesse trazer de volta cada momento com ela, cada
nuance e cada movimento.
E subitamente sentiu muita,
muita falta de Nan.
12. Na barriga das feras
Os homens jamais fazem o
mal tão completamente e com tanta alegria como quando o fazem a partir de uma
convicção religiosa.
— Blaise Pascal
Assim que abolimos
Deus, o governo se torna Deus.
— G. K . Chesterton
Enquanto seguia pela trilha
em direção ao lago, Mack percebeu subitamente que faltava alguma coisa.
Sua companheira constante, a Grande Tristeza, havia sumido. Era como
se tivesse sido lavada na névoa da cachoeira enquanto ele emergia por
baixo da cortina d'água. A ausência era estranha, talvez até
desconfortável. Nos anos anteriores ela havia definido para ele o que era
um estado normal, mas agora tinha desaparecido inesperadamente. "O normal
é um mito", pensou.
A Grande Tristeza não faria
mais parte de sua identidade. Agora sabia que Missy não se importaria se
ele se recusasse a usá-la. Na verdade, sua filha não iria querer que o pai
se envolvesse naquela mortalha e certamente sofreria se ele fizesse isso.
Tentou imaginar quem ele passaria a ser, agora que estava se soltando de
tudo aquilo — começar cada dia sem a culpa e o desespero que haviam sugado
de todo as cores da vida.
Enquanto entrava na clareira,
viu Jesus esperando, ainda jogando pedras.
— Ei, acho que o máximo que
consegui foram 13 ricochetes — disse ele rindo e vindo ao encontro de
Mack. — Mas Tyler conseguiu três a mais do que eu, e Josh jogou uma
pedra que ricocheteou para tão longe que a perdemos de vista. — Enquanto
se abraçavam, Jesus acrescentou: — Você tem filhos especiais, Mack. Você e
Nan os amaram muito bem. Kate está lutando, como você sabe, mas ainda não
terminamos.
A tranqüilidade e a
intimidade com que Jesus falava de seus filhos tocou-o profundamente.
— Então eles foram embora?
Jesus desfez o abraço e
assentiu.
— É, de volta para os sonhos,
menos Missy, claro.
— Ela...? — começou Mack.
— Ela ficou felicíssima por
estar tão perto de você e ficou empolgada em saber que você está melhor.
Mack lutou para manter a
compostura. Jesus entendeu e mudou de assunto.
— Como foi o tempo que você
passou com Sophia?
— Sophia? Ah, então é ela! —
exclamou Mack. E uma expressão perplexa surgiu em seu rosto. — Mas quer
dizer que vocês são quatro? Ela é Deus também?
Jesus riu.
— Não, Mack. Somos apenas
três. Sophia é uma personificação da sabedoria de Papai.
— Ah, como nos Provérbios,
onde a Sabedoria é representada como uma mulher chamando nas ruas,
tentando encontrar alguém que a escute?
— Ela mesma.
— Mas — Mack parou enquanto
se abaixava para desamarrar os cadarços dos sapatos — ela pareceu tão
real!
— Ah, ela é bastante real. — Em seguida Jesus olhou
ao redor, como se quisesse ver se alguém estava observando, e sussurrou: —
Ela é parte do mistério que cerca Sarayu.
— Adoro Sarayu — exclamou
Mack enquanto se levantava, meio surpreso com sua própria transparência.
— Eu também! — declarou Jesus
com ênfase. Os dois voltaram à margem e ficaram olhando em silêncio para o
outro lado do lago.
— Foi terrível e maravilhoso
o tempo que passei com Sophia. — Mack finalmente respondeu à pergunta que
Jesus havia feito. Subitamente percebeu que o sol ainda estava alto no
céu. — Exatamente quanto tempo estive lá?
— Menos de 15 minutos, de
modo que não foi muito. — Diante do olhar de perplexidade de Mack, Jesus
acrescentou: — O tempo passado com Sophia não é como o tempo normal.
— Hã — grunhiu Mack. — Duvido
que qualquer coisa com ela seja normal.
— Na verdade — Jesus começou
a falar mas parou para jogar uma última pedra ricocheteando na água —, com
ela tudo é normal e de uma simplicidade elegante. Como você está tão
perdido e independente, acaba achando que até a simplicidade dela
é profunda.
— Então eu sou complexo e ela
é simples. Uau! Meu mundo está mesmo de cabeça para baixo. — Mack já se
sentara num tronco e estava tirando os sapatos e as meias para
a caminhada. — Pode me dizer uma coisa? Estamos no meio do dia, e meus
filhos estiveram aqui em sonhos? Como isso funciona? Alguma coisa disso
tudo é real? Ou só estou sonhando também?
De novo Jesus riu.
— Não pergunte como tudo isso
funciona, Mack. São coisas de Sarayu. O tempo, como você sabe, não
representa fronteiras para Aquele que o criou. Você pode perguntar a
ela, se quiser.
— Não, acho que vou deixar
isso esperando. Só fiquei curioso. — Mack deu um risinho.
— Você perguntou se
"alguma coisa disso tudo é real". Muito mais do que você
pode imaginar. — Jesus parou um momento para captar toda a atenção de
Mack. — O melhor seria perguntar: "O que é real?"
— Estou começando a pensar
que não faço idéia.
— Tudo isso seria menos
"real" se estivesse dentro de um sonho?
— Acho que eu ficaria
desapontado.
— Por quê? Mack, há muito
mais coisas acontecendo aqui do que você tem condições de perceber.
Deixe-me garantir: tudo isso é real, muito mais real do que a vida que
você conhece.
Mack hesitou, mas depois
decidiu se arriscar e perguntou:
— Há uma coisa que ainda me
incomoda com relação a Missy.
Jesus veio e sentou-se no
tronco ao lado dele. Mack inclinou-se e pôs os cotovelos nos joelhos,
olhando para as pedrinhas perto dos pés. Por fim, disse:
— Eu fico pensando nela,
sozinha naquela picape, tão aterrorizada...
Jesus colocou a mão sobre o
ombro de Mack e o apertou. Falou gentilmente:
— Mack, ela jamais esteve
sozinha. Eu nunca a deixei. Nós não a deixamos sequer por um instante. Eu
não poderia abandoná-la, nem você, assim como não poderia abandonar a mim
mesmo.
— Ela sabia que você estava
lá?
— Sim, Mack, sabia. No
princípio, não. O medo era avassalador e ela estava em estado de choque.
Demorou horas para chegar do acampamento até aqui. Mas, quando Sarayu se
enrolou ao redor dela, Missy se acalmou. A viagem longa nos deu chance de
conversar.
Mack estava tentando
apreender tudo aquilo. Não se sentia mais capaz de falar.
— Missy podia ter apenas 6
anos, mas nós somos amigos. Nós conversamos. Ela não tinha idéia do que iria
acontecer. Na verdade, estava mais preocupada com você e com as outras
crianças, sabendo que vocês não poderiam encontrá-la. Ela rezou por vocês,
pela sua paz.
Mack chorou, lágrimas novas
rolando pelo rosto. Dessa vez não se importou. Jesus puxou-o gentilmente e
o abraçou.
— Mack, não creio que você
queira saber todos os detalhes. Tenho certeza de que eles não vão
ajudá-lo. Mas posso dizer que não houve um momento em que não estivéssemos
com ela. Missy conheceu minha paz, e você ficaria orgulhoso, porque ela
foi muito corajosa!
As lágrimas escorriam soltas,
mas Mack notava que agora era diferente. Não estava mais sozinho. Sem
qualquer constrangimento, chorou no ombro daquele homem que ele aprendera
a amar. A cada soluço, sua tensão ia se esvaindo, substituída por
um profundo sentimento de alívio. Por fim respirou fundo e soltou o ar
enquanto levantava a cabeça.
Então, sem dizer mais nenhuma
palavra, levantou-se, pendurou os sapatos no ombro e simplesmente entrou
na água. Ficou um pouco surpreso quando seu primeiro passo encontrou o
fundo do lago abaixo dos tornozelos, mas não se importou. Parou, enrolou
as pernas da calça acima dos joelhos e deu mais um passo na água gelada. A
água chegou até o meio das canelas e, no passo seguinte, logo abaixo dos
joelhos. Olhou para trás e viu Jesus parado na margem com os braços
cruzados diante do peito, olhando-o.
Mack virou-se e olhou para a
margem oposta. Não sabia por que dessa vez não tinha funcionado, mas
decidiu continuar tentando. Jesus estava ali, por isso ele não tinha
com que se preocupar. A perspectiva de nadar por um espaço longo e gelado
não era nada empolgante, porém Mack tinha certeza de que conseguiria atravessar
se fosse necessário.
Felizmente, quando deu o
próximo passo, em vez de afundar mais ainda, subiu um pouco e, a cada
passo seguinte, subiu mais, até estar de novo andando sobre a água.
Jesus se reuniu a ele e os dois continuaram em direção à cabana.
— Isso sempre funciona melhor
quando a gente faz junto, não acha? — perguntou Jesus, sorrindo.
— Estou vendo que ainda tenho
mais coisas para aprender. — Mack devolveu o sorriso.
Pouco importava que tivesse
de atravessar o lago a nado ou andar sobre a água, por mais maravilhoso
que isso fosse. O que importava era ter Jesus ao seu lado. Talvez
estivesse começando a confiar nele.
— Obrigado por estar comigo,
por falar comigo sobre Missy. Na verdade, não tenho falado sobre esse
assunto com ninguém. É uma história apavorante demais. Agora já não está
com a mesma força.
— A escuridão esconde o
verdadeiro tamanho dos medos, das mentiras e dos arrependimentos —
explicou Jesus. — A verdade é que eles são mais sombra do que realidade,
por isso parecem maiores no escuro. Quando a luz brilha nos lugares
onde eles vivem no seu interior, você começa a ver o que são realmente.
— Mas por que nós mantemos
toda essa porcaria lá dentro?
— Porque acreditamos que ela
está mais segura ali. E algumas vezes, quando você é uma criança tentando
sobreviver, ela fica realmente mais segura no seu interior. Depois
você cresce por fora, mas por dentro ainda é aquela criança na caverna
escura, rodeada por monstros, e, como se habituou, continua aumentando sua
coleção. Todos colecionamos coisas de valor, sabe?
Isso fez Mack sorrir. Sabia
que Jesus estava se referindo a algo que Sarayu havia dito sobre
colecionar lágrimas.
— Então como é que isso muda
para alguém que está perdido no escuro como eu?
— Na maioria das vezes, muito
devagar. Lembre-se, você não pode fazer isso sozinho. Algumas pessoas tentam
todo tipo de mecanismos de enfrentamento e de jogos mentais. Mas os monstros
continuam lá, só esperando a chance de sair.
— O que faço agora, então?
— O que já está fazendo,
Mack: aprendendo a viver sendo amado. Não é um conceito fácil para os
humanos. Você tinha dificuldade para compartilhar qualquer coisa. — Deu
um risinho e continuou: — Portanto, sim, o que desejamos é que você
"re-torne" para nós.
Então iremos fazer nossa casa
dentro de você e vamos compartilhar. A amizade é real e não meramente
imaginada. Nós fomos destinados a experimentar esta vida, a sua vida,
juntos, num diálogo, compartilhando a jornada. Você passa a compartilhar
nossa sabedoria e aprender a amar com nosso amor, e nós... ouvimos você
resmungar, se afligir, reclamar e...
Mack riu alto e empurrou
Jesus de lado.
— Pare! — gritou Jesus e se
imobilizou. A princípio Mack achou que poderia tê-lo ofendido, mas Jesus
estava olhando atentamente para a água. — Você viu? Olhe, aí vem de novo.
— O quê? — Mack chegou mais
perto e protegeu os olhos na tentativa de ver o que Jesus estava olhando.
— Olhe! Olhe! — falou Jesus,
meio que sussurrando. — É uma beleza! Deve ter uns 60 centímetros!
E então Mack viu uma enorme
truta do lago deslizando a apenas uns 50 ou 60 centímetros
abaixo da superfície, sem notar a agitação que estava provocando acima.
— Estive tentando pegá-la
durante semanas e aí ela vem, só para me provocar. — Ele riu.
Mack ficou olhando, pasmo,
enquanto Jesus começava a saltar para um lado e para outro, tentando
acompanhar o peixe. Finalmente desistiu e olhou para Mack, empolgado como
um menininho. — Não é fantástica? Provavelmente nunca vou conseguir pegá-la.
Mack ficou perplexo com
aquela cena.
— Jesus, por que simplesmente
não ordena que ela... não sei... pule no seu barco ou morda seu anzol?
Você não é o Senhor da Criação?
— Claro — disse Jesus,
abaixando-se e passando a mão sobre a água. — Mas qual seria a diversão,
hein? — Ele ergueu os olhos e riu.
Mack não sabia se ria ou
chorava. Percebia o quanto havia passado a amar aquele homem, aquele homem
que também era Deus.
Jesus se levantou de novo e
juntos continuaram andando para o cais. Mack se aventurou de novo:
— Se é que posso perguntar,
por que você não me falou sobre Missy antes? Por exemplo, ontem à noite,
ou há um ano, ou...
— Não pense que não tentamos.
Você já notou que, em sua dor, presume sempre o pior a meu respeito?
Estive falando com você durante longo tempo, mas hoje foi a primeira vez
que você pôde ouvir. Não pense que todas aquelas outras ocasiões foram
um desperdício. Como pequenas rachaduras na parede, uma de cada vez, mas
entrelaçadas, elas o prepararam para hoje. É preciso demorar um tempo
preparando o solo se quiser que ele acolha a semente.
— Não sei por que resistimos
a isso, por que resistimos tanto a você. Agora parece meio idiota.
— Tudo tem a ver com o
momento da graça, Mack. Se houvesse apenas um ser humano no universo, o
sentido de tempo seria bastante simples. Mas acrescente apenas mais um e,
bem, você conhece a história. Cada escolha cria ondulações ao longo do tempo e
dos relacionamentos, ricocheteando em outras escolhas. E, a partir do que
parece uma confusão enorme, Papai tece uma tapeçaria magnífica. Só Papai
pode resolver tudo isso e ela o faz com graça.
— Então acho que tudo que
posso fazer é segui-la — concluiu Mack.
— É, esse é o ponto. Agora
você está começando a entender o que significa ser realmente humano.
Chegaram à extremidade do
cais e Jesus saltou nele, virando-se para ajudar Mack. Juntos, sentaram-se
na beira e balançaram os pés descalços na água, olhando os efeitos do
vento na superfície do lago. Mack foi o primeiro a romper o silêncio.
— Eu estava vendo o céu
quando vi Missy? Era muito parecido com isso aqui.
— Bom, Mack, nosso destino
final não é a imagem do Céu que você tem na cabeça. Você sabe, a imagem de
portões adornados e ruas de ouro. O Céu é uma nova purificação do
universo, de modo que vai se parecer bastante com isso aqui.
— Então que história é essa
de portões adornados e ruas de ouro?
— Esta, irmão — começou
Jesus, deitando-se no cais e fechando os olhos por causa do calor e da
claridade do dia —, é uma imagem de mim e da mulher por quem
sou apaixonado.
Mack olhou para ver se ele
estava brincando, mas obviamente não estava.
— É uma imagem da minha
noiva, a Igreja: indivíduos que juntos formam uma cidade espiritual com um
rio vivo fluindo no meio e nas duas margens, árvores crescendo com frutos
que curam as feridas e os sofrimentos das nações. Essa cidade está sempre
aberta e cada portão que dá acesso a ela é feito de uma única pérola... —
Ele abriu um olho e olhou para Mack. — Isso sou eu! — Ele percebeu a
dúvida de Mack e explicou: — Pérolas, Mack. A única pedra preciosa feita
de dor, sofrimento e, finalmente, morte.
— Entendi. Você é a entrada,
mas... — Mack parou, procurando as palavras certas. — Você está falando
da Igreja como essa mulher por quem está apaixonado. Tenho quase certeza
de que não conheço essa Igreja. — Ele se virou ligeiramente para o outro lado.
— Não é certamente o lugar aonde eu vou aos domingos — disse mais para si
mesmo, sem saber se era seguro falar em voz alta.
— Mack, isso é porque você só
está vendo a instituição, que é um sistema feito pelo ser humano. Não foi
isso que eu vim construir. O que vejo são as pessoas e suas vidas,
uma comunidade que vive e respira, feita de todos que me amam, e não de
prédios, regras e programas.
Mack ficou meio abalado
ouvindo Jesus falar de "igreja" desse modo, mas isso não chegou
a surpreendê-lo. De fato, foi um alívio.
— Então como posso fazer
parte dessa Igreja? Dessa mulher pela qual você parece estar tão
apaixonado?
— É simples, Mack. Tudo só
tem a ver com os relacionamentos e com o fato de compartilhar a vida. É
exatamente o que estamos fazendo agora, simplesmente isso, sendo abertos e
disponíveis um para o outro. Minha Igreja tem a ver com as pessoas e
a vida tem a ver com os relacionamentos. Você pode construí-la. É o meu
trabalho e, na verdade, sou bastante bom nisso — disse Jesus com um
risinho.
Para Mack essas palavras
foram como um sopro de ar puro! Simples. Não um monte de rituais
exaustivos e uma longa lista de exigências, nada de reuniões intermináveis
com pessoas desconhecidas. Simplesmente compartilhar a vida.
— Mas espere... — Mack tinha
um monte de perguntas aflorando à sua mente. Talvez tivesse entendido mal.
Parecia simples demais. Por isso pensou duas vezes antes de mexer com o
que estava começando a entender. Fazer seu monte confuso de perguntas
nesse momento seria como jogar um bocado de lama num pequeno lago de águas
límpidas. — Não faz mal — foi tudo que disse.
— Mack, você não precisa
entender tudo. Simplesmente esteja comigo.
Depois de um momento ele
decidiu se juntar a Jesus e deitou-se de costas ao lado dele, abrigando os
olhos do sol para espiar as nuvens que passavam no início da tarde.
— Bom, para ser honesto —
admitiu —, não estou desapontado, porque nunca me senti atraído pela
"rua de ouro". Sempre achei meio chato. Maravilhoso mesmo é estar
aqui com você.
Um silêncio baixou enquanto
Mack absorvia o momento. Podia ouvir o sussurro do vento acariciando as
árvores e o riso do riacho ali perto derramando-se no lago. O dia estava
majestoso e o cenário era incrível.
— Realmente desejo entender.
Quer dizer, acho que o modo como vocês são é muito diferente de todo o
negócio religioso em que fui criado e com o qual me acostumei.
— Por mais bem-intencionada
que seja, você sabe que a máquina religiosa é capaz de engolir as pessoas!
— disse Jesus, num tom meio cortante. — Uma quantidade enorme das coisas
que são feitas em meu nome não têm nada a ver comigo. E freqüentemente
são muito contrárias aos meus propósitos.
— Você não gosta muito de
religião e de instituições? — perguntou Mack, sem saber se estava fazendo
uma pergunta ou uma afirmação.
— Eu não crio instituições.
Nunca criei, nunca criarei.
— E a instituição do
casamento?
— O casamento não é uma
instituição. É um relacionamento. — Jesus fez uma pausa e retomou, com a
voz firme e paciente: — Como eu disse, não crio instituições. Essa é
uma ocupação dos que querem brincar de Deus. Portanto, não, não gosto
muito de religiões e também não gosto de política nem de economia. — A
expressão de Jesus ficou notavelmente sombria. — E por que deveria gostar?
É a trindade de terrores criada pelo ser humano que assola a Terra e
engana aqueles de quem eu gosto. Quantos tormentos e ansiedades
relacionados a uma dessas três coisas as pessoas enfrentam!
Mack hesitou. Não sabia o que
dizer. Tudo parecia um pouco excessivo. Notando que os olhos de Mack estavam
ficando vidrados, Jesus baixou o tom.
— Falando de modo simples,
religião, política e economia são ferramentas terríveis que muitos usam
para sustentar suas ilusões de segurança e controle. As pessoas têm
medo da incerteza, do futuro. Essas instituições, essas estruturas e
ideologias são um esforço inútil de criar algum sentimento de certeza e
segurança onde nada disso existe. É tudo falso! Os sistemas não podem
oferecer segurança, só eu posso.
— Uau! — Era tudo que Mack
conseguia pensar. A paisagem que ele e praticamente todo mundo que ele
conhecia haviam buscado para administrar e orientar a vida estava
sendo reduzida a pouco mais do que entulho. — Então... — Mack ainda estava
processando o que ouvira, sem conseguir grande coisa. — Então? —
Transformou a palavra numa pergunta.
— Eu vim lhes dar a vida na
totalidade. Minha vida. — Mack ainda estava se esforçando para entender. —
A simplicidade e a pureza de desfrutar de uma amizade crescente.
— Ah, entendi!
— Se você tentar viver isso
sem mim, sem o diálogo constante que estabelecemos ao compartilhar esta
jornada juntos, será como tentar andar sobre a água sozinho. Você
não pode! E quando tenta, por mais bem-intencionado que seja, vai afundar.
— Apesar de saber a resposta, Jesus perguntou: — Você já tentou salvar
alguém que estivesse se afogando?
Os músculos de Mack se
retesaram instantaneamente. Ele não gostava de se lembrar de Josh e da
canoa, e um sentimento de pânico subitamente jorrou da lembrança.
— É extremamente difícil
resgatar alguém, a não ser que a pessoa esteja disposta a confiar em você.
— É, sem dúvida.
— É só isso que eu lhe peço.
Quando você começar a afundar, deixe-me resgatá-lo.
Parecia um pedido simples,
mas Mack estava acostumado a ser o salva-vidas e não o afogado.
— Jesus, não sei bem como...
— Deixe-me mostrar. Basta
continuar me dando o pouco que você tem e juntos vamos vê-lo crescer.
Mack começou a calçar as
meias e os sapatos.
— Sentado aqui com você,
neste momento, não parece tão difícil. Mas quando penso na minha vida
normal, em casa, não sei como manter o que você sugere. Estou preso
na mesma necessidade de controle que todo mundo tem. Política, economia,
sistemas sociais, contas, família, compromissos... é bastante esmagador.
Não sei como mudar tudo isso.
— Ninguém está pedindo que
mude! — disse Jesus com ternura. — Esta é uma tarefa para Sarayu e ela
sabe como fazer sem agredir ninguém. O importante é saber que tudo é
um processo e não um acontecimento. Só quero que você confie em mim o
pouco que puder e que cresça no amor pelas pessoas ao seu redor com o
mesmo amor que compartilho com você. Não cabe a você mudá-las nem
convencê-las. Você está livre para amar sem qualquer obrigação.
— É isso que quero aprender.
— É mesmo. — Jesus piscou.
Jesus se levantou,
espreguiçou-se e Mack o imitou.
— Quantas mentiras me
contaram! — admitiu ele. Jesus olhou para ele, puxou-o e o abraçou.
— Eu sei, Mack, a mim também.
Simplesmente não acreditei nelas. Juntos, começaram a andar pelo cais.
Quando se aproximavam da margem voltaram a diminuir o passo. Jesus colocou
a mão no ombro de Mack e virou-o gentilmente, até ficarem cara a cara.
— Mack, o sistema do mundo é
o que é. As instituições, as ideologias e todos os esforços vãos e inúteis
da humanidade estão em toda parte e é impossível deixar de interagir
com tudo isso. Mas eu posso lhe dar liberdade para superar qualquer
sistema de poder em que você se encontre, seja ele religioso, econômico,
social ou político. Você terá uma liberdade cada vez maior de estar dentro
ou fora de todos os tipos de sistemas e de se mover livremente entre eles.
Juntos, você e eu podemos estar dentro do sistema e não fazer parte dele.
— Mas tanta gente de quem eu
gosto parece fazer parte do sistema! — Mack estava pensando nos amigos,
nas pessoas da igreja que haviam expressado amor por ele e por
sua família. Sabia que elas amavam Jesus, mas que também eram totalmente
vendidas para a atividade religiosa e o patriotismo.
— Mack, eu as amo. E você
comete um erro julgando-as. Devemos encontrar modos de amar e servir os
que estão dentro do sistema, não acha? Lembre-se, as pessoas que
me conhecem são aquelas que estão livres para viver e amar sem qualquer
compromisso.
— É isso que significa ser
cristão? — Achou-se meio idiota ao dizer isso, mas era como se estivesse
tentando resumir tudo na cabeça.
— Quem disse alguma coisa
sobre ser cristão? Eu não sou cristão.
A idéia pareceu estranha e
inesperada para Mack e ele não pôde evitar uma risada.
— Não, acho que não é.
Chegaram à porta da
carpintaria. De novo Jesus parou.
— Os que me amam estão em
todos os sistemas que existem. São budistas ou mórmons, batistas ou muçulmanos,
democratas, republicanos e muitos que não votam nem fazem parte de qualquer
instituição religiosa. Tenho seguidores que foram assassinos e muitos que
eram hipócritas. Há banqueiros, jogadores, americanos e iraquianos, judeus
e palestinos. Não tenho desejo de torná-los cristãos, mas quero me juntar
a eles em seu processo para se transformarem em filhos e filhas do Papai,
em irmãos e irmãs, em meus amados.
— Isso significa que todas as
estradas levam a você?
— De jeito nenhum — sorriu
Jesus enquanto estendia a mão para a porta da oficina. — A maioria das
estradas não leva a lugar nenhum. O que isso significa é que eu viajarei
por qualquer estrada para encontrar vocês. — Fez uma pausa. — Mack, tenho
algumas coisas para terminar na carpintaria; encontro você mais tarde.
— Certo. O que quer que eu
faça?
— O que quiser, Mack, a tarde
é sua. — Jesus deu-lhe um tapa no ombro e riu. — Uma última coisa:
lembra-se de antes, quando me agradeceu por tê-lo deixado ver Missy?
Foi idéia de Papai. — Depois de dizer isso ele se virou e acenou por cima
do ombro enquanto entrava na oficina.
Mack soube instantaneamente o
que queria fazer e foi para a cabana, em busca de Papai.
13. Um encontro de corações
A falsidade tem uma
infinidade de combinações, mas a verdade só tem um modo de ser.
— Jean-Jacques Rousseau
Enquanto se aproximava da
cabana, Mack sentiu um cheiro delicioso que se desprendia de alguma coisa
no forno. Talvez tivesse se passado apenas uma hora desde o almoço, mas
era como se ele não tivesse comido havia horas. O aroma da comida o
conduziu até a cozinha. Mas quando chegou à porta dos fundos ficou
surpreso e desapontado ao ver que o local estava vazio.
— Tem alguém aí? — chamou.
— Estou na varanda, Mack — a
voz de Papai veio através da janela aberta. — Pegue alguma coisa para
beber e venha para cá.
Mack se serviu de um pouco de
café e saiu para a varanda da frente. Papai estava reclinada numa velha
cadeira, de olhos fechados, absorvendo o sol.
— O que é isso? Deus tem
tempo de pegar um solzinho? Não tem nada melhor para fazer nesta tarde?
— Você não faz idéia do que
estou fazendo neste momento.
Mack se encaminhou para outra
cadeira do lado oposto e, enquanto ele se sentava, Papai abriu um dos
olhos. Sobre uma mesinha entre os dois havia uma bandeja cheia de bolos
de aparência maravilhosa, manteiga fresca e vários tipos de geléia.
— Uau, o cheiro é fantástico!
— exclamou ele.
— Pode mergulhar de cabeça. É
uma receita que peguei da sua bisavó. — Ela riu.
Mack mordeu um dos bolinhos.
Ainda estava quente e praticamente derreteu na boca.
— Uau! Isso é bom! Obrigado!
— Bom, você terá de agradecer
à sua bisavó quando a vir.
— Espero que não seja muito
em breve — disse Mack entre duas mordidas.
— Você não gostaria de saber?
— perguntou Papai com uma piscadela brincalhona e voltando a fechar os
olhos.
Enquanto comia outro bolinho,
Mack juntou coragem para abrir o coração.
— Papai? — perguntou e, pela
primeira vez, chamar Deus de Papai não pareceu estranho.
— Sim, Mack? — respondeu ela,
abrindo os olhos e sorrindo com prazer.
— Eu fui muito duro com você.
— Humm, Sophia deve tê-lo
afetado.
— Nem fale! Eu não fazia
idéia de que estava julgando você. Foi terrivelmente arrogante.
— Porque você estava mesmo —
respondeu Papai com um sorriso.
— Sinto muito. Eu realmente
não fazia idéia... — Mack balançou a cabeça, triste.
— Mas agora isso está no
passado, que é o lugar onde deve estar. Não quero que fique triste com
isso, Mack. Só quero que possamos crescer juntos.
— Também quero — disse Mack
pegando outro bolinho. — Não vai comer nenhum?
— Não, vá em frente. Você sabe
como é, a gente vai provando uma coisa e outra e acaba usando todo o
apetite. Aproveite. — Empurrou a bandeja na direção dele.
Mack pegou mais um bolinho e
recostou-se para saboreá-lo.
— Jesus disse que foi você
quem me deu um tempo com Missy esta tarde. Não sei como agradecer!
— Ah, de nada, querido. Isso
também me deu uma grande alegria! Eu estava tão ansiosa para colocar vocês
dois juntos que mal conseguia esperar.
— Gostaria tanto que Nan
estivesse aqui!
— Teria sido perfeito! —
concordou Papai, empolgada.
Ficaram em silêncio por
alguns instantes.
— Missy não é especial? — Ela
balançou a cabeça sorrindo. — Minha nossa, gosto especialmente daquela
menina.
— Eu também! — Mack deu um
sorriso largo e pensou na sua princesa atrás da cachoeira.
— Princesa? Cachoeira? Espere
um minuto! — Papai ficou olhando enquanto as peças se encaixavam.
— Obviamente você conhece o
fascínio da minha filha por cachoeiras e pela lenda da princesa Multnomah.
Papai assentiu.
— É disso que se trata? Ela
teve de morrer para que você me mudasse?
— Espere aí, Mack. — Papai se
inclinou. — Não é assim que eu faço as coisas.
— Mas ela adorava tanto
aquela história!
— Claro que sim. Por isso ela
foi capaz de entender o que Jesus fez por ela e por toda a raça humana. As
histórias sobre uma pessoa disposta a trocar sua vida pela de outra são um fio
de ouro em seu mundo e revelam tanto suas necessidades quanto o meu coração.
— Mas se ela não tivesse
morrido eu não estaria aqui agora...
— Mack, eu crio um bem
incrível a partir de tragédias indescritíveis, mas isso não significa que
as orquestre. Nunca pense que o fato de eu usar algo para um bem maior
significa que eu o provoquei ou que preciso dele para realizar meus
propósitos. Essa crença só vai levá-lo a idéias falsas a meu respeito. A
graça não depende da existência do sofrimento, mas onde há sofrimento você
encontrará a graça de inúmeras maneiras.
— Na verdade, isso é um
alívio. Eu não suportaria pensar que minha dor poderia ter cortado a vida
dela.
— Ela não foi seu sacrifício,
Mack. Ela é e sempre será sua alegria. Este é um propósito suficiente para
Missy.
Mack se recostou de novo na
cadeira, examinando a vista da varanda.
— Estou me sentindo
preenchido!
— Bom, você comeu quase todos
os bolinhos.
— Não é isso — ele riu —, e
você sabe. O mundo simplesmente parece mil vezes mais luminoso e estou me
sentindo mil vezes mais leve.
— E está, Mack! Não é fácil
ser o juiz de todo o mundo.
O sorriso de Papai
tranqüilizou Mack, que se sentia pisando em terreno seguro.
— Ou julgar você. Eu estava
numa tremenda confusão... pior do que pensava. Havia me enganado
totalmente com relação a quem você é na minha vida.
— Não totalmente, Mack. Nós
tivemos alguns momentos maravilhosos também.
— Mas sempre gostei mais de
Jesus do que de você. Ele parecia tão bondoso e você tão...
— Má? É triste, não é? Jesus
veio para mostrar como eu sou, e a maioria só acredita nisso com relação a
ele. Ainda acham que fazemos o gênero "policial bom/policial
mau", especialmente as pessoas religiosas. Quando querem que os
outros façam o que elas acham certo, precisam de um Deus severo. Quando
precisam de perdão, correm para Jesus.
— É isso mesmo — concordou Mack.
— Mas nós estávamos nele. Ele
refletia exatamente o meu coração. Eu amo vocês e os convido a me amarem.
— Mas por que eu? Quer dizer,
por que Mackenzie Allen Phillips? Por que você ama alguém tão ferrado?
Depois de todas as coisas que eu senti em relação a você e de todas as
acusações que fiz, por que você se incomodaria em vir ao meu encontro?
— Porque é isso que o amor
faz — respondeu Papai. — Lembre-se, Mackenzie, eu não fico pensando nas
escolhas que você fará. Eu já sei. Vamos imaginar, por exemplo, que estou
tentando ensinar você a não se esconder dentro de mentiras — ela piscou. —
E digamos que eu sei que você vai ter que passar por 47 situações antes de
me ouvir com clareza suficiente para concordar comigo e mudar. Então,
quando na primeira vez você não me ouve, não fico frustrada nem
desapontada, fico empolgada. Só faltam 46 vezes. E essa primeira vez será
um tijolo para construir uma ponte de cura que um dia, que hoje, você
atravessará.
— Certo, agora estou me
sentindo culpado — admitiu ele.
— Sério, Mackenzie, isso não
tem nada a ver com culpa. A culpa jamais vai ajudá-lo a encontrar a
liberdade em mim. O
máximo de que ela é capaz é fazer você se esforçar mais para se ajustar a
alguma ética exterior. Eu me importo com o interior.
— Mas o que você disse...
Quero dizer, sobre se esconder atrás de mentiras. Acho que fiz isso, de um
modo ou de outro, durante a maior parte da vida.
— Querido, você é um
sobrevivente. Não há vergonha nisso. Seu pai machucou você de um modo
feroz. A vida machucou você. As mentiras são um dos lugares mais
fáceis para onde os sobreviventes correm. Elas dão um sentimento de
segurança, um lugar onde você só precisa contar consigo mesmo. Mas é um
lugar escuro, não é?
— Demais — murmurou Mack
balançando a cabeça.
— Mas você está disposto a
abrir mão do poder e da segurança que esse lugar lhe promete? Esta é a
questão.
— Como assim? — perguntou
Mack olhando-a.
— As mentiras são uma pequena
fortaleza onde você pode se sentir seguro e poderoso.
Dentro de sua pequena
fortaleza de mentiras você tenta governar sua vida e manipular os outros.
Mas a fortaleza precisa de muros, por isso você constrói alguns. Os muros são
as justificativas para suas mentiras. Você sabe, como se estivesse fazendo
isso para proteger alguém que você ama ou para impedir que essa pessoa
sinta dor. Qualquer coisa que funcione para que você se sinta bem com as
mentiras.
— Mas o motivo pelo qual não
contei a Nan sobre o bilhete foi porque isso iria lhe causar muita dor.
— Está vendo, Mackenzie, como
você precisa se justificar? O que você disse é uma mentira descarada, mas
você não consegue ver. — Ela se inclinou para a frente. — Quer que eu lhe
diga qual é a verdade?
Mack sabia que Papai estava
indo fundo, mas ainda assim sentiu alívio e ficou tentado a quase rir alto.
Estava à vontade.
— Na-ã-ão — respondeu
lentamente e deu um risinho para ela. — Mas vá em frente, de qualquer
modo.
Ela sorriu de volta, depois
ficou séria.
— A verdade, Mack, é que o
motivo real para você ter mentido a Nan não foi para evitar que ela
sofresse. O verdadeiro motivo foi que você estava com medo de enfrentar as
emoções que poderiam surgir, tanto as dela quanto as suas. As emoções o
amedrontam, Mack. Você mentiu para se proteger e não para protegê-la!
Ele se recostou. Papai estava
absolutamente certa.
— E, além disso — continuou
ela —, uma mentira dessas é desamor. Tendo como justificativa o fato de se
importar com Nan, sua mentira prejudicou seu relacionamento com ela e o
relacionamento dela comigo. Se você tivesse contado, talvez ela estivesse
conosco aqui, agora.
As palavras de Papai
acertaram Mack como um soco no estômago.
— Você queria que ela viesse
também?
— Isso seria uma decisão sua
e dela, se ela tivesse tido a chance de tomá-la. O ponto, Mack, é que você
não sabe o que teria acontecido porque estava ocupado demais tentando
proteger a Nan.
De novo ele estava afundando
na culpa.
— Então o que faço agora?
— Conte a ela, Mackenzie.
Enfrente o medo de sair do escuro e conte a ela, peça perdão e deixe que o
perdão dela o cure. Peça que ela reze por você, Mack. Assuma os riscos
da honestidade. Quando fizer outra besteira, peça perdão de novo. É um
processo, querido, e a vida é suficientemente real sem precisar ser
obscurecida por mentiras. E, lembre-se, eu sou maior do que as suas
mentiras. Posso agir para além delas. Mas isso não as torna certas nem
impede o dano que elas causam ou a dor que provocam nos outros.
— E se ela não me perdoar? —
Mack sabia que esse era um medo muito profundo com o qual convivia. Era
mais seguro continuar lançando novas mentiras na pilha crescente das
velhas.
— Ah, esse é o risco da fé,
Mack. A fé não cresce na casa da certeza. Não estou aqui para lhe dizer
que Nan vai perdoá-lo. Talvez ela não queira ou não possa, mas minha
vida dentro de você vai tomar conta do risco e da incerteza para
transformá-lo. Por meio de suas escolhas, você passará a ser um contador
de verdades e esse será um milagre muito maior do que ressuscitar os
mortos.
Mack se recostou e deixou que
as palavras dela assentassem.
— Por favor, perdoe-me —
disse finalmente.
— Já fiz isso há muito tempo,
Mack. Se não acredita, pergunte a Jesus. Ele estava lá.
Mack tomou um gole de café,
surpreso ao descobrir que a bebida continuava quente.
— Mas eu me esforcei
tremendamente para trancar você do lado de fora da minha vida.
— As pessoas são persistentes
quando se trata de garantir sua independência imaginária. Elas acumulam e
guardam a doença como se fosse um bem precioso. Encontram sua identidade e seu
valor na mutilação e os guardam com cada grama de força que possuem. Não é
de espantar que a graça seja tão pouco atraente. Nesse sentido você tentou
trancar a porta do seu coração por dentro.
— Mas não consegui.
— Porque meu amor é muito
maior do que sua estupidez — disse Papai, com uma piscadela. — Eu usei
suas escolhas para atingir meus propósitos. Há muitas pessoas como você,
Mackenzie, que terminam se trancando num lugar muito pequeno com um
monstro que acabará traindo-as, que não as preencherá nem lhes dará o que
elas imaginavam. Quando ficam prisioneiras de um terror desses, têm de novo a
oportunidade de retornar para mim. O tesouro em que elas confiavam irá se
tornar seu desastre.
— Então você usa a dor para
forçar as pessoas a voltar? — Era óbvio que Mack não aprovava isso.
Papai se inclinou e tocou gentilmente
a mão de Mack.
— Querido, eu também o
perdoei por pensar que eu poderia ser assim. Entendo como é difícil para
você começar a perceber, quanto mais imaginar, o que são o verdadeiro
amor e a bondade. Porque você está tão perdido em suas percepções da
realidade e ao mesmo tempo tão seguro de seus julgamentos. O amor
verdadeiro nunca força. — Ela apertou a mão dele e se recostou na cadeira.
— Mas, se eu entendi o que
está dizendo, as conseqüências de nosso egoísmo fazem parte do processo
que nos leva ao fim de nossas ilusões e nos ajuda a encontrar você. É por
isso que você não impede as coisas ruins que nos acontecem? Por isso não
me avisou que Missy estava correndo perigo nem nos ajudou a encontrá-la? —
O tom de acusação estava ausente da voz de Mack.
— Se ao menos fosse tão
simples, Mackenzie! Ninguém sabe de que horrores eu salvei o mundo, porque
as pessoas não podem ver as coisas que jamais aconteceram. Todo o mal
decorre da independência e a independência foi a escolha que vocês fizeram.
Se fosse simples anular todas as escolhas de independência, o mundo que
você conhece deixaria de existir e o amor não teria significado. O mundo não é
um playground onde eu mantenho todos os meus filhos livres do mal. O mal
é o caos, mas não terá a palavra final. Agora ele toca todos que eu
amo, os que me seguem e os que não me seguem. Se eu eliminar as
conseqüências das escolhas das pessoas, destruo a possibilidade do amor.
O amor forçado não é amor.
Mack passou as mãos pelos
cabelos e suspirou.
— É simplesmente muito
difícil de entender.
— Querido, deixe-me dizer um
dos motivos pelos quais isso é tão difícil de entender. É porque você tem
uma visão muito pequena do que significa ser humano. Você e a Criação são
incríveis, quer você entenda ou não. Vocês são absolutamente maravilhosos. Só
porque fazem escolhas horrendas e destrutivas, isso não significa que
mereçam menos respeito pelo que são por essência: o auge da minha Criação
e o centro do meu afeto.
— Mas... — começou Mack.
— Além disso — interrompeu
ela —, não se esqueça de que no meio de toda a sua dor e da sua mágoa você
está rodeado por beleza, pela maravilha da Criação, pela arte, pela
música, pela cultura, pelos sons de riso e amor, de esperanças sussurradas
e de celebrações, de vida nova e de transformações, de reconciliação e
perdão. Essas coisas também são resultado de suas escolhas e toda escolha
é importante, mesmo as ocultas. Então, que escolhas não deveriam ter sido
feitas, Mackenzie? Será que eu nunca deveria ter criado? Será que Adão deveria
ter sido impedido antes de escolher a independência? Que tal a escolha de
ter outra filha, ou a escolha de seu pai de espancar o filho? Você exige
sua independência, mas depois reclama por eu amá-lo o bastante para
responder ao seu pedido.
Mack sorriu.
— Já ouvi isso antes.
Papai sorriu de volta e pegou
um pedaço de bolo.
— Eu disse que Sophia mexeu
com você. Mackenzie, meus propósitos não existem para o meu conforto nem
para o seu. Meus propósitos são sempre e somente uma expressão de amor. Eu
me proponho a trabalhar a vida a partir da morte, a trazer a liberdade
de dentro do que está partido, a transformar a escuridão em luz. O que você vê como
caos, eu vejo como desdobramento. Todas as coisas devem se desdobrar,
ainda que isso ponha todos os que eu amo no meio de um mundo de tragédias
horríveis, mesmo os que são mais próximos de mim.
— Está falando de Jesus, não
é? — perguntou Mack baixinho.
— É, eu adoro aquele garoto.
— Papai afastou o olhar e balançou a cabeça. — Tudo tem a ver com ele,
você sabe. Um dia vocês vão entender do que ele abriu mão.
Simplesmente não existem palavras.
Mack podia sentir as emoções
crescendo. Algo o tocou profundamente ao ouvir Papai falar do filho.
Hesitou antes de perguntar, mas finalmente rompeu o silêncio:
— Papai, pode me ajudar a
entender uma coisa? O que exatamente Jesus realizou ao morrer?
Ela ainda estava olhando para
a floresta.
— Ah — e balançou a mão. —
Não muita coisa. Apenas a essência de tudo que o amor se propunha desde
antes dos alicerces da Criação — declarou Papai em tom casual. Depois se
virou e sorriu.
— Uau, isso é amplo demais.
Pode diminuir só um pouquinho? — perguntou Mack, achando-se ousado assim
que as palavras saíram de sua boca.
Em vez de ficar chateado,
Papai sorriu para ele.
— Nossa, você está ficando
metidinho! A gente dá a mão e eles logo querem o braço.
Mack devolveu o sorriso, mas
não disse nada.
— Como falei, tudo tem a ver
com ele. A Criação e a história têm tudo a ver com Jesus. Ele é o centro de
nosso propósito e nele agora somos totalmente humanos, de modo que o nosso
propósito e o destino de vocês estão ligados para sempre. Não existe
qualquer outro plano.
— Parece bem arriscado —
comentou Mack.
— Talvez para vocês, mas não
para mim. Nunca houve dúvida de que conseguirei o que eu desejava desde o início.
— Papai se inclinou e cruzou os braços sobre a mesa. — Querido, você
perguntou o que Jesus realizou na cruz. Então agora me ouça com cuidado: a
morte dele e sua ressurreição foram a razão pela qual eu agora
estou totalmente reconciliado com o mundo.
— Com o mundo inteiro? Quer
dizer, com os que acreditam em você, não é?
— Com o mundo inteiro, Mack.
Estou dizendo que a reconciliação é uma rua de mão dupla e eu fiz a minha
parte, totalmente, completamente, definitivamente. Não é da natureza do
amor forçar um relacionamento, mas é da natureza do amor abrir o caminho.
Após dizer isso, Papai
levantou-se e pegou alguns pratos para levar para a cozinha.
Mack balançou a cabeça e
ergueu os olhos.
— Então eu realmente não
entendo o que é reconciliação e realmente morro de medo de emoções. É
isso?
Papai não respondeu
imediatamente, mas balançou a cabeça. Mack a ouviu resmungar e murmurar,
como se falasse com ela mesma:
— Homens! Algumas vezes são
tão idiotas!
Ele não podia acreditar.
— Ouvi Deus me chamar de idiota?
— gritou pela porta de tela. Viu-a dar de ombros antes de desaparecer na
virada do corredor.
Depois ela gritou em sua
direção:
— Se a carapuça serve,
querido. Sim senhor, se a carapuça serve...
Mack riu e se recostou na
cadeira. Sentia-se exausto. O tanque do cérebro estava mais do que cheio,
assim como o estômago. Levou o resto dos pratos para a cozinha,
depositou-os na bancada, deu um beijo no rosto de Papai e foi para a porta
dos fundos.
14. Verbos e outras liberdades
Deus é um Verbo.
— Buckminster Fuller
Mack saiu para o sol do meio
da tarde. Sentia uma mistura estranha, como se estivesse ao mesmo tempo
torcido como um trapo e plenamente vivo. Que dia incrível tinha sido aquele
e ainda estavam no meio da tarde! Por um momento ficou indeciso, antes de
ir até o lago. Quando viu as canoas amarradas ao cais, sentiu uma certa
resistência, mas a idéia de entrar numa e passear pelo lago o energizou
pela primeira vez em anos.
Desamarrando a última, na
extremidade do cais, entrou cautelosamente e começou a remar para o outro
lado. Nas duas horas seguintes circulou pelo lago, explorando recantos e
fendas.
Encontrou dois rios e alguns
córregos que, vindo de cima, alimentavam o lago e a seguir o esvaziavam na
direção das bacias inferiores. Descobriu um lugar perfeito para ficar à
deriva olhando a cachoeira. Flores alpinas brotavam em toda parte,
acrescentando manchas de cor à paisagem. Era o sentimento de paz mais
intenso e consistente que Mack experimentava havia uma enormidade de tempo
— se é que jamais havia experimentado.
Chegou a cantar algumas
músicas só porque teve vontade. Cantar também era algo que não fazia há
muito tempo. Recuou ao passado e começou a cantarolar a musiquinha ingênua
que costumava cantar para Kate: "K-K-K-Katie... linda Katie, você é a
única que eu adoro..."
Balançou a cabeça ao pensar
na filha, tão forte e tão frágil. Imaginou qual seria o modo de alcançar o
coração dela. Não se surpreendia mais com a facilidade com que as lágrimas
chegavam aos seus olhos.
Num determinado ponto virou-se
para olhar os redemoinhos feitos pelo remo e quando se virou de novo
Sarayu estava sentada na proa, olhando-o. Aquela presença súbita o fez dar
um pulo.
— Nossa! — exclamou ele. —
Você me assustou.
— Desculpe, Mackenzie, mas o
jantar está quase pronto e é hora de voltar para a cabana.
— Você estava comigo o tempo
todo? — perguntou Mack, consciente do jorro de adrenalina.
— Claro. Sempre estou com
você.
— Então por que não percebi?
Ultimamente consigo saber quando você está por perto.
— O fato de você saber ou não
saber não tem nada a ver com o fato de eu estar aqui. Sempre estou com você.
Algumas vezes quero que não perceba especialmente a minha presença.
Mack assentiu, entendendo, e
virou a canoa para a margem distante onde ficava a cabana. A presença dela
provocava um arrepio na coluna. Os dois sorriram simultaneamente.
— Sempre poderei ver ou ouvir
você como agora, mesmo quando estiver de volta em casa?
Sarayu sorriu.
— Mackenzie, você sempre pode
falar comigo e eu sempre estarei com você, quer sinta minha presença ou
não.
— Agora sei disso, mas vou
escutar você?
— Vai aprender a ouvir meus
pensamentos nos seus, Mackenzie — ela garantiu.
— Vai ser claro? E se eu
confundir você com outra voz? E se eu errar?
Sarayu riu e o som parecia o
de água cascateando, como se fosse música.
— Claro que você vai errar.
Todo mundo erra, mas vai começar a reconhecer melhor minha voz à medida
que nosso relacionamento for crescendo.
— Não quero errar — resmungou
Mack.
— Ah, Mackenzie, os erros
fazem parte da vida e Papai trabalha seus propósitos neles também.
Sarayu estava achando
divertido e Mack não pôde evitar um sorriso. Dava para entender muito bem
o que ela dizia.
— Isso é muito diferente de
tudo que eu conhecia, Sarayu. Não me entenda mal, adoro o que vocês me
deram neste fim de semana. Mas não faço idéia de como voltar à minha vida
normal. Tenho a sensação de que era mais fácil viver com Deus quando eu
pensava Nele como o mestre exigente ou mesmo quando eu tinha que conviver
com a solidão da Grande Tristeza.
— Você acha? De verdade?
— Pelo menos dava a impressão
de que as coisas estavam sob controle.
— Dava a impressão é o termo
certo. O que você ganhou com isso? A Grande Tristeza e uma dor
insuportável, uma dor que se derramava até mesmo sobre as pessoas de
quem você mais gosta.
— Segundo Papai, isso é
porque eu tenho medo de emoções.
Sarayu riu alto.
— Achei aquela conversinha
hilariante.
— Eu tenho medo de emoções —
admitiu Mack, meio perturbado porque ela parecia não dar importância. —
Não gosto da sensação que elas produzem. Magoei outros por causa das
minhas emoções e não consigo confiar nelas. Vocês criaram todas, ou só
as boas?
— Mackenzie. — Sarayu pareceu
se erguer no ar. Ainda era difícil olhar diretamente para ela, mas com o
sol do fim da tarde se refletindo na água ficava ainda pior. — As
emoções são as cores da alma. São espetaculares e incríveis. Quando você
não sente, o mundo fica opaco e sem cor. Pense em como a Grande Tristeza
reduziu a gama de cores na sua vida para matizes monótonos, cinza e
pretos.
— Então me ajude a
entendê-las — implorou Mack.
— Na verdade, não há muito o
que entender. As emoções simplesmente são. Nem boas nem ruins, apenas
existem. Eis algo que vai ajudá-lo a entender melhor, Mackenzie.
Os paradigmas dão força às percepções e as percepções dão força às
emoções. Não se assuste, vou explicar. A maioria das emoções são reações
àquilo que você percebe: o que acha verdadeiro numa determinada situação.
Se sua percepção for falsa, sua reação emocional a ela também será falsa.
Então verifique suas percepções e além disso verifique a verdade de seus
paradigmas, dos seus padrões, daquilo em que você acredita. Só porque você
acredita firmemente numa coisa não significa que ela seja verdadeira.
Disponha-se a reexaminar aquilo em que acredita. Quanto mais você viver na
verdade, mais suas emoções irão ajudá-lo a ver com clareza. Mas, mesmo
então, não confie mais nelas do que em mim.
Mack deixou o remo girar nas
mãos, permitindo que ele seguisse os movimentos da água.
— Tenho a impressão de que
viver a partir do relacionamento com você, confiando e falando com você, é
bem mais complicado do que simplesmente seguir as regras.
— Que regras são essas,
Mackenzie?
— Você sabe, todas as coisas
que as Escrituras dizem que devemos fazer.
— Certo... — disse ela com
alguma hesitação. — E quais são elas?
— Você sabe — respondeu ele
com um certo sarcasmo. — Fazer o bem e evitar o mal, ser caridoso com os
pobres, ler a Bíblia, rezar e ir à igreja. Coisas assim.
— Sei. E como isso funciona
para você?
Ele riu.
— Bom, nunca fiz nada disso
muito bem. Tenho momentos melhores, mas sempre há algo com que estou
lutando ou algo que me faz sentir culpado. Acabei de pensar que precisava
me esforçar mais, porém acho difícil manter essa motivação.
— Mackenzie! — Seu tom era de
censura, as palavras voando com afeto. — A Bíblia não lhe diz para seguir
regras. Ela é uma imagem de Jesus. Ainda que as palavras possam lhe dizer
como Deus é e o que Ele pode querer de você, é impossível fazer isso sozinho.
A vida está Nele e em mais ninguém. Minha nossa, será possível que você se
ache capaz de viver a retidão de Deus sozinho?
— Bom, acho que sim, mais ou
menos... — disse ele sem graça. — Mas você tem de admitir que as regras e
os princípios são mais simples do que os relacionamentos.
— É verdade que os
relacionamentos são muito mais complicados do que as regras, mas as regras
nunca vão lhe dar as respostas para as questões profundas do coração. E
nunca irão amar você.
Mergulhando a mão na água,
ele brincou, vendo a repercussão de seus movimentos.
— Estou percebendo como tenho
poucas respostas... para qualquer coisa. Você me virou de cabeça para
baixo e pelo avesso, ou sei lá o quê.
— Mackenzie, a religião tem a
ver com respostas certas e algumas dessas respostas são de fato certas.
Mas eu tenho a ver com o processo que leva você à resposta viva, e só ele
é capaz de mudá-lo por dentro. Há muitas pessoas inteligentes que dizem um
monte de coisas certas a partir do cérebro porque aprenderam com alguém
quais são as respostas certas. Mas essas pessoas não me conhecem. Assim, na
verdade, como as respostas delas podem ser certas, mesmo que estejam
certas? — Ela sorriu. — Ficou confuso? Mas pode ter certeza: mesmo que possam
estar certas, elas estão erradas.
— Entendo o que você está
dizendo. Eu fiz isso durante anos, depois da escola dominical. Tinha as
respostas certas algumas vezes, mas não conhecia vocês. Este fim
de semana, compartilhando a vida com vocês, foi muito mais esclarecedor do
que todas aquelas respostas.
Continuaram a se mover
preguiçosamente na água.
— Então verei você de novo? —
perguntou ele, hesitando.
— Claro. Você pode me ver
numa obra de arte, na música, no silêncio, nas pessoas, na Criação, mesmo
na sua alegria e na sua tristeza. Minha capacidade de me comunicar
é ilimitada, vivendo e transformando, e tudo isso sempre estará
sintonizado com a bondade e o amor de Papai. E você irá me ouvir e me ver
na Bíblia de modos novos. Simplesmente não procure regras e princípios. Procure
o relacionamento: um modo de estar conosco.
— Mesmo assim não será o
mesmo do que ter você na proa do meu barco.
— Não, mas será muito melhor
do que você pode imaginar, Mackenzie. E, quando você finalmente dormir
neste mundo, teremos uma eternidade juntos, face a face.
E então ela sumiu. Apesar de
ele saber que não havia sumido de verdade.
— Então, por favor, ajude-me
a viver na verdade — disse Mack em voz alta. "Talvez isso seja uma
oração", pensou.
* * *
Quando entrou no chalé, Mack
viu que Jesus e Sarayu já estavam lá, sentados em volta da mesa. Papai
estava ocupada como sempre, trazendo pratos de comidas com
cheiros maravilhosos. Era evidente a ausência de qualquer verdura. Mack
foi para o banheiro se lavar e quando retornou os outros três já haviam
começado a comer. Puxou a quarta cadeira e sentou-se.
— Vocês realmente não
precisam comer, não é? — perguntou, enquanto começava a colocar em sua
tigela algo que parecia uma fina sopa de frutos do mar, com lulas,
peixes e outras iguarias indefinidas.
— Não precisamos fazer nada —
declarou Papai com certa ênfase.
— Então por que comem?
— Para estar com você,
querido. Você precisa comer. Então, que desculpa melhor para ficarmos
juntos?
— De qualquer modo, todos nós
gostamos de cozinhar — acrescentou Jesus. — E eu gosto um bocado de
comida. Nada como uns deliciosos pratos salgados para deixar felizes as
papilas gustativas. Acompanhe isso com um pudim de caramelo ou um tiramisu
e chá quente. Humm! Nada pode ser melhor.
Todos riram, depois voltaram
a passar os pratos e a se servir. Enquanto comia, Mack ouvia a conversa animada
entre os três. Falavam e riam como velhos amigos que se gostavam e se
conheciam mais intimamente do que qualquer outro ser humano. Mack sentia
inveja da conversa despreocupada mas respeitosa e se perguntou o que
seria necessário para compartilhar isso com Nan e talvez até com alguns
amigos.
De novo ficou pasmo com a
maravilha e o puro absurdo do momento. Voltavam-lhe à mente as conversas
incríveis que o haviam envolvido nas 24 horas anteriores. Uau! Só estivera
ali por um dia? E o que deveria fazer com isso quando voltasse para casa?
Sabia que contaria tudo a
Nan. Ela podia não acreditar e Mack não iria culpá-la, pois
ele provavelmente também não acreditaria.
À medida que sua mente ia
acelerando, ele sentiu que se afastava dos outros e fechou os olhos. Nada
disso podia ser real. De repente houve um silêncio de morte. Abriu
devagar um dos olhos, esperando acordar de novo em casa. Em vez disso,
Papai, Jesus e Sarayu o estavam encarando com sorrisos no rosto. Ele nem
tentou se explicar. Sabia que eles sabiam.
Em vez disso, apontou para um
dos pratos e perguntou:
— Posso experimentar um pouco
disso?
As interações foram retomadas
e dessa vez ele escutou. Mas de novo sentiu que ia se afastando. Para
reagir, decidiu fazer uma pergunta.
— Por que vocês nos amam, os
humanos? Eu acho... — Percebeu que não havia formulado bem a pergunta. —
Acho que o que eu quero perguntar é: por que vocês me amam, quando não
tenho nada para lhes oferecer?
— Pense um pouco nisso, Mack
— respondeu Jesus. — Você não experimenta uma forte sensação de liberdade
ao saber que não pode nos oferecer nada, pelo menos nada capaz de
acrescentar ou diminuir o que somos? Isso deve trazer um grande alívio,
porque elimina qualquer exigência de comportamento.
— E você ama mais os seus
filhos quando eles se comportam bem? — acrescentou Papai.
— Não. Estou entendendo. —
Mack fez uma pausa. — Mas eu me sinto mais realizado porque eles estão na
minha vida. E vocês?
— Não — respondeu Papai. — Já
somos totalmente realizados em nós mesmos. Vocês estão destinados a viver
em comunhão também, já que são feitos à nossa imagem. Assim, sentir isso por
seus filhos ou por qualquer coisa que "acrescente"
é perfeitamente natural e certo. Lembre-se, Mackenzie, que por natureza eu
não sou um ser humano, apesar de termos escolhido estar com você neste fim
de semana. Sou verdadeiramente humano em Jesus, mas sou algo totalmente
separado em minha natureza.
— Você sabe, claro que sabe —
disse Mack em tom de desculpa —, que eu só posso seguir essa linha de
raciocínio até um determinado ponto e depois me perco e meu cérebro parece
derreter.
— Entendo — admitiu Papai. —
É impossível compreender com a mente algo que você não pode experimentar.
Mack pensou nisso por um
momento.
— Acho que sim... Pois é...
Está vendo? Está derretendo.
Quando os outros pararam de
rir, Mack prosseguiu:
— Vocês sabem como me sinto
grato por tudo, mas jogaram coisas demais no meu colo neste fim de semana.
O que faço quando voltar? Qual é sua expectativa com relação a mim, agora?
Jesus e Papai se viraram para
Sarayu, que estava com o garfo cheio de alguma coisa a caminho da boca.
Ela pousou-o lentamente de volta no prato e depois respondeu à expressão
confusa de Mack.
— Mack — começou ela —, você
deve perdoar esses dois. Os humanos têm uma tendência a estruturar a
linguagem de acordo com sua independência e com sua necessidade
de comportamento. Assim, quando ouço a linguagem sofrer abusos em favor
das regras e não ser usada para compartilhar a vida conosco, é difícil
permanecer em silêncio.
— Como deve ser — acrescentou
Papai.
— Então o que foi exatamente
que eu disse? — perguntou Mack, agora bastante curioso.
— Mack, vá em frente e
termine de mastigar. Nós podemos conversar enquanto você come.
Mack percebeu que também
estava com o garfo a caminho da boca. Mastigou agradecido o bocado
enquanto Sarayu começava a falar. À medida que fazia isso, ela pareceu se
alçar da cadeira e tremeluzir com uma dança de tons e cores sutis,
enchendo suavemente a sala com uma variedade de aromas.
— Deixe-me responder com uma pergunta.
Por que você acha que nós criamos os Dez Mandamentos?
De novo Mack estava com o
garfo a meio caminho da boca, mas mesmo assim mastigou o bocado enquanto
pensava na resposta.
— Acho, pelo menos foi o que
me ensinaram, que é um conjunto de regras que vocês esperavam que os
humanos obedecessem para viver com retidão e em estado de graça perante
vocês.
— Se isso fosse verdade, e
não é — respondeu Sarayu —, quantos você acha que viveram com retidão
suficiente para entrar em nossas boas graças?
— Não muitos, se as pessoas
são como eu.
— Na verdade, só um
conseguiu: Jesus. Ele obedeceu a letra da lei e realizou completamente o
espírito dela. Mas entenda, Mackenzie: para fazer isso, ele teve
de confiar totalmente em mim e depender totalmente de mim.
— Então por que vocês nos
deram esses mandamentos?
— Na verdade, queríamos que
vocês desistissem de tentar ser justos sozinhos. Era um espelho para
revelar como o rosto fica imundo quando se vive com independência.
— Mas tenho certeza de que
vocês sabem que há muitos que acham que se tornam justos seguindo as
regras.
— Mas é possível limpar o
rosto com o mesmo espelho que mostra como você está sujo? Não há
misericórdia nem graça nas regras, nem mesmo para um erro. Por isso
Jesus realizou todas elas por vocês, para que elas não tivessem mais poder
sobre vocês.
Agora ela estava com força
total, as feições crescendo e movendo-se.
— Mas tenha em mente que, se
você viver sua vida sozinho e de forma independente, a promessa é vazia.
Jesus afastou a exigência da lei. Ela não tem mais poder de acusar
ou comandar. Jesus é a promessa e o cumprimento.
— Está dizendo que não
preciso seguir as regras? — Agora Mack havia parado completamente de comer
e estava concentrado na conversa.
— Sim. Em Jesus você não está
sob nenhuma lei. Todas as coisas são legítimas.
— Não pode estar falando
sério! — gemeu Mack.
— Criança — interrompeu Papai
—, você ainda não ouviu nada.
— Mackenzie — continuou
Sarayu —, só têm medo da liberdade os que não podem confiar que nós
vivemos neles. Tentar manter a lei é na verdade uma declaração de
independência, um modo de manter o controle.
— É por isso que gostamos
tanto da lei? Para nos dar algum controle? — perguntou Mack.
— É muito pior do que isso —
retomou Sarayu. — Ela dá o poder de julgar os outros e de se sentir
superior a eles. Vocês acreditam que estão vivendo num padrão mais elevado do
que aqueles a quem vocês julgam. Aplicar regras, sobretudo em suas
expressões mais sutis, como responsabilidade e expectativa, é uma
tentativa inútil de criar a certeza a partir da incerteza. E, ao contrário
do que você possa pensar, eu gosto demais da incerteza. As regras não
podem trazer a liberdade. Elas só têm o poder de acusar.
— Uau! — De repente Mack
percebeu o que Sarayu havia dito. — Está dizendo que a responsabilidade e
a expectativa são apenas outra forma de regras? Ouvi direito?
— É — exclamou Papai de novo.
— Agora chegamos ao ponto: Sarayu, ele é todo seu!
Mack procurou concentrar-se
em Sarayu, o que não era uma tarefa simples.
Sarayu sorriu para Papai e de
novo para Mack. Começou a falar lenta e decididamente:
— Mackenzie, eu sempre
prefiro um verbo a um substantivo. Parou e esperou. Mack não tinha muita
certeza de ter entendido.
— Hein?
— Eu — ela abriu as mãos para
incluir Jesus e Papai — sou um verbo. Sou o que sou. Serei o que serei. Sou um
verbo! Sou viva, dinâmica, sempre ativa e em movimento. Sou um
ser-verbo.
Mack tinha uma expressão
vazia no rosto. Entendia as palavras, mas ainda não achava o sentido.
— E, como minha essência é um
verbo — continuou ela —, sou mais ligada a verbos do que a substantivos. Verbos
como confessar, arrepender-se, viver, amar, responder, crescer, colher, mudar,
semear, correr, dançar, cantar e assim por diante. Os humanos, por outro
lado, gostam de pegar um verbo vivo e cheio de graça e transformá-lo num
substantivo ou num princípio morto que fede a regras. Os
substantivos existem porque existe um universo criado e uma realidade
física, mas, se o universo for apenas uma massa de substantivos, ele está
morto. A não ser "eu sou", não existem verbos e os verbos são o que
torna o universo vivo.
— E... — Mack ainda estava
lutando, mas pareceu que um brilho de luz começava a iluminar seu
pensamento. — E isso significa exatamente o quê?
Sarayu pareceu não se
perturbar com sua falta de entendimento.
— Para que alguma coisa se
mova da morte para a vida, você precisa colocar algo vivo e móvel na
mistura. Passar de uma coisa que é apenas um substantivo para algo dinâmico
e imprevisível, para algo vivo e no tempo presente — um verbo —, é
mover-se da lei para a graça. Posso dar alguns exemplos?
— Por favor. Sou todo
ouvidos.
Jesus deu um risinho e Mack
piscou para ele antes de se voltar para Sarayu. A sombra levíssima de um
sorriso atravessou o rosto dela enquanto retomava:
— Então vamos usar suas duas
palavras: responsabilidade e expectativa. Antes que suas palavras se
tornassem substantivos, eram nomes que continham movimento e experiência:
a capacidade de reagir e a prontidão. Minhas palavras são vivas e
dinâmicas, cheias de vida e possibilidades. As suas são mortas, cheias de
leis, medo e julgamento. Por isso você não encontrará a palavra
responsabilidade nas Escrituras.
— Minha nossa! — Mack franziu
a testa, começando a perceber aonde isso ia dar. — Por outro lado, nós a
usamos um bocado.
Ela continuou:
— A religião usa a lei para
ganhar força e controlar as pessoas de que precisa para sobreviver. Eu, ao
contrário, dou a capacidade de reagir e sua reação é estar livre para amar
e servir em todas as situações. Por isso, cada momento é diferente, único
e maravilhoso. Como sou sua capacidade de reagir livremente, tenho de
estar presente em vocês. Se eu
simplesmente lhes desse uma responsabilidade, não teria de estar com
vocês. A responsabilidade seria uma tarefa a realizar, uma obrigação a cumprir,
algo para vencer ou fracassar.
— Minha nossa, minha nossa —
disse Mack outra vez, sem muito entusiasmo.
— Usemos o exemplo da amizade
e veremos que remover o elemento de vida de um substantivo pode alterar um
relacionamento. Mack, se você e eu somos amigos, há uma prontidão dentro
de nosso relacionamento. Quando nos vemos ou quando estamos separados, há
a prontidão de estarmos juntos, de rirmos e falarmos. Essa prontidão
não tem definição concreta: é viva, dinâmica, e tudo que emerge do fato de
estarmos juntos é um dom único que não é compartilhado por mais ninguém.
Mas o que acontece se eu mudar "prontidão" por
"expectativa", verbalizada ou não? Subitamente a lei entra
no nosso relacionamento. Agora você espera que eu aja de um modo que
atenda às suas expectativas. Nossa amizade viva se deteriora rapidamente e
se torna uma coisa morta, com regras e exigências. Não tem mais a ver com
nós dois, mas com o que os amigos devem fazer ou com as responsabilidades
de um bom amigo.
— Ou — observou Mack — com as
responsabilidades de marido, de pai, empregado ou qualquer outra coisa.
Entendi. Prefiro viver na prontidão.
— Eu também — disse Sarayu.
— Mas — argumentou Mack —, se
não tivéssemos expectativas e responsabilidades, tudo não iria
simplesmente desmoronar?
— Só se você fizer parte do
mundo fora de mim, regido pela lei. As responsabilidades e as expectativas
são a base para a culpa, a vergonha e o julgamento. Elas fornecem
a estrutura que faz do comportamento a base para a identidade e o valor de
alguém. Você sabe muito bem como é não atender às expectativas de alguém.
— Sei mesmo! — murmurou Mack.
— É uma idéia que me traz tristes lembranças. — Parou brevemente, com um
novo pensamento relampejando. — Você está dizendo que não tem expectativas
com relação a mim?
Agora Papai falou:
— Querido, eu nunca tive
expectativas com relação a você nem a ninguém. A idéia por trás disso
exige que alguém não saiba o futuro ou o resultado e esteja tentando
controlar o comportamento do outro para chegar ao resultado desejado. Os
humanos tentam esse controle principalmente por meio das expectativas. Eu
o conheço e sei tudo sobre você. Por que teria uma expectativa diferente
daquilo que já sei? Seria idiotice. E, além disso, como não a tenho, vocês
nunca me desapontam.
— O quê? Você nunca ficou
desapontado comigo? — Mack estava se esforçando bastante para digerir
isso.
— Nunca! — declarou Papai
enfaticamente. — O que tenho é uma prontidão constante e viva no nosso
relacionamento e lhe dou a capacidade de reagir a qualquer situação
e circunstância em que você se encontrar. Se passar a contar com
expectativas e responsabilidades, você não me conhece nem confia em mim.
— E pela mesma razão —
exclamou Jesus — você vive no medo.
— Mas... — Mack não estava
convencido. — Mas você não quer que a gente estabeleça prioridades? Você
sabe: Deus primeiro, depois sei lá o quê, seguido por mais não sei o quê?
— O problema de viver segundo
prioridades — disse Sarayu — é que se vê tudo como uma hierarquia, uma
pirâmide, e você e eu já falamos sobre isso. Se você puser Deus no topo, o
que isso realmente significa? Quanto tempo você me dá antes de poder cuidar do
resto do seu dia, da parte que lhe interessa muitíssimo mais?
Papai interrompeu de novo.
— Veja bem, Mackenzie, eu não
quero simplesmente um pedaço de você e da sua vida. Mesmo que você
pudesse, e não pode, me dar o pedaço maior, não é isso que eu quero. Quero
você inteiro e todas as partes de você e de seu dia.
Agora Jesus falou de novo.
— Mack, não quero ser o
primeiro numa lista de valores. Quero estar no centro de tudo. Quando vivo em
você, podemos viver juntos tudo que acontece com você. Em vez de uma
pirâmide, quero ser como o centro de um móbile, onde tudo em sua vida —
seus amigos, sua família, seu trabalho, os pensamentos, as atividades —
esteja ligado a mim, mas se movimente ao vento, para dentro e para fora,
para trás e para a frente, numa incrível dança do ser.
— E eu — concluiu Sarayu —
sou o vento. — Ela deu um sorriso enorme e fez uma reverência.
Houve silêncio enquanto Mack
procurava se controlar. Estivera segurando a borda da mesa com as duas
mãos, como se quisesse agarrar algo tangível diante daquele tiroteio de
idéias e imagens.
— Bom, chega disso — declarou
Papai, levantando-se da cadeira. — É hora de diversão! Vocês vão em frente
enquanto eu tiro as coisas que podem estragar. Cuido dos pratos mais
tarde.
— E as orações? — perguntou
Mack.
— Nada é um ritual, Mack —
disse Papai, pegando alguns pratos de comida. — Portanto, esta noite vamos
fazer uma coisa diferente. Você vai gostar!
Enquanto se levantava e se
virava para acompanhar Jesus até a porta dos fundos, Mack sentiu uma mão
no ombro e virou-se. Sarayu estava parada ali, olhando-o com intensidade.
— Mackenzie, se você me
permitir, gostaria de lhe dar um presente para esta noite. Posso tocar
seus olhos e curá-los só por esta noite?
Mack ficou surpreso.
— Eu enxergo bastante bem.
— Na verdade — disse Sarayu
em tom de desculpa —, você vê muito pouco, embora para um ser humano
enxergue bastante bem. Mas só por esta noite eu adoraria que você visse um
pouco do que nós vemos.
— Então está bem — concordou
Mack. — Por favor, toque meus olhos e até mais, se quiser.
Enquanto Sarayu estendia as
mãos para ele, Mack fechou os olhos. O toque dela era como gelo,
inesperado e empolgante. Um tremor delicioso o atravessou e Mack ergueu as
mãos para segurar as dela junto ao rosto. Não havia nada ali e ele começou
lentamente a abrir os olhos.
15. Um festival de amigos
"Você pode dizer
adeus a sua família e a seus amigos e afastar-se milhas e milhas e, ao mesmo
tempo, carregá-los em seu coração, em sua mente, em seu estômago, pois você não
apenas vive no mundo, mas o mundo vive em você."
— Frederick Buechner,
Telling The Truth
Quando abriu os olhos, Mack
teve de protegê-los imediatamente de uma luz muito intensa que o ofuscou.
Depois ouviu algo.
— Você vai achar muito
difícil olhar diretamente para mim — disse a voz de Sarayu — ou
para Papai. Mas, à medida que sua mente se acostumar às mudanças, será
mais fácil.
Ele estava parado no mesmo
lugar onde fechara os olhos, mas a cabana havia sumido, assim como o cais
e a carpintaria. Estava ao ar livre, no topo de uma pequena colina, sob um
céu noturno brilhante mas sem lua. Podia ver as estrelas em movimento,
tranqüilamente e com precisão, como se houvesse grandes condutores
celestiais coordenando seus movimentos.
Ocasionalmente, como se
recebendo um comando, cometas e chuvas de meteoros rolavam por entre as
estrelas, acrescentando variação à dança. Então Mack viu algumas
estrelas crescerem e mudarem de cor. Era como se o tempo tivesse se
tornado dinâmico e volátil, juntando-se à imagem celestial aparentemente
caótica, mas administrada com precisão.
Ele se virou para Sarayu, que
ainda estava ao seu lado. Apesar de ser difícil olhar diretamente para
ela, agora podia vislumbrar simetria e cores engastadas em padrões, como
se minúsculos diamantes, rubis e safiras tivessem sido costurados numa
roupa de luz que se movia primeiro em ondas e depois se espalhava em
partículas.
— É tudo incrivelmente lindo!
— sussurrou ele.
— É verdade. — A voz de
Sarayu vinha da luz. — Agora, Mackenzie, olhe ao redor.
Ele ficou boquiaberto. Mesmo
na escuridão da noite, tudo tinha clareza e brilhava com halos de luz em
vários tons e cores. Embora a floresta estivesse incendiada de luz e cor,
cada árvore e cada folha eram distintamente visíveis. Pássaros criavam uma
trilha de fogo colorido ao voarem se perseguindo. À distância, um exército
da Criação parecia estar a postos: cervos, ursos, cabritos monteses e
alces majestosos desfilavam perto das bordas da floresta, lontras e
castores no lago, cada um luzindo com cores chamejantes.
Miríades de pequenas
criaturas saltavam e voavam por toda parte, cada uma em sua própria
glória.
Num jorro de chamas, uma
águia-pescadora mergulhou em direção à superfície do lago, mas mudou o
curso no último instante e roçou a superfície, com fagulhas caindo como
neve nas águas. Atrás dela, uma grande truta vestida de arco-íris rompeu
a superfície e mergulhou de volta em meio a um borrifo de cores.
Mack sentiu-se maior do que a
vida, como se pudesse estar presente em todas as partes. Dois filhotes de
urso brincavam ao pé da mãe e, de onde estava, Mack, sem pensar, estendeu
o braço para tocá-los. Recolheu-o de volta, espantado ao perceber que também
chamejava. Olhou as mãos maravilhosamente esculpidas e claramente
visíveis dentro da cascata de cores de luz que parecia cobri-las como
luvas. Examinou o resto do corpo e descobriu que a luz e a cor o envolviam
completamente. Uma veste de pureza que o revestia de liberdade e decência.
Também percebeu que não
sentia dor, nem mesmo nas juntas geralmente doloridas.
Na verdade, nunca havia se
sentido tão bem, tão inteiro. Sua cabeça estava límpida e ele respirava
profundamente os perfumes da noite e das flores.
Uma alegria delirante e
deliciosa cresceu por dentro, e ele flutuou lentamente no ar, retornando
suavemente ao chão. "É como se eu voasse em um sonho", pensou.
Então Mack viu as luzes.
Pontos em movimento emergiam da floresta, convergindo para a campina
abaixo onde ele estava com Sarayu. Agora podia vê-los no alto
das montanhas ao redor, aparecendo e desaparecendo enquanto vinham em sua
direção seguindo caminhos e trilhas invisíveis.
Chegou à campina um exército
de crianças. Não havia velas — elas próprias eram luzes. E, dentro de sua
própria luminosidade, cada uma vestia roupas diferentes que Mack imaginou
que correspondiam a tribos diversas. Eram as crianças da Terra, os
filhos de Papai. Acercaram-se com dignidade e graça silenciosa, rostos
cheios de contentamento e paz, as maiores segurando as mãos das menores.
Por um momento Mack se
perguntou se Missy estaria ali, mas logo desistiu. Achou que, se estivesse
e quisesse ir ao seu encontro, correria para ele. Agora as crianças haviam
formado um círculo enorme na campina, deixando um caminho aberto a
partir das proximidades de onde Mack estava, bem no centro. Pequenos
jorros de fogo e luz, como flashes fotográficos, espocavam lentamente,
acendendo-se quando as crianças riam ou sussurravam. Embora Mack não
fizesse idéia do que estava acontecendo, elas obviamente sabiam.
Emergindo na clareira atrás
delas e formando outro círculo de luzes maiores, apareceram adultos cheios
de cores brilhantes, mas discretas.
De repente a atenção de Mack
foi atraída por um movimento incomum. Parecia que um dos seres de luz no
círculo externo estava tendo alguma dificuldade. Clarões e lanças de cor
violeta e marfim saltavam em forma de breves arcos na noite, sendo
substituídos por tons de orquídea, ouro e vermelho flamejante, jorros
ardentes e luminosos de luz que explodiam indo ao encontro da escuridão ao
redor.
Sarayu deu um risinho.
— O que está acontecendo? —
sussurrou Mack.
— Há um homem com dificuldade
para conter o que está sentindo. A pessoa que não conseguia se controlar
agitava as que estavam próximas. O efeito de ondulação era claramente
visível à medida que a luz flamejante se estendia até o círculo de
crianças. As mais próximas do instigador pareciam reagir conforme as cores
e luzes fluíam delas para ele. As combinações que emergiam eram únicas,
diferentes da cor daquele que estava provocando a agitação.
— Ainda não entendo —
sussurrou Mack de novo.
— Mackenzie, o padrão de cor
e luz é único em cada pessoa; não há dois iguais, nenhum padrão se repete.
Aqui podemos ver uns aos outros verdadeiramente porque cada personalidade
e cada emoção são visíveis como cor e luz.
— Isso é incrível! — exclamou
Mackenzie. — Então por que as cores das crianças são principalmente
brancas?
— Se você se aproximar, verá
que elas têm muitas cores individuais que se fundiram no branco. À medida
que elas amadurecerem e crescerem, as cores irão se tornar mais distintas
e emergirão tons e matizes únicos.
— Incrível! — foi tudo que
Mack conseguiu dizer. Olhou com mais atenção e notou que por trás do
círculo de adultos haviam surgido outros, igualmente espaçados, ao redor
de todo o perímetro. Eram chamas mais altas, aparentemente soprando com as
correntes de ar, e tinham cores semelhantes, de safira e azul-água, com
pedacinhos únicos de outras cores engastados em cada um.
— Anjos — respondeu Sarayu
antes que Mack pudesse perguntar. — Servidores e guardiões.
— Incrível! — exclamou Mack
mais uma vez.
— Há mais, Mackenzie, e isso
vai ajudá-lo a entender o problema que aquele indivíduo está tendo. — Ela
apontou na direção da agitação que continuava, lançando luzes e
cores súbitas e abruptas na direção deles.
— Não somente conseguimos ver
a especificidade de cada pessoa em cor e luz como reagimos também usando
cor e luz. Essa reação é muito difícil de controlar e geralmente não deve
ser contida, como esse homem está tentando. É mais natural deixar que
a reação simplesmente se expresse.
— Não entendo — hesitou Mack.
— Está dizendo que podemos reagir uns aos outros em cores?
— Sim — Sarayu assentiu. —
Cada relacionamento entre duas pessoas é absolutamente único. Por isso
você não pode amar duas pessoas da mesma maneira. Simplesmente não é
possível. Você ama cada pessoa de modo diferente por ela ser quem ela é e
pela especificidade do que ela recebe de você. E quanto mais vocês se
conhecem, mais ricas são as cores desse relacionamento.
Mack escutava ao mesmo tempo
que olhava o que acontecia à volta. Sarayu continuou:
— Vou dar um exemplo para
você entender melhor. Suponha, Mack, que você está com um amigo numa
lanchonete. Você está concentrado no companheiro e, se tiver olhos
para ver, perceberá que os dois estão envolvidos numa variedade de cores e
luzes que marcam não apenas o que cada um é especificamente, mas também a
especificidade do relacionamento entre vocês e das emoções que estão
experimentando.
— Mas... — Mack começou a
perguntar e foi interrompido.
— Mas suponha — continuou
Sarayu — que outra pessoa que você ama entre na lanchonete e, embora
esteja envolvido pela conversa com o primeiro amigo, você nota a entrada do
outro. De novo, se você tivesse olhos para ver a realidade mais
ampla, testemunharia que uma combinação única de cor e luz saltaria de
você e se enrolaria no que acabou de chegar, representando você em outra
forma de amá-lo e recebê-lo. Mais uma coisa, Mackenzie: a especificidade
não é somente visual, mas também sensorial. Você pode sentir, cheirar e
até mesmo sentir o gosto dela.
— Adoro isso! — exclamou
Mack. — Mas, a não ser por aquele lá — apontou na direção das luzes
agitadas ao redor do adulto —, por que todos estão calmos? Eu imaginaria
que houvesse cor por todo lado. Eles não se conhecem?
— A maioria se conhece muito
bem, mas estão aqui para uma comemoração que não tem nada a ver com eles
nem com os relacionamentos de uns com os outros, pelo menos não
diretamente — explicou Sarayu. — Eles estão esperando.
— O quê?
— Você verá logo — respondeu
Sarayu e era óbvio que ela não diria mais nada sobre o assunto.
— Então por que aquele está
tendo tanta dificuldade e por que ele parece concentrado em nós?
— Mackenzie — disse Sarayu
com gentileza —, ele não está concentrado em nós, está concentrado em
você.
— O quê? — Mack ficou pasmo.
— Aquele que tem tanta
dificuldade para se conter é o seu pai.
Uma onda de emoções, uma
mistura de raiva e anseio varreu Mack.
Nesse momento as cores de seu
pai explodiram da campina e o envolveram. Ele ficou perdido num jorro de
rubi e vermelhão, magenta e violeta, à medida que a luz e a dor faziam um
redemoinho ao seu redor e o cobriam. E de algum modo, no meio da tempestade
que explodia, ele se viu correndo pela campina para encontrar o pai,
correndo para a fonte de cores e emoções. Era um menininho querendo o pai
e, pela primeira vez, não teve medo. Estava correndo, sem se importar com
coisa alguma além do objeto do desejo de seu coração, e o encontrou. Seu
pai estava de joelhos, coberto de luz, lágrimas brilhando como uma
cachoeira de diamantes e jóias nas mãos que cobriam o rosto.
— Papai! — gritou Mack e
jogou-se para o homem que nem podia olhar o filho.
No uivo de vento e chamas,
Mack segurou o rosto do pai com as duas mãos, forçando-o a olhá-lo para
que pudesse gaguejar as palavras que sempre quisera dizer:
"Papai, desculpe! Papai, eu te amo!"
A luz de suas palavras
pareceu explodir, afastando a escuridão das cores do pai, transformando-as
em
vermelho-sangue. Os dois trocaram palavras soluçantes
de confissão e perdão. E um amor maior do que qualquer um dos dois os
curou.
Finalmente se levantaram
juntos, o pai abraçando o filho como nunca pudera fazer antes. Foi então
que Mack notou a onda de uma canção passando sobre os dois, como se
penetrasse no lugar sagrado onde ele estava com o pai. Abraçados, incapazes de
falar em meio às lágrimas, eles ouviram a canção de reconciliação que
iluminava o céu noturno. Uma fonte de cor brilhante começou a jorrar em
arco entre as crianças, sobretudo entre as que haviam sofrido mais, e
ondulou ao passar de cada uma para a próxima, levada pelo vento, até que
todo o campo estivesse inundado de luz e música.
De algum modo Mack soube que
não era um momento para conversar e que seu tempo com o pai estava
passando rapidamente. Para ele, a nova leveza que sentia era eufórica.
Beijando o pai nos lábios, virou-se e voltou para a pequena colina onde
Sarayu o esperava. Enquanto passava pelas fileiras de crianças, pôde
sentir o toque e as cores delas envolvendo-o rapidamente e ficando para
trás. De algum modo ele já era conhecido e amado ali.
Quando chegou a Sarayu, ela o
abraçou também e ele deixou que ela o segurasse enquanto continuava a
chorar. Quando recuperou uma leve tranqüilidade, virou-se para olhar de
novo a campina, o lago e o céu noturno. Um silêncio baixou. A antecipação
era palpável. De repente, à direita, saindo da escuridão, surgiu Jesus e o
pandemônio irrompeu. Ele vestia uma roupa branca e usava na cabeça uma
coroa simples de ouro, mas era, em cada centímetro do seu ser, o rei do
universo.
Seguiu pelo caminho que se
abriu à sua frente até chegar ao centro — o centro de toda a Criação, o
homem que é Deus e o Deus que é homem. Luz e cor dançavam e teciam uma
tapeçaria de amor para ele pisar. Alguns choravam, dizendo palavras de
amor, enquanto outros simplesmente permaneciam de mãos levantadas. Muitos
daqueles cujas cores eram as mais ricas e profundas estavam deitados com o
rosto no chão. Tudo que respirava cantava uma canção de amor e
agradecimento sem fim. Nessa noite o universo era como devia ser.
Quando chegou ao centro,
Jesus parou para olhar em
volta. Seus olhos pousaram em Mack, que, parado na
pequena colina, ouviu Jesus sussurrar em seu ouvido:
— Mack, eu gosto
especialmente de você. — Foi tudo que Mack conseguiu suportar enquanto
caía no chão dissolvendo-se numa onda de lágrimas jubilosas. Não podia
se mexer, preso no abraço de Jesus, feito de amor e ternura.
Então ouviu Jesus dizer alto
e claro, mas de modo muito gentil e convidativo: "Venham!"
E eles foram, as crianças
primeiro, depois os adultos, cada um por sua vez, rindo,
falando, abraçando-se e cantando com seu Jesus. O tempo pareceu parar
enquanto a dança celestial prosseguia. E então cada um foi saindo até não
restar ninguém, a não ser as ardentes sentinelas azuis e os animais. Jesus
caminhou entre eles, chamando cada um pelo nome, e então os animais e seus
filhotes voltaram para as tocas, os ninhos e os leitos nas pastagens.
Por fim estavam novamente
sozinhos. O grito selvagem e assombroso de um mergulhão ecoando sobre o
lago pareceu sinalizar o fim da celebração, e as sentinelas desapareceram
ao mesmo tempo. Os únicos sons que restavam eram os do coro de grilos e sapos
retomando suas canções de culto na margem da água e nas campinas ao redor.
Sem uma palavra, os três se
viraram e retornaram para a cabana, que de novo se tornara visível para
Mack. Como uma cortina sendo puxada sobre seus olhos, de repente a
visão voltou ao normal. Ele teve uma sensação de perda e de ansiedade e
chegou a ficar um pouco triste, até que Jesus se aproximou, pegou sua mão
e apertou-a para assegurar que tudo era como devia ser.
16. Manhã de tristezas
Um Deus infinito pode se
dar inteiro a cada um de seus filhos.
Ele não se distribui de
modo que cada um tenha uma parte,
mas a cada um ele se dá
inteiro, tão integralmente
como se não houvesse
outros.
— A. W. Tozer
Mack teve a sensação de que
acabara de entrar num sono profundo, sem sonhos, quando sentiu uma mão
sacudindo-o para acordar.
— Mack, acorde. É hora de
irmos. — A voz era familiar, mas profunda, como de alguém que também
tivesse acabado de acordar.
— Hein? — gemeu ele. — Que
horas são? — murmurou enquanto tentava descobrir onde estava e o que
estava fazendo.
— É hora de ir! — repetiu o
sussurro.
Mack saiu da cama resmungando
e procurou até encontrar o interruptor de luz. Depois da escuridão de
breu, a claridade foi ofuscante e ele demorou até conseguir abrir os olhos e
se esforçar para ver o visitante.
O homem parado junto dele se
parecia um pouco com Papai: digno, mais velho, magro e mais alto do que
Mack. O cabelo muito branco estava preso num rabo-de-cavalo, e o bigode e
o cavanhaque eram grisalhos. Camisa xadrez com mangas enroladas, jeans e
botas de caminhada completavam a vestimenta de alguém pronto para pôr o pé
na trilha.
— Papai? — perguntou Mack.
— Sim, filho.
Mack balançou a cabeça.
— Ainda está brincando
comigo, não é?
— Sempre — disse ele com um
sorriso. E, respondendo à pergunta seguinte de Mack antes que ela fosse
feita: — Nesta manhã você vai precisar de um pai. Vamos indo. Tem tudo de
que você precisa na cadeira e na mesa ao pé da sua cama. Encontro-o
na cozinha, onde você pode comer alguma coisa antes de sairmos.
Mack assentiu. Não se incomodou
em perguntar aonde estaria indo. Se Papai desejasse que ele soubesse,
teria dito. Vestiu rapidamente as roupas do tamanho exato, semelhantes às
de Papai, e calçou um par de botas de caminhada. Parou rapidamente no
banheiro para se lavar e entrou na cozinha.
Jesus e Papai estavam perto
da bancada, parecendo muito mais descansados do que Mack. Ele já ia falar
quando Sarayu entrou pela porta dos fundos com um grande embrulho. Parecia
um longo saco de dormir, amarrado com uma tira presa em cada ponta para
ser carregado facilmente. Entregou-o a Mack e ele sentiu imediatamente
um perfume maravilhoso que vinha do embrulho. Era uma mistura de ervas e
flores aromáticas que ele pensou reconhecer. Pôde sentir cheiro de canela
e de hortelã junto com sais e frutas.
— Isso é um presente para
mais tarde. Papai vai lhe mostrar como usá-lo. — Ela sorriu e ele sentiu
uma espécie de abraço.
— Você pode carregar —
acrescentou Papai. — Você colheu essas plantas com Sarayu ontem.
— Meu presente vai esperar
aqui até sua volta — sorriu Jesus e também abraçou Mack.
Os dois saíram pelos fundos e
Mack ficou sozinho com Papai, que estava fritando ovos com bacon.
— Papai — perguntou Mack,
surpreso ao ver como havia ficado fácil chamá-lo assim. — Não vai comer?
— Nada é um ritual,
Mackenzie. Você precisa disso, eu não. — Ele sorriu. — Mastigue devagar.
Você tem bastante tempo e comer depressa demais não é bom para a digestão.
Mack comeu devagar e em
silêncio, simplesmente desfrutando a presença de Papai.
Num determinado momento, Jesus
apareceu para informar que havia posto as ferramentas de que precisariam
do lado de fora da porta. Papai agradeceu, Jesus lhe deu um beijo nos
lábios e saiu pela porta dos fundos.
Mack estava ajudando a limpar
os poucos pratos quando perguntou:
— Você realmente o ama, não
é? Quero dizer, Jesus.
— Sei de quem você está
falando — respondeu Papai, rindo. Parou de lavar a frigideira. — De todo
o coração! Imagino que haja algo muito especial num filho unigênito. —
Papai piscou para Mack e continuou: — Isso faz parte do modo único pelo
qual eu o conheço.
Quando acabaram, Mack
acompanhou Papai para fora. O alvorecer se anunciava nos picos das
montanhas, as cores do nascer do sol invadindo o cinza da noite. Mack pegou
o presente de Sarayu e o pendurou no ombro. Papai lhe entregou uma pequena
picareta e pôs uma mochila às costas. Em seguida pegou uma pá com uma das
mãos, uma bengala com a outra e, sem dizer uma palavra, passou pelo jardim
e pelo pomar indo na direção do lado direito do lago.
Quando chegaram ao início da
trilha havia luz suficiente para andar com facilidade.
Ali Papai parou e apontou a
bengala para uma árvore fora do caminho. Mack pôde ver que alguém marcara
a árvore com um pequeno arco vermelho quase imperceptível.
Aquilo não significava nada
para ele e Papai não deu explicação. Em vez disso, virou-se e seguiu pelo
caminho, andando com facilidade.
O presente de Sarayu era
relativamente leve e Mack usou o cabo da picareta como bengala. O caminho
levou-os a atravessar um dos riachos e a entrar mais fundo na floresta.
Mack podia ouvir Papai trauteando uma cantiga, mas não a reconheceu.
Enquanto andavam, Mack pensou
na miríade de coisas que experimentara nos dias anteriores. As conversas
com cada um dos três, juntos e separados, o tempo passado com Sophia, as
orações de que havia participado, a contemplação do céu estrelado
com Jesus, a caminhada pelo lago. A comemoração da noite anterior
completara tudo, até mesmo a reconciliação com seu pai — tanta cura com
tão poucas palavras. Era difícil absorver tal quantidade de experiências e
informações.
Enquanto pensava e avaliava o
que havia aprendido, Mack percebeu quantas perguntas ainda tinha para
fazer. Mas sentia que ainda não era hora. Sabia apenas que nunca
mais seria o mesmo e se perguntava o que significariam essas mudanças para
Nan e seus filhos, especialmente Kate. Mas havia uma coisa que o estava
incomodando. Por fim rompeu o silêncio.
— Papai?
— Sim, filho.
— Sophia me ajudou a entender
muita coisa sobre Missy ontem. E realmente foi útil conversar com Papai.
Ah, quero dizer, com você. — Mack estava confuso, mas Papai parou e sorriu
como se entendesse. Mack prosseguiu: — É estranho eu precisar falar sobre
isso com você também. Quero dizer, você é muito mais do que um pai, se é
que isso faz sentido.
— Entendo, Mackenzie. Estamos
completando o círculo. Perdoar seu pai ontem foi extremamente importante
para você poder me conhecer como pai hoje. Não precisa explicar mais.
De algum modo Mack sabia que
estavam chegando ao fim de uma jornada e que Papai estava trabalhando para
ajudá-lo a dar os últimos passos. Papai prosseguiu:
— Não havia possibilidade de
criar a liberdade sem um custo, como você sabe. — Papai olhou para baixo,
com as cicatrizes visíveis marcadas indelevelmente nos pulsos. — Eu sabia
que minha Criação iria se rebelar, que escolheria a independência e a
morte, e sabia o que me custaria abrir um caminho para a reconciliação. A
independência do ser humano liberou o que parece a você um mundo de caos
aleatório e apavorante. Eu poderia ter impedido o que aconteceu com Missy?
A resposta é sim.
Mack olhou para Papai, os
olhos fazendo a pergunta que não precisava ser verbalizada. Ele continuou:
— Primeiro, se não tivesse
havido a Criação, não haveria essas questões.
Em segundo lugar, eu poderia
ter optado por interferir ativamente no que aconteceu com ela. Jamais
considerei a possibilidade de deixar de criar, e interferir no caso de
Missy não era uma opção, por causa de propósitos que você não pode entender
agora. Nesse ponto tudo que tenho a lhe oferecer como resposta é o meu
amor, minha bondade e meu relacionamento com você. Eu não tive a intenção
de fazer Missy morrer, mas isso não significa que não possa usar a morte
dela para o bem.
Mack balançou a cabeça,
triste.
— Está certo. Não entendo
direito. Por um segundo acho que vou compreender, mas depois toda a dor da
perda parece crescer e me dizer que o que eu compreendi simplesmente não
pode ser verdade. Mas confio em você...
De repente irrompeu esse novo
pensamento, surpreendente e maravilhoso.
— Papai, eu confio em você!
Papai sorriu de volta para
ele.
— Eu sei, filho, eu sei.
Virou-se e voltou a caminhar
pela trilha, seguido por Mack, agora com o coração mais leve e apaziguado.
Logo começaram uma subida relativamente fácil e o ritmo diminuiu. Ocasionalmente
Papai parava e batia numa pedra ou numa árvore grande do caminho,
indicando em cada uma a presença do pequeno arco vermelho. Antes que Mack
pudesse fazer a pergunta óbvia, Papai se virava e continuava pela trilha.
À medida que avançavam, as
árvores iam rareando e Mack pôde vislumbrar campos rochosos onde
deslizamentos de terra haviam tirado trechos da floresta algum tempo antes
de a trilha ser aberta. Pararam uma vez para um rápido descanso e
Mack aproveitou para beber um pouco da água fresca que Papai colocara nos
cantis.
Pouco depois da parada, o
caminho ficou bem íngreme e o ritmo da caminhada diminuiu ainda mais. Mack
achou que deviam ter andado por quase duas horas quando saíram do meio das
árvores. Para chegar à trilha delineada na encosta adiante teriam
de passar por uma grande área de rochas e pedregulhos.
De novo papai parou, pousou
sua mochila e enfiou a mão dentro.
— Estamos quase chegando,
filho — falou, entregando um cantil a Mack.
— Estamos? — perguntou Mack,
olhando para o solitário e desolado terreno rochoso à frente.
— Estamos! — foi só o que
Papai respondeu.
Papai escolheu uma pequena
pedra perto do caminho e, colocando a mochila e a pá ao lado, sentou-se.
Parecia perturbado.
— Quero mostrar uma coisa que
vai ser muito dolorosa para você.
— Está bem. — O estômago de
Mack começou a se revirar enquanto ele se sentava e pousava a picareta e o
presente de Sarayu sobre os joelhos. Os aromas, reforçados pelo sol da
manhã, preencheram seus sentidos com beleza e trouxeram alguma paz. — O
que é?
— Para ajudá-lo a ver, quero
tirar mais uma coisa que obscurece seu coração.
Mack soube imediatamente o
que era e olhou para o chão entre seus pés. Papai falou gentilmente,
tranqüilizando-o.
— Filho, isso não é para
envergonhar você. Não uso humilhação, nem culpa, nem condenação. Elas não
produzem uma fagulha de plenitude ou de justiça e por isso foram pregadas
em Jesus na cruz.
Esperou, deixando que esse
pensamento penetrasse em Mack e lavasse parte do sentimento de vergonha
que ele sentia. Depois continuou:
— Hoje estamos na trilha da
cura para encerrar essa parte da sua jornada. Não só para você, mas para
outras pessoas também. Hoje vamos jogar uma pedra grande no lago e
as ondulações vão chegar a lugares que você não imagina. Você já sabe o
que eu quero, não sabe?
— Acho que sim — murmurou
Mack, sentindo emoções que subiam aceleradas, saindo de um cômodo trancado
em seu coração.
— Filho, você precisa falar,
precisa verbalizar isso.
Agora não havia como se
conter e, enquanto lágrimas quentes jorravam de seus olhos, Mack,
soluçando, começou a confessar.
— Papai — ele disse chorando
—, como posso perdoar aquele filho da puta que matou minha Missy? Se ele
estivesse aqui hoje, não sei o que eu faria. Sei que não é certo, mas
quero feri-lo como ele me feriu... se eu não puder ter justiça, ainda
quero vingança.
Papai simplesmente deixou a
torrente sair de Mack, esperando que a onda passasse.
— Mack, perdoar esse homem é
entregá-lo a mim e permitir que eu o redima.
— Redimi-lo? — De novo Mack
sentiu o fogo da raiva e da dor. — Não quero que você o redima! Quero que
o machuque, castigue, mande para o inferno... — Sua voz ficou no ar.
Papai esperou com paciência
que as emoções passassem.
— Estou travado, Papai.
Simplesmente não posso esquecer o que ele fez, posso? — implorou Mack.
— Perdoar não significa
esquecer, Mack. Significa soltar a garganta da outra pessoa.
— Mas eu achava que você
esquecia os nossos pecados.
— Mack, eu sou Deus. Não
esqueço nada. Sei de tudo. Para mim, esquecer é optar por me limitar.
Filho — a voz de Papai ficou baixa e Mack olhou-o diretamente nos
olhos profundos e castanhos —, por causa de Jesus, não há agora nenhuma
lei exigindo que eu traga seus pecados à mente. Eles se foram e não
interferem no nosso relacionamento.
— Mas esse homem...
— Ele também é meu filho.
Quero redimi-lo.
— E depois? Você quer que eu
simplesmente o perdoe, que fique tudo bem e que nós nos tornemos amigos? —
disse Mack baixinho, mas com sarcasmo.
— Você não tem relacionamento
com esse homem, pelo menos ainda não tem. O perdão não estabelece um
relacionamento. Em Jesus eu perdoei todos os humanos por seus pecados
contra mim, mas só alguns escolheram relacionar-se comigo. Mackenzie,
você não vê que o perdão é um poder incrível, um poder que você compartilha
conosco, um poder que Jesus dá a todos em quem ele reside, para que a
reconciliação possa crescer? Quando Jesus perdoou os que o pregaram à cruz,
eles deixaram de dever qualquer coisa, tanto a ele quanto a Mim. No meu
relacionamento com aqueles homens, jamais falarei do que eles fizeram nem
irei envergonhá-los ou constrangê-los.
— Não creio que eu seja capaz
de fazer isso — respondeu Mack baixinho.
— Quero que você faça. O
perdão existe em primeiro lugar para aquele que perdoa, para liberá-lo de
algo que vai destruí-lo, que vai acabar com sua alegria e capacidade de
amar integral e abertamente. Você acha que esse homem se importa com a dor
e o tormento que lhe causou? No mínimo ele se alimenta com seu sofrimento.
Você não quer cortar isso? Ao fazê-lo, irá libertar o homem de um fardo
que ele carrega, quer saiba ou não, quer reconheça ou não. Quando você
opta por perdoar o outro, você o ama melhor.
— Eu não o amo.
— Hoje não, você não o ama.
Mas eu amo, Mack, não pelo que ele se tornou, mas pela criança mutilada e
deformada pela dor. Quero ajudá-lo a assumir a natureza que encontra mais
poder no amor e no perdão do que no ódio.
— Então isso significa — de
novo Mack sentia um pouco de raiva pela direção que a conversa havia
tomado — que, se eu perdoar esse homem, estarei deixando que ele brinque
com Kate ou com minha primeira neta?
— Mackenzie — Papai foi forte
e firme. — Eu já lhe disse que o perdão não cria um relacionamento. A não
ser que as pessoas falem a verdade sobre o que fizeram e mudem a mente e o
comportamento, não é possível um relacionamento de confiança. Quando você
perdoa alguém, certamente liberta essa pessoa do julgamento, mas, se não
houver uma verdadeira mudança, não pode ser estabelecido nenhum
relacionamento verdadeiro.
— Então o perdão não exige
que eu finja que o que ele fez nunca aconteceu?
— Como seria possível? Você
perdoou seu pai ontem à noite. Algum dia você vai esquecer o que ele lhe
fez?
— Acho que não.
— Mas agora você pode amá-lo,
apesar disso. A mudança dele permite. O perdão não exige de modo algum que
você confie naquele a quem perdoou. Mas, caso essa pessoa finalmente
confesse e se arrependa, você descobrirá em seu coração um milagre que
irá lhe permitir estender a mão e começar a construir uma ponte de
reconciliação entre os dois. Algumas vezes, e isso talvez pareça
incompreensível para você agora, essa estrada pode até mesmo levar ao
milagre da confiança totalmente restaurada.
Mack escorregou para o chão e
se recostou na pedra onde estivera sentado. Examinou a terra sob seus pés.
— Papai, acho que entendo o
que você está dizendo. Mas parece que, se eu perdoar esse sujeito, ele vai
ficar livre. Como posso desculpá-lo pelo que fez? É justo para Missy
deixar de ficar com raiva dele?
— Mackenzie, o perdão não
desculpa nada. Acredite, esse homem pode ser qualquer coisa, menos livre.
E você não tem o dever de fazer justiça nesse caso. Eu cuidarei disso. E,
quanto a Missy, ela já o perdoou.
— Já? — Mack nem levantou os
olhos. — Como pôde?
— Por causa de minha presença
nela. É o único modo pelo qual o verdadeiro perdão é possível.
Mack sentiu Papai sentar-se
ao seu lado, no chão, mas não olhou para cima. Enquanto os braços de Papai
o envolviam, começou a chorar.
— Deixe isso tudo sair —
ouviu o sussurro de Papai e finalmente se entregou. Fechou os olhos
enquanto as lágrimas jorravam. As lembranças de Missy inundaram de novo sua
mente: visões de livros de colorir, lápis de cor, vestido rasgado e
ensangüentado. Chorou até ter derramado toda a escuridão, todo o anseio e a
perda, até não restar nada.
Com os olhos fechados,
balançando para trás e para a frente, implorou:
— Me ajude, Papai. Me ajude!
O que eu faço? Como posso perdoá-lo?
— Diga a ele.
Mack levantou os olhos, como
que esperando ver um homem que nunca havia encontrado.
Mas não havia ninguém.
— Como, Papai?
— Só diga em voz alta. Há
poder no que meus filhos declaram.
Mack começou a sussurrar,
primeiro hesitante, depois com convicção crescente:
— Eu te perdôo. Eu te perdôo.
Eu te perdôo.
Papai o abraçou
com força.
— Mackenzie, você é uma
alegria enorme.
Quando ele finalmente se
controlou, Papai lhe entregou um lenço umedecido para limpar o rosto.
Depois Mack se levantou, a princípio meio inseguro.
— Uau! — disse, rouco,
tentando encontrar uma palavra capaz de descrever a jornada emocional por
que havia passado. Sentia-se vivo.
Entregou o lenço de volta a
Papai e perguntou: — Então, tudo bem se eu ainda sentir raiva?
Papai foi rápido em
responder:
— Sem dúvida! O que ele fez
foi terrível. Ele causou uma dor tremenda a muitas pessoas. Isso é errado e a
raiva é a resposta certa para algo tão errado. Mas não deixe que a raiva,
a dor e a perda que você sente o impeçam de perdoar e de tirar as mãos do
pescoço dele.
Papai pegou sua mochila e a
colocou no ombro.
— Filho, talvez você tenha de
declarar seu perdão uma centena de vezes no primeiro e no segundo dia, mas
a cada dia serão menos vezes, até que um dia você perceberá que perdoou
completamente. E vai chegar o momento em que rezará pela plenitude dele e
o entregará a mim, para que meu amor queime na vida dele qualquer vestígio
de corrupção. Por mais incompreensível que possa parecer no momento, talvez
um dia você conheça esse homem num contexto diferente.
Mack gemeu. Por mais que tudo
que escutava lhe revirasse o estômago, no coração ele sabia que era verdade.
Os dois se levantaram e Mack se virou na trilha para voltar na direção de
onde tinham vindo.
— Mack, nós não terminamos.
Mack parou.
— Verdade? Achei que era por
isso que você me trouxe aqui.
— Era, mas eu lhe disse que
tinha uma coisa para mostrar, uma coisa que você me pediu para fazer.
Estamos aqui para levar Missy para casa.
De repente tudo fez sentido.
Ele olhou o presente de Sarayu e percebeu para que servia. Em algum lugar
naquela paisagem desolada o assassino havia escondido o corpo de Missy e
eles tinham vindo recuperá-lo.
— Obrigado — foi tudo que
pôde dizer enquanto de novo uma cascata de lágrimas rolava por seu rosto,
como se viesse de um reservatório infinito. — Odeio todas essas lágrimas,
esse negócio de ficar chorando como um idiota — ele gemeu.
— Ah, filho — disse Papai com
ternura. — Jamais desconsidere a maravilha das suas lágrimas. Elas podem
ser águas curativas e uma fonte de alegria. Algumas vezes são as melhores
palavras que o coração pode falar.
Mack parou e encarou Papai.
Jamais havia olhado para um amor, uma delicadeza, uma esperança e uma
alegria tão puras.
— Mas você prometeu que um
dia não haverá mais lágrimas. Estou ansioso por isso.
Papai sorriu, encostou os
dedos no rosto de Mack e gentilmente enxugou as faces marcadas pelas
lágrimas.
— Mackenzie, este mundo está
cheio de lágrimas, mas, se você lembra, prometi que seria Eu quem iria
enxugá-las de seus olhos.
Mack conseguiu sorrir
enquanto sua alma continuava a se derreter e se curar no amor desse Pai.
— Aqui — disse Papai e lhe
entregou um cantil. — Tome um bom gole. Não quero ver você se encolhendo como
uma ameixa seca antes de tudo isso acabar.
Mack não conseguiu evitar uma
gargalhada que a princípio pareceu deslocada, mas que depois, pensando
bem, soube que era perfeita. Era um riso de esperança e de
alegria restauradas... do processo de encerramento.
Papai foi à frente. Antes de
deixar o caminho principal e seguir por uma trilha que penetrava na massa
de pedras espalhadas, parou e com sua bengala bateu numa pedra grande. Indicou
para Mack o mesmo arco vermelho. E Mack descobriu que o caminho que
estavam seguindo fora marcado pelo homem que levara sua filha. Enquanto
caminhavam, Papai explicou a Mack que nenhum corpo fora encontrado porque
esse homem procurava lugares para escondê-los meses antes de seqüestrar as
meninas.
No meio da área pedregosa,
Papai saiu do caminho e entrou num labirinto de pedras e paredões da
montanha, não sem antes apontar novamente para a marca, agora
familiar, numa face de rocha próxima. Mack podia ver que, a não ser que a
pessoa soubesse o que estava procurando, as marcas passariam facilmente
despercebidas. Dez minutos depois Papai parou diante de uma fenda onde
dois afloramentos de pedra se encontravam.
Havia uma pequena pilha de
pedregulhos na base, um deles com o símbolo do assassino.
— Pode me ajudar? — pediu a
Mack e começou a retirar as pedras maiores. — Isso esconde a entrada de
uma caverna.
Assim que a entrada ficou
livre, eles tiraram com a picareta e a pá a terra endurecida e o cascalho
que bloqueavam a passagem. De repente o resto de entulho cedeu e apareceu
a entrada de uma pequena caverna que provavelmente já fora a toca de algum
animal durante a hibernação. Um odor rançoso de podridão saiu, deixando
Mack engasgado.
Papai enfiou a mão na extremidade
do rolo dado por Sarayu e tirou um pedaço de pano do tamanho de um lenço
de cabeça. Amarrou-o em volta da boca e do nariz de Mack e imediatamente
um cheiro doce cortou o fedor da caverna.
Só havia espaço suficiente
para entrarem se arrastando. Tirando uma poderosa lanterna da mochila,
Papai se enfiou primeiro no buraco, com Mack logo atrás, ainda levando
o presente de Sarayu.
Só demoraram alguns minutos
para encontrar o tesouro agridoce. Num pequeno afloramento de rocha, Mack
viu o corpo que ele presumiu ser o de Missy, de rosto para cima, coberto
por um pano sujo e apodrecido. No mesmo instante soube que a verdadeira
Missy não estava ali.
Papai desembrulhou o que
Sarayu lhes dera e no mesmo instante a toca se encheu de maravilhosos
perfumes vivos. O pano por baixo do corpo de Missy era frágil, mas
Mack conseguiu levantá-la e colocá-la no meio de todas as flores e
especiarias. Então Papai a enrolou com ternura e levou-a até a entrada.
Mack saiu primeiro e Papai lhe passou o tesouro. Nenhuma palavra fora
dita, a não ser as de Mack, que murmurava baixinho:
— Eu te perdôo... eu te
perdôo...
Antes de deixarem o local,
Papai pegou a rocha com o arco vermelho e colocou-a sobre a entrada. Mack
não prestou muita atenção, pois estava absorvido pelos próprios pensamentos,
enquanto segurava com ternura o corpo da filha junto ao coração.
17. Escolhas do coração
Não há sofrimento na
Terra que o Céu não possa curar.
— Autor desconhecido
Chegaram de volta ao chalé em
pouco tempo. Jesus e Sarayu esperavam perto da porta dos fundos. Jesus
aliviou Mack gentilmente do fardo e juntos foram à carpintaria onde ele
estivera trabalhando. Mack não entrava ali desde que chegara e ficou
surpreso com a simplicidade do lugar. A luz, atravessando grandes janelas,
captava e refletia o pó de madeira que ainda pairava no ar. As paredes e
as bancadas, cobertas com todo tipo de ferramentas, estavam dispostas
para facilitar as atividades da carpintaria. Este era claramente o
santuário de um mestre artesão.
À frente deles estava o trabalho
que Jesus estivera fazendo, uma obra de arte para guardar os restos de
Missy. Ao examinar a caixa, Mack reconheceu imediatamente os relevos na
madeira.
Detalhes da vida de Missy
estavam nela esculpidos. Havia um relevo de Missy com seu gato, Judas, e outro
com Mack sentado numa cadeira lendo uma história para ela. Toda a
família aparecia em cenas trabalhadas na lateral e em cima: Nan e Missy
fazendo bolinhos, a viagem ao lago Wallowa com o teleférico subindo a
montanha e até Missy colorindo o livro na mesa do acampamento, com uma
representação caprichada do broche de joaninha que o assassino deixara.
Havia também um relevo exato de Missy de pé sorrindo e olhando para a
cachoeira, ciente de que seu pai estava do outro lado. Entremeados com as
cenas estavam as flores e animais prediletos de Missy.
Mack abraçou Jesus e este lhe
sussurrou ao ouvido:
— Foi Missy quem ajudou a
escolher as cenas.
O abraço de Mack ficou mais
forte e demorado.
— Temos o lugar perfeito
preparado para o corpo dela — disse Sarayu, que se aproximara. —
Mackenzie, é no nosso jardim.
Com grande cuidado puseram os
restos de Missy na caixa, colocando-a num leito de grama e musgo macios, e
depois encheram com as flores e especiarias do embrulho de Sarayu.
Fecharam a tampa, Jesus e Mack pegaram as extremidades e levaram o
caixão para fora, seguindo Sarayu até o local do pomar que Mack ajudara a
limpar. Ali, entre cerejeiras e pessegueiros, rodeado por orquídeas e
lírios, fora aberto um buraco no lugar onde Mack havia desenraizado os
arbustos floridos na véspera. Papai esperava-os. Assim que a caixa
enfeitada foi posta gentilmente no chão, ele deu um grande abraço em
Mack, que retribuiu com a mesma intensidade.
Sarayu se adiantou e disse
com um floreio e uma reverência:
— Sinto-me honrada em cantar
a canção que Missy compôs exata mente para esta ocasião.
E começou a cantar com uma
voz que parecia vento de outono: um som de folhas balançando e florestas
adormecendo lentamente, tons da noite chegando e uma promessa de novos
dias. Era a cantiga insistente que ele ouvira Sarayu e Papai cantarolarem
antes.
Agora Mack escutava
as palavras de sua filha:
Respire em mim...
fundo,
Para que eu
respire... e viva.
E me abrace apertado
para eu dormir
Suavemente segura
por tudo que você dá.
Venha me beijar, vento,
e tire meu fôlego
Até que você e
eu sejamos um só,
E dançaremos entre
os túmulos
Até que toda a
morte se vá.
E ninguém sabe que
existimos
Nos braços um do
outro,
A não ser
Aquele que soprou o hálito
Que me esconde
livre do mal
Venha me beijar,
vento, e tire meu fôlego
Até que você e
eu sejamos um só,
E dançaremos entre
os túmulos
Até que toda
a morte se vá.
Quando ela terminou houve
silêncio, e depois Deus, todos os três, disseram simultaneamente:
— Amém.
Mack ecoou o amém, pegou uma
das pás e, com a ajuda de Jesus, começou a encher o buraco, cobrindo o
caixão onde descansava o corpo de Missy.
Quando a tarefa terminou,
Sarayu enfiou a mão dentro da roupa e pegou seu frasco pequeno e frágil.
Derramou algumas gotas da preciosa coleção na mão e começou a espalhar as
lágrimas de Mack no solo rico e preto sob o qual dormia o corpo de Missy.
As gotas caíram como diamantes e rubis, e onde pousavam brotavam flores
instantaneamente, abrindo-se ao sol luminoso.
Então Sarayu parou um
momento, olhando com intensidade uma pérola que repousava em sua mão, uma
lágrima especial, e depois deixou-a cair no centro do terreno. Imediatamente
uma pequena árvore rompeu a terra e começou a se desdobrar, jovem,
luxuriante e espantosa, crescendo e amadurecendo até se abrir em brotos e
flores. Então Sarayu, no seu modo de brisa sussurrante, virou-se e sorriu
para Mack, que estivera olhando hipnotizado.
— É uma árvore da vida, Mack,
crescendo no jardim do seu coração.
Papai chegou perto e
pôs o braço em seu ombro.
— Missy é incrível, você
sabe. Ela o ama muitíssimo.
— Sinto uma falta terrível
dela... ainda dói demais.
— Eu sei, Mackenzie. Eu sei.
* * *
Era pouco mais de meio-dia
quando os quatro retornaram do jardim e entraram de novo no chalé. Não
havia nada preparado na cozinha nem qualquer comida sobre a mesa de
jantar. Papai levou-os para a sala de estar, onde sobre a mesinha de centro
havia uma taça de vinho e um pão recém-assado. Sentaram-se todos, menos
Papai, que permaneceu de pé. Ele dirigiu suas palavras a Mack.
— Mackenzie, temos uma coisa
para você refletir. Enquanto esteve conosco, você foi curado e aprendeu
muito.
— Acho que isso é um
eufemismo — riu Mack.
Papai sorriu.
— Você sabe o quanto nós
gostamos de você. Mas agora há uma escolha a ser feita. Você pode permanecer
conosco e continuar a crescer e aprender ou pode retornar à sua outra
casa, a Nan, seus filhos e amigos.
De qualquer modo, prometo que sempre estarei com você.
Mack se recostou e pensou.
— E Missy? — perguntou.
— Bom, se você optar por
ficar, irá vê-la esta tarde. Ela virá também. Mas, se escolher deixar este
lugar, também estará escolhendo deixar Missy para trás.
— Essa não é uma escolha
fácil — Mack suspirou.
A sala ficou em silêncio
durante vários minutos enquanto Papai dava a Mack espaço para lutar com
seus próprios pensamentos e desejos. Por fim, ele perguntou:
— O que Missy iria querer?
— Embora adorasse ficar com
você hoje, ela vive onde não há impaciência. Ela não se incomoda em
esperar.
— Eu adoraria ficar com ela.
— Mack sorriu diante do pensamento. — Mas seria muito duro para Nan e meus
outros filhos. Deixe-me perguntar uma coisa. O que eu faço lá em casa é
importante? Eu apenas trabalho e cuido de minha família e dos amigos...
Sarayu o interrompeu:
— Mack, se alguma coisa
importa, tudo importa. Como você é importante, tudo que faz é importante.
Todas as vezes que você perdoa, o universo muda; cada vez que estende a
mão e toca um coração ou uma vida, o mundo se transforma; a cada gentileza
e serviço, visto ou não visto, meus propósitos são realizados e nada
jamais será igual.
— Certo — disse Mack em tom
decidido. — Então vou voltar. Não creio que ninguém vá acreditar na minha
história, mas, se eu voltar, sei que posso fazer alguma diferença, mesmo
que seja pequena. Há algumas coisas que eu preciso... é... que quero fazer
de qualquer modo. — Ele parou e olhou para cada um. — Vocês sabem...
Todos riram.
— E realmente acredito que
vocês nunca vão me deixar nem me abandonar, por isso não estou com medo de
voltar. Bom, talvez um pouquinho.
— É uma escolha muito boa —
disse Papai. Em seguida deu um sorriso luminoso e sentou-se ao lado dele.
Sarayu parou diante de Mack e
falou:
— Mackenzie, agora que você
vai voltar, tenho mais um presente para você levar.
— O que é? — perguntou Mack,
curioso.
— É para Kate.
— Kate? — exclamou Mack,
percebendo que ainda a levava como um fardo no coração. — Por favor,
diga.
— Kate acredita que é culpada
pela morte de Missy.
Mack ficou pasmo. O que
Sarayu acabava de dizer era óbvio demais. Fazia sentido que Kate se
culpasse. Ela havia erguido o remo que provocara a seqüência de
acontecimentos, permitindo que Missy fosse seqüestrada. Ele não podia
acreditar que esse pensamento nunca lhe tivesse passado pela cabeça. Num
instante as palavras de Sarayu abriram uma nova perspectiva na luta de
Kate.
— Muito obrigado! — disse,
com o coração cheio de gratidão. Agora tinha certeza de que precisava
voltar, nem que fosse somente por Kate. Sarayu concordou e sorriu. Por fim
Jesus se levantou, foi até uma das prateleiras e apanhou a latinha de Mack.
— Mack, achei que você iria
querer...
Mack a pegou e a manteve nas
mãos por um momento.
— Na verdade, acho que não
vou precisar mais disso. Pode guardar para mim? Todos os meus melhores
tesouros estão escondidos em você, de qualquer modo. Quero que você seja a
minha vida.
— Eu sou — disse a clara e
verdadeira voz da confirmação.
* * *
Sem qualquer ritual nem
cerimônia, eles saborearam o pão quente, compartilharam o vinho e riram
lembrando os momentos mais estranhos do fim de semana. Mack sabia que o
tempo havia acabado, que era hora de voltar e pensar num modo de contar
tudo a Nan.
Não tinha nada para guardar
na bagagem. Seus poucos pertences presumivelmente estavam de volta no
carro. Tirou a roupa de caminhada e vestiu aquelas com as quais tinha vindo,
recém-lavadas e muito bem dobradas. Quando terminou de se vestir, pegou o
casaco e deu uma última olhada em seu quarto antes de sair.
— Deus, o servidor — ele riu,
mas depois sentiu algo crescendo por dentro de novo, enquanto o pensamento
o fazia parar. — É mais verdadeiramente Deus,
meu servidor.
Quando Mack retornou à sala,
os três haviam sumido. Uma xícara de café fumegante o esperava perto da
lareira. Ele não tivera chance de dizer adeus, mas, ao pensar nisso, achou
que se despedir de Deus parecia meio idiota. Sentado no chão, de costas para
a lareira e tomando um gole de café, sorriu. Era maravilhoso e ele pôde
sentir o calor descendo pelo peito. De repente estava exausto com a
infinidade de emoções. Como se tivessem vontade própria, seus olhos se
fecharam e Mack escorregou suavemente para um sono reconfortante.
A sensação seguinte foi de
frio, dedos endurecidos se enfiando pela roupa e gelando a pele. Acordou
de um salto e levantou-se desajeitadamente, com os músculos doloridos
e rígidos por ter ficado deitado no chão. Olhando ao redor, viu
rapidamente que tudo estava igual ao que era dois dias antes, até a mancha
de sangue perto da lareira onde estivera dormindo.
Pulou, correu pela porta
quebrada e saiu para a varanda em
ruínas. De novo a cabana era velha e feia, com portas e
janelas enferrujadas e quebradas. O inverno cobria a floresta e a trilha
que levava ao jipe de Willie. Mal se via o lago através da vegetação
de urzes e espinheiros que o rodeavam. A maior parte do cais estava
afundada e apenas algumas das pilastras maiores continuavam de pé. Estava
de volta ao mundo real. Então sorriu. Era mais como se estivesse de volta
ao mundo irreal.
Apertou o casaco contra o
corpo e retornou ao carro, seguindo suas próprias pegadas ainda visíveis
na neve. Foi tranqüila a volta até Joseph, onde chegou no escuro de um
fim de tarde de inverno. Encheu o tanque, comeu comida de gosto normal e
tentou ligar para Nan, sem sucesso. Ela provavelmente estava na estrada,
disse a si mesmo, e a cobertura do celular podia ser precária. Resolveu
passar pela delegacia para falar com Tommy, mas depois que um rápido exame
não revelou qualquer atividade lá dentro decidiu não entrar.
No cruzamento seguinte o
sinal ficou vermelho e ele parou. Estava cansado, mas em paz e estranhamente
empolgado. Não achava que teria qualquer problema para ficar acordado na
longa viagem para casa. Sentia-se ansioso para encontrar sua
família, especialmente Kate.
Perdido em pensamentos,
simplesmente passou pelo cruzamento quando o sinal ficou verde. Não viu o
outro motorista avançando o sinal vermelho da transversal. Houve apenas um
clarão luminoso e depois nada, a não ser silêncio e escuridão.
Numa fração de segundo o jipe
vermelho de Willie foi destruído, em minutos chegaram o resgate dos bombeiros
e a polícia e em horas o corpo ferido e inconsciente de Mack foi entregue
pelo resgate aéreo no Hospital Emmanuel em Portland, Oregon.
18. Ondulações se espalhando
A fé nunca sabe aonde
está sendo levada, Mas conhece e ama Aquele que a está levando.
— Oswald Chambers
E finalmente, como se viesse
de muito longe, ele escutou uma voz familiar gritando:
— Ele apertou meu dedo! Eu
senti! Juro!
Mack não podia abrir os olhos
para ver, mas sabia que Josh estava segurando sua mão.
Tentou apertar de novo, mas a
escuridão o dominou e ele apagou. Demorou um dia inteiro para recuperar a
consciência outra vez. Mal podia mover outro músculo do corpo. Até mesmo
o esforço para levantar uma única pálpebra parecia avassalador, mas o
movimento foi recompensado por gritos e risos. Uma após outra, um desfile
de pessoas veio até seu único olho entreaberto, como se estivessem olhando
para dentro de um buraco fundo e escuro que continha algum tesouro
incrível. Aquilo que viam parecia agradá-las tremendamente e elas foram espalhar
a notícia.
Alguns rostos Mack
reconhecia, e os que não reconhecia, ele logo ficou sabendo, eram os
de seus médicos e das enfermeiras. Dormia com freqüência, mas parecia que
cada vez que abria os olhos isso causava uma grande empolgação.
"Esperem só até eu poder esticar a língua", pensava, "aí,
sim, todo mundo vai ficar realmente impressionado."
Tudo parecia doer. Todo o
corpo reclamava quando um enfermeiro o virava para a fisioterapia e para
impedir as escaras. Aparentemente esse era um tratamento de rotina para pessoas
que haviam ficado inconscientes por mais de um ou dois dias, mas saber
disso não tornava a coisa mais suportável.
No princípio, Mack não fazia
idéia de onde estava nem de como havia chegado àquela situação. Mal
conseguia perceber quem era. Sentia-se grato pela morfina que tirava o
excesso de dor. Nos dois dias seguintes sua mente foi clareando devagar e
ele começou a recuperar a voz. Num entra-e-sai constante, familiares e
amigos vieram desejar uma recuperação rápida ou conseguir alguma informação
que ninguém sabia dar. Josh e Kate estavam sempre ali, ocupando-se com o
dever de casa, enquanto Mack cochilava ou respondia às perguntas que nos
primeiros dias ele se fazia repetidamente.
Num determinado ponto, Mack
por fim entendeu que ficara inconsciente durante quase quatro dias depois
do acidente terrível em
Joseph. Nan deixou claro que ele tinha de dar muitas
explicações, mas por enquanto estava mais concentrada em sua recuperação
do que na necessidade de respostas. De qualquer forma, sua memória
estava envolta numa névoa e, mesmo que ele pudesse recordar alguns
pedaços, não conseguia juntá-los de modo a fazer sentido.
Lembrava-se vagamente de ter
ido à cabana, mas depois disso as coisas ficavam turvas. Nos sonhos, as
imagens de Papai, Jesus, Missy brincando junto ao lago, Sophia na caverna
e a luz e as cores do festival na campina voltavam como cacos de um
espelho quebrado. Cada uma era acompanhada por ondas de deleite e alegria,
mas ele não sabia se eram reais ou uma alucinação provocada por colisões
entre neurônios danificados e os remédios que percorriam suas veias.
Na terceira tarde depois de
ter recuperado a consciência acordou e encontrou Willie encarando-o,
parecendo meio sem jeito.
— Seu idiota! — resmungou
Willie.
— É um prazer vê-lo também,
Willie — bocejou Mack.
— Onde foi que você aprendeu
a dirigir? — interpelou Willie. — Ah, já sei, é um garoto criado
em fazenda que não se acostumou com cruzamentos. Mack, pelo que ouvi
dizer, você deveria ter sentido o bafo do outro cara a um quilômetro de
distância.
Mack ficou deitado,
olhando o amigo falar sem parar, tentando ouvir e compreender cada
palavra, sem conseguir.
E agora — continuou
Willie — Nan está furiosa e não quer falar comigo. Ela me culpa por
ter emprestado o jipe e deixado você ir à cabana.
— Então por que eu fui à
cabana? — perguntou Mack, lutando para juntar os pensamentos. — Tudo está
confuso.
Willie gemeu suplicando.
— Você tem de contar a ela
que eu tentei convencê-lo a não ir.
— Você tentou?
— Não faça isso comigo, Mack.
Eu tentei convencer...
Mack sorria enquanto ouvia
Willie reclamar. Se as outras lembranças eram confusas, recordava-se com
nitidez de quanto esse sujeito gostava dele e apreciava tê-lo por perto.
De repente Mack se espantou
ao perceber que Willie havia se inclinado e sussurrava.
— Sério, ele estava lá? —
Willie olhou rapidamente ao redor para se certificar de que não havia
ninguém escutando.
— Quem? — sussurrou Mack. — E
por que estamos falando baixo?
— Você sabe, Deus — insistiu
Willie. — Ele estava na cabana?
Mack achou divertido.
— Willie — ele respondeu —,
não é segredo. Deus está em toda parte. Então eu estive na cabana.
— Sei disso, gênio — reagiu
Willie impetuosamente. — Não se lembra de nada? Quer dizer, nem se lembra
do bilhete? Você sabe: o que recebeu do Papai e que estava na sua caixa de
correio quando você escorregou no gelo e bateu com a cabeça.
Foi então que a história
desconjuntada começou a se cristalizar na mente de Mack.
Subitamente tudo fez sentido
quando sua mente começou a ligar os pontos e preencher os detalhes: o
bilhete, o jipe, a viagem à cabana e cada acontecimento daquele
glorioso fim de semana. As imagens e as lembranças começaram a jorrar de
volta tão poderosamente que ele sentiu que elas seriam capazes de arrancá-lo
da cama e levá-lo para fora deste mundo. Enquanto se lembrava, começou a
chorar.
— Mack, desculpe. — Agora
Willie estava implorando. — O que foi que eu disse?
Mack estendeu a mão e tocou o
rosto do amigo.
— Nada, Willie... agora me
lembro de tudo. Do bilhete, da cabana, de Missy, de Papai. Eu me lembro de tudo.
Willie ficou imóvel, sem
saber o que pensar ou dizer, com medo de ter forçado o amigo além do
limite. Por fim, perguntou:
— Quer dizer que ele estava
lá? Deus estava lá?
E agora Mack ria e chorava.
— Willie, ele estava lá! Ah,
ele estava lá! Espere até que eu lhe conte. Você nunca vai acreditar.
Cara, nem eu sei se acredito.
Mack parou, perdido nas
lembranças por um momento. — Ah, é — falou finalmente. — Ele me mandou lhe
dizer uma coisa.
— O quê? A mim? — Mack ficou
olhando enquanto a preocupação e a dúvida se estampavam no rosto de
Willie. — Então, o que ele disse?
Mack parou, procurando as
palavras.
— Ele falou: diga ao Willie
que gosto especialmente dele.
Mack viu o rosto e o maxilar
do amigo ficarem tensos e poças de lágrimas encherem seus olhos. Os lábios
e o queixo de Willie tremeram e Mack soube que o amigo estava
se esforçando para manter o controle.
— Preciso ir — sussurrou
Willie, rouco. — Você terá de me contar isso mais tarde.
Virou-se e saiu do quarto,
deixando Mack às voltas com seus pensamentos e lembranças.
Quando Nan chegou, encontrou
Mack sentado e rindo. Como ele não sabia por onde começar, deixou que a
mulher falasse primeiro. Ela o colocou a par de alguns detalhes do
acidente. Ele quase fora morto por um motorista bêbado e havia passado
por cirurgias de emergência para reparar vários ossos quebrados e
ferimentos internos. Seu estado era grave e, por isso, o seu despertar
aliviara a preocupação.
Enquanto ela falava, Mack
pensou que era realmente estranho sofrer um acidente logo depois de passar
um fim de semana com Deus. O aparente caos aleatório da vida. Não era
assim que Papai tinha dito?
Então ouviu Nan dizer que o
acidente havia acontecido na noite de sexta-feira.
— Não foi no domingo? —
perguntou.
— Claro que não! Foi na noite
de sexta-feira que trouxeram você para cá de helicóptero.
As palavras dela o
confundiram e por um momento ele se perguntou se os acontecimentos na cabana
teriam sido apenas um sonho. "Talvez fosse um daqueles deslocamentos
temporais de Sarayu", pensou.
Quando Nan terminou de narrar
os acontecimentos, Mack começou a contar tudo o que lhe havia acontecido. Mas
primeiro pediu perdão, confessando como e por que mentira. Perplexa, Nan
pensou que se tratava dos efeitos do trauma e da morfina.
Toda a história de seu fim de
semana — ou do dia, como Nan repetia — se desdobrou lentamente em várias
narrativas. Algumas vezes os remédios o dominavam e ele caía num sono sem
sonhos, no meio de uma frase. Inicialmente Nan ouviu com paciência e
atenção, tentando suspender ao máximo o julgamento, pensando que a
narrativa dele pudesse ser conseqüência de algum dano neurológico. Mas a
nitidez e a profundidade das lembranças a tocaram e lentamente foram
sola pando sua dúvida. Era intensamente vivo o que Mack estava
contando e ela entendeu rapidamente que o que quer que tivesse
acontecido causara um enorme impacto e transformara seu marido.
O ceticismo de Nan foi
cedendo e finalmente ela concordou em terem uma conversa com Kate. Mack não
quis dizer o motivo, o que a deixou nervosa, mas decidiu confiar nele.
Chamaram a filha e mandaram Josh se ocupar com alguma coisa, deixando os
três sozinhos.
Mack estendeu a mão e Kate
segurou-a.
— Kate — ele começou, com a
voz ainda um pouco fraca e áspera. — Quero que você saiba que eu a amo de
todo o coração.
— Eu amo você também,
papai.
Vê-lo naquele estado a havia
suavizado um pouco.
Ele sorriu, depois ficou
sério de novo, ainda segurando a mão da filha. — Quero falar com você sobre
Missy.
Kate deu um repelão para
trás, como se tivesse sido picada por uma abelha, e seu rosto ficou sombrio.
Instintivamente tentou puxar a mão, mas Mack a segurou, o que exigiu um
esforço considerável. Ela olhou ao redor. Nan se aproximou e a envolveu
com o braço. Kate tremia.
— Por quê? — perguntou num
sussurro.
— Katie, não foi sua culpa.
Agora ela hesitou, quase como
se tivesse sido apanhada num segredo.
— O que não foi minha culpa?
De novo ele precisou
esforçar-se para falar, mas ela ouviu com clareza.
— Termos perdido Missy.
Lágrimas rolaram pelo rosto
de Mack enquanto ele lutava com essas palavras simples.
De novo Kate se encolheu,
dando-lhe as costas.
— Querida, ninguém culpa você
pelo que aconteceu.
O silêncio dela durou apenas
alguns segundos mais, antes que a represa transbordasse.
— Mas se eu não fosse
descuidada na canoa você não teria que... — sua voz saiu pesada de
acusações.
Mack a interrompeu, pondo a
mão em seu braço.
— É isso que estou tentando
dizer, querida. Não foi sua culpa.
Kate soluçou enquanto as
palavras do pai penetravam em seu coração devastado.
— Mas eu sempre achei que
fosse minha culpa. E achava que você e mamãe me culpavam, e eu não
queria...
— Nenhum de nós queria que
isso acontecesse, Kate. Simplesmente aconteceu, e vamos aprender a
conviver com isso. Mas vamos fazer isso juntos. Está bem?
Kate não tinha idéia de como
reagir. Dominada pela emoção e soluçando, soltou-se da mão do pai e saiu
correndo do quarto. Nan, com lágrimas descendo pelo rosto, deu um olhar
desamparado mas encorajador para Mack e saiu rapidamente atrás da filha.
Na vez seguinte em que Mack despertou, Kate
estava dormindo ao seu lado na cama, aninhada e segura. Era evidente que
Nan pudera ajudá-la a superar parte da dor. Quando Nan percebeu que Mack
abrira os olhos, aproximou-se em silêncio para não acordar a filha e
beijou-o.
— Acredito em você —
sussurrou e ele sorriu, surpreso ao se dar conta de como era importante
ouvir isso. "Provavelmente eram os remédios que o estavam deixando
assim tão emotivo", ele pensou.
* * *
Mack melhorou rapidamente nas
semanas seguintes. Menos de um mês depois de receber alta do hospital, ele
e Nan ligaram para o recém-nomeado subxerife de Joseph, Tommy Dalton, para
falar sobre a possibilidade de fazerem uma caminhada outra vez na área
atrás da cabana. Como tudo havia revertido à desolação original, Mack começara
a se perguntar se o corpo de Missy ainda estaria na caverna. Seria difícil
explicar à polícia como sabia onde o corpo da filha estava escondido, mas
Mack achava que o amigo lhe daria o benefício da dúvida e o ajudaria.
Tommy foi realmente solícito.
Mesmo depois de ouvir a história do fim de semana de Mack, que ele
interpretou como sendo os sonhos e pesadelos de um pai sofredor, concordou
em voltar à cabana. Queria ver Mack, de qualquer modo. Itens
pessoais haviam sido salvos dos destroços do jipe de Willie e devolvê-los
era uma boa desculpa para passarem algum tempo juntos. Assim, numa manhã
límpida de sábado, no início de novembro, Willie acompanhou Mack e Nan até
Joseph. Lá encontraram Tommy e os quatro se dirigiram para a Reserva.
Tommy ficou surpreso ao ver
Mack passar direto pela cabana e ir até uma árvore perto do início de uma
trilha. Tal como explicara aos outros na vinda, Mack encontrou um
arco vermelho na base da árvore. Ainda mancando ligeiramente, guiou-os
numa caminhada de duas horas pelo terreno ermo. Nan ficou em absoluto
silêncio, mas seu rosto revelava claramente a intensidade das emoções com
as quais batalhava. No caminho continuaram encontrando o mesmo arco vermelho
marcado em árvores e pedras. Quando chegaram a uma vasta área de
pedregulhos, sem hesitar Mack entrou diretamente no labirinto de paredes
rochosas.
Provavelmente nunca teriam
encontrado o lugar exato se não fosse por Papai. No topo de uma pilha de
rochas diante da caverna estava a pedra com a marca vermelha voltada para
fora. A percepção de que aquilo era obra de Papai levou Mack a quase
rir alto.
Mas encontraram e, quando
ficou convencido do que estavam abrindo, Tommy fez com que parassem. Mack
entendeu a importância do procedimento e, embora um tanto de má vontade,
concordou que deveriam lacrar de novo a caverna para protegê-la.
Retornariam a Joseph, onde Tommy poderia notificar os peritos legistas e
as agências policiais adequadas.
Durante a descida, Tommy
ouviu novamente a história de Mack, dessa vez com uma nova percepção.
Também aproveitou para orientar o amigo sobre o melhor modo de enfrentar
os interrogatórios — que logo viriam.
No dia seguinte os peritos
recuperaram os restos de Missy e guardaram o pano junto com tudo o que
puderam encontrar. Depois disso foram necessárias apenas algumas semanas
até obterem provas para rastrear e prender o Matador de Meninas. A partir
das pistas que o homem deixara para poder encontrar a caverna de Missy, as
autoridades localizaram e recuperaram os corpos das outras meninas
assassinadas.
Posfácio
Bom, aí está. Pelo menos como
me foi contado. Tenho certeza de que algumas pessoas se perguntarão se a
história de Mack aconteceu de verdade ou se o acidente e a
morfina simplesmente o deixaram meio confuso. Mack continua levando sua
vida normal e produtiva e teima em garantir que cada palavra da história é
verdadeira. Todas as mudanças em sua vida, segundo ele, são provas
suficientes. A Grande Tristeza se foi e ele passa a maior parte dos dias
com um profundo sentimento de alegria.
Assim, a questão que eu me
coloco enquanto redijo este texto é: como terminar uma história destas?
Talvez eu possa fazer isso falando um pouco das transformações que
ela causou em mim. Como
declarei no prefácio, a história de Mack me mudou. Não creio que haja um
aspecto da minha vida, sobretudo de meus relacionamentos, que não
tenha sido profundamente tocado e alterado de modo importante. Se eu acho
que é verdade?
Quero que tudo seja verdade.
Talvez alguma parte não seja verdadeira num determinado sentido, mas ainda
assim é verdade. Você sabe o que quero dizer. Acho que Sarayu vai ajudá-lo
a entender.
E Mack? Bom, ele é um ser
humano que continua passando por um processo de mudança, como todos nós.
Só que ele aceita bem as mudanças, enquanto que eu muitas vezes resisto a
elas. Noto que ele ama mais e melhor do que a maioria das pessoas,
é rápido em perdoar e ainda mais rápido em pedir perdão. As transformações
que ele sofreu provocaram na família e nos amigos efeitos que nem sempre
foram fáceis de entender. Mas devo lhe dizer que nunca conheci outro
adulto que leve a vida com tanta simplicidade e alegria. De algum modo,
ele virou criança de novo. Ou, para explicar melhor, ele virou a criança
que nunca teve permissão de ser. Uma pessoa confiante e cheia de entusiasmo.
Ele consegue acolher até
mesmo os tons mais escuros da vida, vendo-os como parte de uma tapeçaria
incrivelmente rica e profunda, tecida magistralmente por invisíveis mãos de
amor.
Enquanto escrevo isto, Mack
está sendo testemunha no julgamento do Matador de Meninas.
Ele quer fazer uma visita ao
acusado, mas ainda não teve permissão. Porém está determinado a vê-lo,
mesmo que isso só aconteça depois do veredicto.
Se você tiver chance de
passar um tempo com Mack, logo vai perceber que ele está esperando uma
nova revolução, uma revolução de amor e gentileza — uma revolução
provocada por Jesus, pelo que ele fez por nós e continua a fazer em um
mundo que tem fome de reconciliação e de um local que possa chamar de lar.
Não é uma revolução que pretenda derrubar nada, ou, se derrubar, fará isso
de um modo que jamais poderemos imaginar antecipadamente. Serão os poderes
silenciosos e cotidianos de morrer, servir, amar e rir, de ternura simples e
gentileza gratuita, porque, se alguma coisa importa, todas as coisas
importam. E um dia, quando tudo for revelado, cada um de nós ficará de
joelhos e confessará, por obra e graça de Sarayu, que Jesus é o Senhor de
toda a Criação, para a glória de Papai.
Ah, uma última coisa. Estou
convencido de que Mack e Nan ainda vão lá algumas vezes, à cabana, só para
ficarem a sós. Não me surpreenderia se soubesse que ele anda até o velho
cais, tira os sapatos e as meias e, você sabe, põe os pés na água só para
ver se... bem, você sabe...
Willie
* * *
A Terra repleta de céu,
E cada arbusto comum
incendiado com
Deus,
Mas só aquele que vê
tira os sapatos;
Os outros se sentam ao
redor e colhem amoras.
— Elizabeth Barrett
Browning
* * *
Continue sua
experiência com A CABANA em nosso site em inglês:
• Conte como você se
sente com relação ao livro A cabana e leia o que os outros estão dizendo
• Conte suas idéias
e discuta o livro com outros leitores no Fórum A cabana
• Comunique-se com o
autor
• Leia o Blog do
Willie
• Descubra as
últimas novidades do Projeto Missy
Para informações
sobre como o autor pode falar com sua organização ou seu grupo, por favor entre
em contato com:
Wes Yoder (615)
370-4700 x230.
* * *
Agradecimentos
Levei uma pedra para três
amigos. Era um pedaço de pedregulho que eu havia escavado nas cavernas da
minha experiência.
Esses três, Wayne Jacobsen,
Brad Cummings e Bobby Downes, com gentileza enorme e cuidadosa, me
ajudaram a lascar essa pedra até que pudéssemos ver uma maravilha por
baixo da superfície.
Wayne foi o primeiro a ler
esta história e se esforçou ao máximo para que eu a publicasse. Seu
entusiasmo levou os outros a refinar a narrativa e prepará-la para
ser compartilhada com uma platéia mais ampla, tanto em livro quanto,
esperamos, em filme. Ele e Brad me ajudaram na edição, acrescentando suas
idéias sobre os modos pelos quais Deus atua. A qualidade do trabalho que
você tem nas mãos deve-se, em grande parte, aos talentos deles. Bobby
trouxe sua contribuição única em cinema para ajustar o fluxo e reforçar o
drama.
Muitos se ligaram a este
projeto, deixando um pedaço de sua vida dentro da história e de como ela
se desdobrou. Dentre esses estão Marisa Ghiglieri, Dave Aldrich,
Kate Lapin e Julie Williams.
Vários amigos me ajudaram a
mexer no texto, especialmente nas primeiras revisões. Dentre esses estão
Austrália Sue, Jim Hawley e Dale Bruneski.
Há uma quantidade de gente
cujas idéias, perspectivas, companheirismo e encorajamento foram
importantes. Obrigado a Larry Gillis, Dan Polk, MaryKay e Rick Larson,
Micheal e Renee Harris, Julie e Tom Rushton e à família Gunderson, além
do pessoal da DCS, meu grande amigo Dave Sargent, às pessoas e famílias da
comunidade NE Portland, e aos Closner/Foster/Weston/Dunbar em Estacada.
O estímulo criativo inclui
uma quantidade de velhos amigos falecidos, como Jacques Ellul, George
McDonald, Tozer, Lewis, Gibran, os Inklings e Soren Kierkegaard. Mas
também agradeço a escritores e oradores como Ravi Zacherias, Anne Lamott,
Wayn e Jacobsen, Marilynne Robinson, Donald Miller e Maya Angelou, para
citar apenas alguns.
Obrigado, Anna Rice, por amar
esta história e penetrar nela com seu dom musical.
Você (me) nos deu um presente
incrível.
A maioria de nós tem suas
próprias tristezas, sonhos partidos e corações feridos, cada um viveu
perdas únicas, nossa própria "cabana". Rezo para que você encontre a
mesma graça que eu recebi lá e que a presença constante de Papai, Jesus e
Sarayu preencha seu vazio interior com alegria indizível.
Se você se sentiu tocado pelo
assombro deste livro e quer ajudar a torná-lo disponível a outros num
nível mais amplo, nós o convidamos a participar do...
Projeto Missy Nós, um
grupo de leitores que se sentiu tocado por A cabana, estamos convencidos de
que este livro merece ser lido pelo maior número de pessoas possível. Não
é somente uma história envolvente e inspiradora, mas tem uma qualidade
literária que faz dela um presente especial.
Oferece uma das visões mais
pungentes de Deus e de como ele se relaciona com a humanidade.
Não somente irá encorajar os
que já o conhecem, mas também atrairá quem ainda não reconheceu a presença
do Criador em sua vida.
Produtores de cinema já
expressaram interesse em transformar esta história em filme e farão isso
depois que um número considerável de livros estiver em circulação. A
divulgação boca a boca ainda é a ferramenta mais eficaz para que um livro
como este possa causar transformações.
Se você, como nós, foi tocado
pela mensagem deste livro, talvez já tenha algumas idéias de como fazer
que outros o conheçam. Oferecemos algumas sugestões para ajudá-lo a
compartilhar A cabana com outras pessoas.
Dê o livro de presente a
amigos e até mesmo a estranhos. Eles estarão recebendo não apenas uma
história empolgante, mas também um vislumbre magnífico sobre a natureza de Deus
de uma forma raramente apresentada em nossa cultura.
Se você tem um site ou um
blog na internet, fale um pouco sobre o livro e como ele tocou sua vida.
Não revele o enredo, mas recomende entusiasticamente que as pessoas o leiam.
Escreva uma resenha para um
jornal de sua cidade, uma revista de sua predileção ou um site que você
freqüente. Se você tem uma loja, exponha o livro com a maior visibilidade
possível. Se for dono de uma empresa, considere a possibilidade
de presentear com o livro seus clientes preferenciais.
Doe o livro para abrigos
femininos, prisões, lares de reabilitação, casas de repouso e outros
lugares onde as pessoas possam ser encorajadas pela história e pela mensagem.
Em reuniões e encontros, fale
do livro e conte do impacto que ele causou em sua vida.
Você estará prestando um
grande favor aos que o escutarem.
Para mais informações e
idéias de como você pode ajudar, conheça o Projeto Missy (The Missy
Project) em nosso site em inglês: